Tem 77 anos, mas não gosta de pensar nisso nem daquilo que o destino trará e garante que as mãos ainda seguram bem na agulha para se dedicar à arte que o fez sair da pequna aldeia de Torrados, em Felgueiras, aos 13 anos, para viajar sozinho e sem dinheiro para França. Tinha visto um desfile da Dior na TV e ele, que até já pedalava na máquina de costura da mãe sem sequer pedalar na bicicleta, ficou com a certeza de que a moda de alta-costura seria a sua vida.Em Paris trabalhou na construção civil mas acabou por conseguir trabalho na Maison Joseph Camps e daí saltou para diretor criativo da casa Ted Lapidus. Lidou com as grandes estrelas da época, desde o simpático Jacques Brel à “deusa” Brigitte Bardot, mas apaixonou-se por uma francesa que o quis afastar dessas mulheres com que lidava e o convenceu a regressar a Portugal. “Foi mesmo uma verdadeira paixão. Nunca me aconteceu outra na minha vida até hoje”, conta Tony Miranda. Vendeu tudo o que tinha em França e veio. “Foi a minha grande asneira”. Fixou-se em Guimarães, onde ainda tem atelier e onde investiu em imobiliário. E quando a Avenida da Liberdade, em Lisboa, ainda era uma artéria mal frequentada comprou um prédio em ruínas para ser o seu quartel-general. Anos depois, adquiriu um outro, nas traseiras, onde abriu uma unidade de apartamentos turísticos de moda. “Vivo dos investimentos todos que fiz há uns anos. Acho que investi bem”, admite.A morte do filho tornou-o um “homem triste”, um homem que se sente pouco reconhecido no seu país, com poucos clientes nacionais e que mesmo assim insiste na perfeição que se exige da alta-costura. Na quinta-feira, fará um desfile no pátio de um destes prédios de que é propietário. “Este desfile é para mim”, diz..Comecemos pelo desfile que vai acontecer na quinta-feira, que é aquilo que nos traz aqui. O que é que vai apresentar, que coleção é esta?Esta é uma coleção muito simples, como todas as minhas. São sempre simples. Mas com o critério de muito pormenor, muito pormenor, e pensando um bocado no passado, que eu tive uma vida bastante movimentada na moda. Acho que é uma coleção que merece ser vista. Nunca me preocupo grande coisa com as tendências. A tendência é minha, aquela que eu faço, a minha pessoal. A minha preocupação principal é enaltecer o corpo da mulher. E por isso acho que uma peça minha numa cruzeta não diz nada, é preciso vesti-la para ver o detalhe, o pormenor, a elegância, o corte, que é o importante.Mas também tem modelos para homem, não tem?Sim. Também temos modelos para homem. O homem é menos criativo, mas temos coisas de festa, para pessoas que gostam de sair um bocado do trivial, e fazemos muita fantasia para o homem.Fantasia? O que é que quer dizer com isso?Nos tecidos, pintados à mão... Nem todos sabem vestir uma coisa dessas. Vestir e estar à vontade. Quando tens um blazer clássico, nada de especial...Mas usar um blazer com uma caveira atrás, com brilhantes, como tem ali, se calhar já não é para todos.. Não é para todos, exatamente. E aí é preciso realmente ter aquela vontade de dizer 'eu gosto disto e o que pensam os outros eu estou-me maribando'. Porque é verdade que às vezes é-se criticado. Mesmo nas festas, me perguntam 'Ainda continuas a fazer estas fantasias?'. Porque as fantasias estavam muito ligadas ao Goucha. Mas fui eu que comecei quando cá cheguei. Olhe, tenho ali um casaco, que foi apresentado em Guimarães na minha primeira apresentação. Estava cá há uma semana e eu apresentei-me com esse casaco. Ui... a crítica que eu não tive!Falou do Manuel Luís Goucha. Alguma vez o vestiu?Não. O Goucha não... Não foi porque não o quisesse vestir. Somos amigos há muitos anos. Ele tem outra maneira de se vestir. Não digo que ele está mal vestido. Há muita falta de pormenor, muita falta de corte e tudo. Em minha casa seria completamente diferente... O Goucha é uma pessoa que muda de fato praticamente todos os dias e isso não seria possível na minha casa. Mas somos amigos e eu gosto muito