"Bizet tem uma ópera Vasco de Gama, mas a Carmen ofusca tudo" 

Brunch com a soprano Carla Caramujo.
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Estou a jantar com Carla Caramujo no Cantinetta, um restaurante italiano em Viena, e recordo que o meu interesse pela ópera foi despertado por uma visita há muitos anos à capital austríaca, quando vi em dois dias seguidos Don Giovanni e Carmen num ecrã gigante instalado junto à Rathaus, a câmara municipal, aqui mesmo à nossa frente. Claro, a relação de Carla, como soprano, com Viena tem outra intensidade, mas curiosamente o concerto previsto na Haus der Musik, enquadrado no Festival Terras Sem Sombra, será uma estreia absoluta na cidade: "Em Viena é a primeira vez em palco, apesar de a minha história com a cidade ser antiga. Ganhei uma bolsa de estudos de uma fundação francesa e tive aulas com Christa Ludwig, durante um ano e meio. Então eu ia a Viena, ou ao sul de França, estudar com ela. É evidente que eu gostaria muito de cantar um dia na Ópera de Viena, mas há todo um percurso para fazer. Agora, este recital é muito especial, porque o Pedro Costa é um grande amigo meu e um grande pianista que vive aqui. Surgiu esta possibilidade de fazermos este recital juntos, e eu acho maravilhoso. E é a oportunidade de mostrar alguns compositores portugueses, que nós selecionámos, num contexto dos seus pares. Acredito que é mais interessante mostrarmos os compositores portugueses no contexto daquilo que era feito na sua época na Europa, porque o público percebe que eles estão à altura dos melhores".

A conversa a dois acontece no final de um jantar organizado por José António Falcão e Sara Fonseca, dinamizadores do Festival Terras Sem Sombra, que todos os anos leva a música erudita a várias localidades do Alentejo e desta vez fez uma incursão muito especial em Viena, desafiando Carla a escolher um repertório que tivesse impacto junto de um público tão exigente como o austríaco, não esquecer que estamos no país de Wolfgang Amadeus Mozart (não faltam chocolates com a imagem do músico à venda por toda a cidade para nos relembrar). Carla comeu uma sopa minestrone e tagliatelle de salmão, eu uma sopa de tomate e um risotto de cogumelos, ao mesmo tempo que decorria uma conversa à mesa em que a soprano me surpreendeu pelos conhecimentos tanto de história da música como de história em geral. E história é o que não falta à antiga capital dos Habsburgos, durante séculos a mais poderosa dinastia europeia. Carlos, o último imperador austro-húngaro, derrubado em 1918, morreu no exílio, na ilha da Madeira, e está sepultado no Santuário de Nossa Senhora do Monte, no Funchal.

Nada que Carla não saiba já, mas não deixamos de nos deliciar com os pormenores da enorme história de um país hoje tão pequeno, "um pouco como Portugal", comenta a soprano, nascida em Cantanhede, mas que a partir dos quatro anos foi com a família viver para Coimbra. Lá entrou no Conservatório com dez anos, lá estudou na Universidade, onde chegou, conta entre risos, a entrar em Química, e depois mudou para Antropologia, até surgir a primeira grande oportunidade de formação musical no estrangeiro, quando com 22 anos vai para Londres, para a Guildhall School of Music and Drama. Passará a primeira década no novo milénio no Reino Unido, estudando e vivendo também em Glasgow.

"Foi uma casualidade, quase. Eu fiz o meu curso no conservatório em violino, e fiz o curso suplementar de canto. Nessa altura, tinha aulas privadas com um professor que estava a fazer um doutoramento em Inglaterra. Ele sugeriu-me fazer um curso de verão em Oxford. E nesse curso eu tive contacto com professores de várias escolas de performance em Londres. E foi assim, foi a primeira grande abertura para todo o mundo internacional da lírica, digamos assim. Fiquei bastante fascinada e achei que aquilo era realmente o que precisava. Fiquei mais ou menos 10 anos, mas fiz licenciatura e três mestrados. Glasgow somou-se a Londres porque resolvi fazer um curso de ópera. Era um mestrado, um advanced master em ópera, e também um pé no mercado do trabalho. Nós já fazíamos produções profissionais em colaboração com teatros. Por exemplo, eu trabalhava em colaboração com o Royal Theatre of Glasgow", conta Carla, que, entretanto, opta por voltar a Portugal. "Após dez anos, decidi que também tinha de ter vida pessoal. Casei com um português e resolvemos estabelecer-nos no Porto. Temos um filho de 11 anos, que desde os cinco anos estuda no Conservatório do Porto", acrescenta a soprano, que diz ter crescido sem músicos na família, mas com um pai tão apaixonado pela música que a pôs e à irmã no Conservatório de Coimbra.