dele, tenho uma grande admiração por ele.. E gosta mais de vestir uma mulher ou um homem?Uma mulher, isso é indiscutível. Mas é mais difícil trabalhar para o homem do que para a mulher. Para o homem são linhas muito básicas, muito a direito. Tudo o que você possa dar com um pormenor enriquece o homem. E esse pormenor tem que ser feito artesanalmente, à mão, mesmo para um tecido esticar aqui, encolher ali. É um trabalho monumental para haver uma diferença. Os meus fatos, por exemplo, nunca têm pinça mas têm a mesma elegância ou mais ainda do que quando se faz uma pinça. Mas isso é o segredo do trabalho e é o segredo do corte.A mulher também permite outra criatividade.A mulher é diferente. A mulher permite uma criação mais elaborada. Tu podes expandir-te... mas aquilo que eu faço tem sempre um limite, que é para não sair do meu estilo e não sair daqueles pontos que eu adoro.E qual é o seu estilo?A elegância.O seu estilo é a elegância?Ah, sim. Uma mulher quando está vestida, sobretudo com um blazer... Porque fui eu que o criei. O blazer fui eu que o criei.Criou o blazer?Sim, nos anos 60. A minha formação foi para o homem. Comecei no homem. Bem, primeiro comecei com a minha mãe, que era costureira. Os primeiros pontos foram aprendidos com a minha mãe, aos 13 anos. Mas comecei a dar pontos aos sete anos. E tinha seis quando comecei a pedalar na máquina.Se calhar começou a pedalar na máquina de costura antes de começar a pedalar na bicicleta. Se calhar nem tinha bicicleta...Não, não tinha bicicleta.. Era uma família humilde?Humilde, muito humilde. Mas o meu pai dizia sempre que a honestidade e a humildade é o principal de uma pessoa. E isso fica... Comecei a fazer a minha aprendizagem num alfaiate da aldeia onde nasci, em Torrados [Felgueiras].E foi ao ver um desfile na televisão do centro paroquial que pensou em seguir esta vida.Eu já tinha isso na pele. Eu acho que nesta profissão, se se quer fazer algo que seja diferente, tem que se ter algo diferente já na pele. Não sei como dizer... Porque senão é o básico, igual a todos. Hoje, se vamos comprar um fato feito vem tudo praticamente da mesma fábrica, só muda de nome e tecido. E de resto é tudo igual.Quando começou a costurar com a sua mãe, já fazia peças de roupa?Não. Eu comecei a fazer roupa para os meus amigos aos 12 anos. Fazia calças, fazia corte nas calças para ser diferente.E eles gostavam?Adoravam. E depois quando vi esse desfile, que era da Dior, cheguei a casa e disse à minha mãe: 'Vou para Paris para fazer uma coleção como vi hoje'. E a minha mãe dizia 'sim, sim'; e o meu pai dizia que eu era maluco, com ideias malucas. Que era diferente dos outros filhos.Quantos irmãos tem?Cinco. E, então, tudo vem daí: dos princípios de ver a minha mãe a trabalhar, muito perfeita. O meu pai, então, era um bottier com uma perfeição incrível. Ganhava uma miséria, porque o trabalho perfeito não era pago.E agora, o trabalho perfeito é pago?Somos nós que temos que ter a vontade e a força de fazer compreender ao cliente que aquilo que ele está a comprar é muito diferente do que aquilo que ele pode comprar fora. Eu tenho aí um fato de pronto a vestir, que é comprado numa marca qualquer, mas já muito conceituada. E eu, com os portugueses, quando cá vêm pela primeira vez e dizem que não dá para comprar porque é muito caro, guardo isso como arma. Eu visto-lhes o fato do pronto a vestir e depois visto-lhes um meu. E quando eu lhes visto o meu, dizem 'Uuau!'