Esta vinda a Viena para um único concerto é possível porque optou por ser freelancer. Foi a forma de ter uma carreira internacional, que lhe vale artigos em jornais como a Folha de São Paulo, que em julho destacava o desempenho em A Raposinha Astuta, do checo Leos Janácek. "Optei por ser freelancer porque, primeiro, vivendo em Portugal, não há nenhum local que me possa empregar como cantora lírica a tempo inteiro. Por exemplo, o modelo das casas alemãs, que têm funcionários cantores líricos, não existe em Portugal. Nem no Teatro Nacional São Carlos, que tem dois corpos artísticos, a orquestra e o coro, mas eu não sou coralista, sou solista. Eu sou convidada pelo Teatro Nacional São Carlos, ocasionalmente, para cantar lá em produções. Assim, em Portugal não existe a possibilidade de ser trabalhador por conta de outrem nesta função. A não ser que eu enveredasse por uma carreira enquanto professora. Mas como solista, não. E neste momento não faz parte dos meus objetivos".

Numa América Latina que conhece bem, pois já cantou no México, Colômbia, Uruguai e Argentina, ultimamente é o Brasil que lhe tem oferecido oportunidades. E Carla passa temporadas que podem durar dois meses no outro lado do Atlântico, com o marido e o filho, diz, a viajar para lhe fazerem companhia sempre que podem. "Comecei a trabalhar no Brasil, nas casas principais, em 2019, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com uma produção muito interessante, Orfeu, de Philip Glass. Eu fazia a princesa. E é exatamente o texto do filme de Jean Cocteau. A princesa, que era o meu papel, é a princesa estrangeira, que personifica a morte. A partir daí, tenho-me apresentado na sala Cecília Meireles, também no Rio, e , muito recentemente, no Teatro São Pedro de São Paulo, com A Raposinha Astuta. Também com a Petrobras Sinfónica, sob a direção de Isaac Karabtchevsky, tenho feito Mahler, Strauss e também João Ripper, brasileiro e contemporâneo", conta Carla, que se sente muito bem a atuar perante o público brasileiro. "Os brasileiros gostam muito de ópera. São Paulo tem duas temporadas anuais de ópera, o Rio de Janeiro tem uma, e depois há outras cidades de outros estados, também com temporadas de ópera. Há muita ópera a acontecer no Brasil", diz.

A premiada soprano (venceu, por exemplo, o Concurso Nacional de Canto Luísa Todi), que confessa fazer umas incursões pela musicologia, fala-me de Il Guarany, uma ópera de António Carlos Gomes, baseada no romance homónimo O Guarani de José de Alencar, composta em italiano no século XIX." "O gosto da época era esse, escrever em italiano. E, portanto, Il Guarany é uma ópera que é bastante italiana mas sobre a chegada dos portugueses ao Brasil. É um romance entre a filha de um colonizador português e um índio guarani", explica.

Durante o jantar a História de Portugal foi um tema omnipresente e Carla diz que esta chegou a inspirar grandes compositores, como Donizetti com Dom Sébastien, Bizet com Vasco de Gama, e Meyerbeer com L"Africaine, cujo tema é precisamente esse encontro de culturas do outro lado do mundo. "Eu nunca vi ao vivo L"Africaine, mas há uma versão filmada fabulosa, se não me engano, da Bastille. E L"Africaine foi feita várias vezes em vários locais da Europa durante o século XX. No caso da ópera sobre Vasco da Gama, o problema com Bizet é que a obra dele é ofuscada pela Carmen. E há, não esquecer, sobre Inês de Castro, cerca de 20 óperas, desde o século XVIII, com Andreozzi, a James MacMillan, no final do século XX".