. É uma diferença muito grande.Assim é que se pode chamar a alta costura. É nesses pormenores, no corte, na perfeição. Porque a alta costura não é só pontinhos, pontinhos à mão. Às vezes, muitos pontinhos até estorvam. O ponto tem que ser dado no sítio onde é necessário. E uma peça tem que ter movimento.. Referiu que os portugueses não compram alta costura. Falou dos preços...Eu não queria falar dos preços.Só para ter ideia do que é que estamos a falar.Isso é muito variável. [Levanta-se e vai buscar o casaco de um fato escurso com uns fios dourados, que mostra] Isto é um fio de ouro. Mas é mesmo ouro, 18 quilates. Este, só o tecido custa dois mil euros o metro. Três metros e meio já são sete mil euros.Para um casaco são precisos mais ou menos três metros e meio, é isso?Sim. Três metros se for magrinho e não muito grande. Se não, são precisos três e meio.Já se percebeu que clientes portugueses são um ou outro e de tempos a tempos.Quando vão casar uma filha. Nessa altura, já não olham ao preço. É o casamento da filha.Então quem são os seus clientes?De fora.Mas quem? O Xá do Irão, por exemplo. Fui muitas vezes ao Irão, ao Palácio das Flores.E como é que o descobrem? Como é que, no Irão, descobrem o Tony Miranda em Portugal?Ele descobriu quando eu trabalhava na Ted Lapidus. Eu trabalhei lá durante 12 anos como diretor criativo - e foi aí que eu o conheci. Depois, eles seguiram-me. E isto é uma família muito pequena, todos se conhecem. E quando comecei a trabalhar por conta própria eles vieram. E foi assim que eu sempre trabalhei, agora muito menos, porque muitos deles já faleceram e é difícil renovar um cliente deles. Estamos a falar de um cliente que compra 40, 50 fatos por ano.Trabalha muito ainda?Eu trabalho muito... mas adoro trabalhar.Está com que idade? 77?Sim, sim... Mas eu não quero falar da idade, nem quero pensar.Não? Então?Não. Não sei porquê. Não é porque tenha medo, que seja o que for, mas... Não queria chegar ao ponto de passar na rua e dizerem 'Olá senhor Miranda, como é que está?? Está a ver? Ai não, não quero chegar a isso.As suas mãos ainda trabalham bem?Ah, sim. As minhas mãos é tudo. E sou eu que... Já não faço tanta costura, mas ainda sou eu que meto lá o nariz e são as minhas mãos que vão dar os últimos pontos, aqueles principais.Portanto, tem uma equipa que trabalha consigo. Desenhar, pelo que percebi, não desenha, pois não?Eu não preciso desenhar.Não precisa?Eu vou diretamente... Vou diretamente... Eu, para a mulher, trabalho sobre manequim com as telas. Se for preciso desenhar, também desenho, mas é tempo perdido porque tudo está aqui na cabeça. E depois eu transmito isso para a tela, vejo logo na tela feita no manequim o resultado que vai dar e é assim que eu trabalho.. Há pouco falou que viu o tal desfile na televisão e decidiu que era isto que queria fazer. E foi para França ilegalmente. Estávamos nos anos 60, era muito jovem, não tinha dinheiro...Foi como era naquela época, chamava-se ir de assalto. Iamos a pé, muitas horas a andar, andei 50 e tal horas a pé. Fiz 14 anos no caminho. Foi assim... E depois trabalhei em tudo quanto um imigrante tem direito, na construção, no lixo, nessas coisas todas, antes de chegar à moda. Foi muito tempo ainda. Nem dois anos.Então não foi muito tempo.Mas para mim foi porque eu se pudesse avançar dois dias de uma vez... Eu queria sempre mais, sempre mais, sempre mais. E foi isso que me levou a apresentar-me na casa de alta costura do Joseph Camps. Ele falou comigo e disse: 'Eu não sei o que tu sabes fazer. Não deves saber fazer grande coisa, porque Portugal, do que eu conheço, não tem tradição de costura.... Mas, pela vontade que eu te vejo, tu vais ser um artista, um grande artista!'. E comecei. Passado uns tempos, vem dizer: 'Eu nunca me engano'.Tornou-se então, segundo ele, um grande artista. Essa aprendizagem foi depois muito importante para o seu percurso. Como é que foi depois?Lá, eu cheguei ao topo muito rápido. Mas depois do topo não havia mais nada. A partir daqui, o que é que eu ia fazer? Ser patrão?Então começou a lutar para ser patrão?Fui para a Ted Lapidus e foi aí que conheci muita gente do mundo artístico.Como é que foi para um jovem que saiu de uma terra pequena com um sonho, que tinha uma vida simples, humilde, de repente estar rodeado desse luxo, dessas figuras?Só a casa já é um luxo. As instalações já são super luxuosas. E depois é o contacto com as pessoas. Quando tu fazes uma peça de que ela gosta, ela diz-te, faz questão de te dizer que gosta, que se sente linda. O Jacques Brel, sempre que se punha à frente do espelho, dizia: 'Eu sou tão feio, Tony. Mas os teus fatos embelezam'.E a Brigitte Bardot? Também a vestiu. O que é que ela lhe dizia?Eu nem tinha voz quando estava à frente dela para falar. Era uma simpatia. Ela e a Brigitte Fossey foram, das artistas que eu conheci, das mais simpáticas. Uma simpatia simples. Era qualquer coisa, é verdade. Quando ela chegava de Rolls-Royce branco, com os vestidos que nós fazíamos, vaporosos, simples, era uma deusa.E não ficava deslumbrado?Não.Manteve sempre os pés assentes na terra?Mantive sempre os pés na terra porque era a minha educação. O meu pai dizia sempre: 'Aquilo que é nosso é nosso, aquilo que é dos outros não temos nada a ver'. Mas é verdade que muitos amigos meus diziam: 'Rapaz, como é que tu te sentes à frente de um mulherão assim?'. Normal. Como com presidentes. O que me marcou muito foi o Xá da Pérsia, o rei de Irão. Porque era de uma simplicidade fantástica. Tu tinhas que estar à vontade com ele. Era rei e dizia que eu era um amigo. Isso é fantástico, é maravilhoso.Depois disso abre uma loja em nome próprio em Paris. A carreira corre-lhe bem, mas nos anos 80 decide voltar para Portugal. Porquê essa decisão?Isso é outra história. Paixão por uma mulher. Estou cá por causa desse amor.Apaixonou-se...Apaixonei-me. Mas foi mesmo uma verdadeira paixão. Nunca me aconteceu outra na minha vida até hoje.Mas se a paixão era francesa e estavam em França porque é que vieram para Portugal?Porque ela dizia que eu estava rodeado de muita mulher e que só vindo para Portugal fazia confiança.E vieram.Foi a maior asneira que eu fiz. Se voltasse atrás, não fazia. Até o pai dela, que é uma pessoa simpática, dizia: 'Filha, tu vais sair deste pais para te meteres numa aldeola?”. Mas comecei a vender tudo aquilo que tinha lá, o que foi a minha grande asneira.E o que é que tinha lá?Tinha apartamentos, tinha uma boutique na Rue Cambon, que era um dos sítios mais caros de Paris. Tinha património já jeitoso que me permitiu depois investir cá. Aquilo que tenho não foi cá ganho.E foi nessa altura que decidiu comprar este edifício em plena Avenida da Liberdade?Eu primeiro estive instalado em Guimarães, no centro histórico. Tinha lá um prédio de cinco pisos, no centro histórico, onde tinha o atelier e toda a organização. Depois apresentei aqui em Lisboa várias coleções e os clientes perguntavam onde eu estava. 'Em Guimarães? Ir para Guimarães.... desculpe lá...'. E foi assim que eu depois comecei a procurar uma casa cá. Comecei a dizer: 'Se tenho cinco pisos em Guimarães, em Lisboa tem que ser melhor, porque não pode ser uma coisa mais pequena. E encontrei este prédio em ruína, que foi todo refeito, todo, todo.. Foi um bocadinho visionário ou não? Nos anos 80 a Avenida da Liberdade não era o que é hoje.Desculpe o termo, mas a Avenida da Liberdade era a avenida das putas.Pronto, é isso. Não queria ser eu a dizê-lo.Era isso que se dizia. Amigos meus, homens de negócios, perguntavam como era possível investir tanto dinheiro aqui.Quanto lhe custou?Foi quase um milhão de contos.Mas porquê? Se era uma avenida com má reputação, porquê?Eu acreditei quando vi o sítio. Eu acho que há certas energias que disparam a ti, que dizem 'faz, faz'. Eu vinha de ver na Rua Braamcamp um prédio muito mais barato, quatro vezes mais barato. Mas não era aquilo que eu queria, não era o sítio. Como viajo bastante - agora muito menos do que antes -, sempre vi em todo o mundo uma avenida luxuosa, uma avenida do país que é considerada o maior luxo. E eu, para mim, a Avenida da Liberdade, que é uma avenida linda, tem tudo.E o Tony foi um pioneiro.E às vezes fico um bocado triste porque os media quando falam da Avenida da Liberdade falam de um que abre um canto quase num vão de escadas e de mim, com um prédio de sete pisos, ninguém fala. Ninguém se interessa.Porque é que quase não se fala do Tony em Portugal? Há mais criadores de alta costura em