De súbito, um cliente do Cantinetta levanta-se e canta uma ária. Carla torce o nariz. Confessa até ter dificuldade em identificar a que ópera pertence aquele canto em italiano. No final, quem está no restaurante aplaude. São sobretudo turistas, que vêm a Viena decididos a ouvir música, muitas vezes sem critério. E se a ópera de Viena é o expoente, e por isso sempre esgotados os bilhetes, não falta outras ofertas, de níveis de qualidade diferentes.

Sobre os papéis preferidos, Carla explica-me que primeiro que tudo há a questão da vocalidade: "por exemplo, nem todos os sopranos têm o mesmo tipo de voz. Dentro da tipologia da minha voz, claro que há personagens que eu gostaria muito de interpretar. Algumas que já interpretei, outras que ainda não. Como sou formada numa escola de teatro também, como eu adoro teatro, gosto de personagens que sejam, efetivamente, muito ricas, desse ponto de vista dramático. Uma das personagens que eu quero muito interpretar, ainda não interpretei, mas que espero lá se chegar no dia, é a Lucia de Lucia di Lammermoor, de Donizetti. Que é uma personagem que vai enlouquecendo ao longo da história e, portanto, o desafio não é só vocal, mas de interpretação. Há outros desafios que eu, felizmente, já fiz. Já fiz uma Violeta na La Traviata, mais do que uma vez, é realmente uma personagem fascinante. Já fiz várias vezes uma Donna Anna no Don Giovanni, de Mozart, que é uma das personagens mais fascinantes da história da música do período clássico. Já fiz Gilda, também, no Rigoletto, personagem muito cativante".

Diz-me a soprano que um cantor ou cantora de ópera tem de estudar o francês, o alemão e o italiano. Pergunto, já que estamos em Viena, se fala alemã. "Estudei muitos anos alemão. Não falo a língua, porque nunca estive numa situação de a ter de praticar a falar. Mas reconheço, claro, e consigo ler, e consigo ter uma conversinha. O problema é que, às vezes, estudo textos, por exemplo, do século XIX, e que já não é a forma como se fala", explica, entre risos.

Sobre óperas em português, Carla diz que "tivemos uma época dourada, que é o Barroco, em que havia investimento e havia autores internacionais a viver na corte portuguesa, como os Scarlatti na corte portuguesa. Tivemos pessoas a aprender diretamente dos maiores mestres internacionais europeus em Lisboa, e, portanto, entre outros, tivemos Francisco António de Almeida a escrever óperas maravilhosas. Tem sido feito um esforço de retomar com alguns grupos a música barroca em Portugal, de reabilitar algum desse repertório. Eu já fiz a Spinalba do Francisco António de Almeida, por exemplo e gravei Il mondo della Luna de Avondano para a Naxos com os músicos do Tejo. Há obras com a língua portuguesa no final do século XIX, há autores que escrevem para o São Carlos, portugueses que escrevem com o libreto em italiano, mas também fazem o libreto em português. E já no século XX, há compositores nossos contemporâneos que escreveram música muito interessante, por exemplo, o Alexandre Delgado, tem duas óperas que são O doido e a morte e a Rainha Louca, obras-primas. E temos agora o Fernando Lapa que vou interpretar no concerto aqui, que estreou no ano passado, uma ópera baseada nos Contos da Montanha, de Miguel Torga. Há uns anos foi feito o Banksters, do Nuno Corte Real, e eu estreei O sonho de Pedro Amaral na Gulbenkian com texto de Fernando Pessoa e no próximo ano farei a Trilogia das barcas de Joly Braga Santos no São Carlos com textos de Gil Vicente, mas há mais".

Sobre haver público para a ópera em Portugal, a soprano considera que há, mas é preciso criar condições: "Nós sofremos de um problema grave, que é só termos um teatro de ópera em Portugal, que é o Teatro Nacional de São Carlos. Eu acho que nós temos urgência em ter um teatro de ópera com temporada regular no Porto, ou que um dos teatros do Porto se abra à possibilidade de ter uma temporada de ópera. Eu acho que isso é urgente. E temos salas magníficas no país todo. Temos o novíssimo Convento de São Francisco em Coimbra. Temos em Guimarães o Centro Cultural Vila-Flor, que tem um fosso que pode albergar uma orquestra wagneriana. Mas não se faz ópera nestas salas, nem bailado".