Portugal...Aquilo que eu faço, ninguém faz. O trabalho que eu faço, ninguém faz. Isso garanto. Não faz porque é preciso formação para isso, que eu tive a sorte de ter, e saiu-me das tripas, como se diz.. Mas eu pergunto-lhe isto porque não sei se os portugueses sabem quem é o Tony Miranda. Ouvimos falar deste, daquele e do outro, mas não ouvimos falar de si. O Tony nunca foi aos grandes eventos de moda que existem no país... Porquê?O que é que chama de eventos?Não são propriamente de alta costura, mas a ModaLisboa ou o Portugal Fashion, por exemplo.Que horror. É o pior que se pode fazer. Eu não quis. Não aceitei.Porquê?A minha roupa no meio das outras não faz sentido nenhum.Mas acha que tem reconhecimento em Portugal?Não. Mas sempre me interessei muito pouco, porque quando tu vives com uma clientela extra fora, que te admira e que é composta por pessoas que sabem o que é vestir - e isso é que é o importante -, tu ficas satisfeito com isso.Como avalia a forma como os portugueses se vestem?Os portugueses são muito vaidosos, são muito de marcas. Se pudessem trazer nas costas o nome à vista a dizer isto é de fulano...Voltemos a este edifício da avenida. A ideia era que fosse o quartel-general da marca Tony Miranda?Sim.Mas mantendo também aquilo que tinha em Guimarães?Sim, sim. Os prédios que eu tenho lá hoje são guest-houses, alojamento local e outros lojas que estão alugadas.Além deste prédio na Avenida da Liberdade tem aqui na rua de trás um edifício de apartamentos de turismo de moda. Que conceito é este?Fui eu que desenhei tudo, fiz a decoração toda. E quis, em todos os quartos, ter um quadro de moda da minha época. Achava que corresponde à minha vida pessoal.. Portanto, além da moda tem vários negócios nesta área da hoteleria, não é?Posso considerar-me um pequeno investidor. Mas tudo o que é feito em imobiliário é seguido por mim.Vive de quê? Da roupa ou destes investimentos imobiliários, dos apartamentos, das guest houses?Vivo dos investimentos todos que eu fiz há uns anos. Acho que investi bem. Da rentabilidade deles. Posso viver bem.Chegou a ter negócios no Porto, mas deixou de ter.Cheguei a ter, mas vendi. Tive má sorte com os funcionários que lá tinha. Não quis. E depois, era muita coisa: Guimarães, Porto, Lisboa, fora.Ainda vai a Paris muitas vezes?Eu preciso de ir a Paris. Não passo um mês sem lá ir.E o que é que faz quando vai a Paris?Olhe, primeiro, tenho que dar uma volta à noite a todos os sítios onde trabalhei. Para recordar memórias que tenho. E depois vou ver amigos que ainda tenho. Isto daqui a Paris são duas horas. De repente agarro na minha mochila e lá vou eu.Consegue ir só com uma mochila?Agora sou mais prático, sobretudo quando estou fora. Tinha um apartamento em Paris, no 51 da Avenida Foch, mas que acabei por vender aquando do investimento aqui no hotel. Foi o maior erro que eu fiz.Mais um. Esse grande amor francês de que falámos há pouco e que o fez vir para Portugal resistiu?Não, não, não. Eu comprei um solar antigo, que tem duzentos e tal anos, em Guimarães, e aquilo esteve em obras durante muito tempo. Nós estávamos num hotel e ela vinha à janela e quando fazia frio dizia 'Ui, que isto é tão feio quando chove'.Ela arrependeu-se de ter vindo?E depois, claro, eram discussões umas sobre outras, e aí dizia que tinhamos de voltar para França, Eu até tinha vontade, mas já tinha vendido tudo. Absolutamente tudo. Até que um dia ela disse que ia passar uns dias com os pais e eu vi logo que ela ia e já não voltava. O pai dela disse que me dava o dinheiro todo, dado, de tudo o que eu investi em Portugal, para voltar outra vez. Mas eu não, assim não. Mas sofri muito, porque era um verdadeiro amor. Mas eu tenho muito orgulho. Quando decido uma coisa, pode cair o céu e a terra que eu não mudo de ideias.E tiveram filhos?Não.Mas depois voltou a casar-se?Já casei várias vezes.Esta foi a primeira?Já tinha tido um casamento com uma portuguesa com quem tive um filho, que, infelizmente - se eu aluguei a