Enquanto ouvinte, Carla diz ter muitas escolhas: "É muito difícil. Eu gosto muito de ouvir até a tetralogia de Wagner. Confesso que não a ouço do início ao fim, obviamente. Gosto muito dos Mestres cantores de Nuremberga, de Wagner. Gosto imenso, imenso. Adoro Rossini. Adoro Pelléas et Melisande, de Debussy. E se for uma obra instrumental, sem canto, são os Quartetos de cordas de Janácek. Adoro Janácek".

Curioso, pergunto a Carla se alguma vez cantou a ária da Rainha da Noite, da Flauta Mágica. Sorri e responde: "Comecei a minha vida profissional a cantar Rainha da Noite. Foi o meu primeiro ordenado. A Rainha da Noite é para uma voz muito específica, para uma coloratura, mas que só faz esse papel, diria eu, nos primeiros anos de carreira. Porque depois é preciso deixar que a voz evolua num outro sentido para conseguir fazer outro repertório. Porque é um extremo da voz". Comento que na sequência da tal visita a Viena, há muitos anos, cheguei a comprar uns vídeos da Decca com grandes óperas, uma delas a Flauta Mágica de Mozart com Gruberova no papel da Rainha da Noite. É mesmo uma voz excecional a eslovaca ? De novo risos: "Vou contar um segredo. Eu decidi ser cantora de ópera porque quando comecei a estudar estava muito motivada por ouvir a Gruberova, porque eu identificava-me imenso com aquele som. E quando comecei a estudar canto, como o meu percurso era instrumental, e não venho de uma família de músicos nem nada, a minha cultura musical era muito pobre. Então a minha primeira professora no conservatório começou-me a mostrar vídeos de óperas. Não esqueça que sou uma menina de província, e em Coimbra não havia ópera. O primeiro vídeo de ópera que eu vi foi a Gruberova com o Pavarotti, a cantar o Rigoletto. Uma versão cinematográfica. Aquilo tocava-me profundamente, e eu identificava-me imenso. Ainda hoje tenho a Gruberova como uma das minhas maiores referências vocais". E de Callas, o que acha? "A Maria Calas é um fenómeno. Eu nem sempre gosto da voz dela, em determinados papéis, mas gosto muito da intensidade interpretativa. E é aí que é única. Revolucionou o teatro de ópera com a interpretação".

O concerto do Festival Terras Sem Sombra na Haus der Musik foi dois dias depois desta conversa. Um sucesso. Na assistência, o embaixador Miguel Almeida e Sousa, uma delegação de autarcas alentejanos (não esquecer que o festival que trouxe Carla a Viena é no Alentejo e este ano tem a Áustria como país convidado), membros da comunidade portuguesa e austríacos com ligação a Portugal, como Gerhard Schiesser, que em 1948, com nove anos, foi uma das cinco mil crianças que, dadas as dificuldades da Áustria no pós-Segunda Guerra Mundial, a Cáritas enviou para Portugal para passarem uns anos com famílias portuguesas e depois voltarem. Em português, o vienense Schiesser, hoje com 84 anos, disse ter gostado muito do concerto, matando um pouco saudades da sua "segunda pátria".

"Eu vou pôr Lacerda com Obrador, vou misturar Lili Boulanger com António Fragoso, e no final vou apresentar um ciclo absolutamente maravilhoso do Fernando Lapa, que se chama Ao Encontro da Alegria, e que dá o título a este recital. É-me muito especial porque o ciclo foi-me dedicado em plena pandemia, mas não é por isso que o vou interpretar, é porque o ciclo é extremamente bem escrito, vale a pena ser escutado e é também uma oportunidade para ouvir os poemas de Nuno Higino, que também é um dos nossos poetas da atualidade. E eu acho que o Fernando Lapa representa neste momento aquilo que se faz de melhor na composição em Portugal", prometeu Carla no nosso jantar. O seu canto, na Haus der Musik, deslumbrou. Foi uma grande estreia em Viena. Agora só falta a tal noite na Ópera.

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