boutique à Prada foi por causa do que lhe aconteceu - faleceu [de cancro]. Era o meu braço direito.Disse-me que teve vários casamentos. Quantas vezes foi casado?Três vezes. Três vezes casado oficialmente. E as outras... Mas não é porque eu sou complicado... porque, com falta de modéstia, ainda há duas ou três que ainda estão à espera pensando que eu vou voltar. Eu dou-me bem com toda a gente. Eu guardo boas relações com toda a gente.E além desse filho, tem mais filhos?Uma filha.Tem netos?Tenho. Dois netos.E alguém, a sua filha, está ligado à empresa?Não, não. A minha filha é investigadora. Está na medicina. Bem quis, porque ela era um suprassumo na escola e eu pensei que ela era capaz de continuar e segurar os meus negócios. Mas não. É medicina, ela adora, é uma fanática daquilo que faz.Já percebi que não gostas de falar na idade, mas pensa na reforma?Não, a palavra reforma não existe para mim, não.É até dar?Até que veja que já não sou capaz de criar nada, porque se não houver criação não há gosto também. Criando, tenho depois de estar no outro dia para explicar como é que se faz. E isso dá-me garra, dá-me força. Não havendo isso, então já não vale a pena.No futuro, quando já cá não estiver, acha que a marca vai continuar?Ah, isso... Não me preocupo com isso. Não tenho absolutamente preocupação nenhuma com isso.. Porque sentiu necessidade de escrever a sua biografia, Metade de Mim, lançada há dois anos?Para já, para tentar fazer perceber aos jovens que a moda é muito complicada mas que, mesmo em tempos difíceis, se consegue. E quis contar um bocadinho a minha vida, aquilo que eu passei com os meus pais em homenagem aos meus pais, à minha mãe sobretudo.O capítulo sobre o sonho de abrir uma escola de alta custura ficou por escrever, visto que esse sonho não avançou.Não, e estou muito desiludido com o presidente da Câmara de Guimarães, porque ele prometeu, até me disse que já tinha um local, e eu ofereci-me para trabalhar de borla. Eu não queria dinheiro. E nada. Esta profissão vai acabar por acabar. Os governantes de Paris já começaram a despertar, a perceber que, se não se fizesse nada iria mesmo morrer a alta costura em Paris. E já se está a fazer como se fazia no meu tempo: vais para a escola durante um dia e vais cinco dias para o atelier. E ali aprendes desde o início, a vergar o dedo para pegar na agulha.Quem sai das escolas de moda não sabe?Não sabe. Se o professor já é mau.... Mas o que é aqui também é lá fora. Eu, por acaso, depois de trabalhar muitos anos por minha conta, achei que faltava qualquer coisa e inscrevi-me numa escola. Dei outro nome. Levava óculos, não sei porquê, ninguém me conhecia. E eu lá estava a olhar para o professor, a ouvir o que é que ele dizia. Passados dois dias, o professor veio ter comigo e disse: 'O senhor trabalha na moda? Eu ia pedir-lhe para não vir mais. Porque eu não me sinto bem a dar as aulas. O senhor sabe muito melhor do que eu'. E eu deixei de ir. Mas quis saber como é que eles fazem. Eles não têm formação. E se não têm, como é que podem ensinar o aluno?Disse que clientes portugueses são escassos e de tempos a tempos. Porque é que pontualmente faz um desfile de apresentação de coleção?Este desfile é para mim. Uma pessoa tem que se meter à prova e ver a reação, ver se realmente ainda está bom para trabalhar. Eu acho que sim. Se não fizesse isso ficaria muito triste, porque uma coleção custa muito dinheiro. Muito dinheiro.Quem é que vai a estes desfiles? Amigos?Amigos e aqueles clientes que ainda podem vir. Há alguns com quem se perdeu um bocadinho a conexão... Faz despertar um bocadinho a clientela. E também a pensar um bocadinho nos média.Para dizer que está cá.Se não fazes moda, como é? É triste. Um país sem ter... ModaLisboa e Portugal Fashion é um horror. Isso é um horror.Só fez a 4ª classe, não foi?Só.Alguma vez pensou, quando era miúdo ou quando partiu de assalto para França, que chegaria onde chegou?Se eu não pensasse nisso, não partia. A maior parte, claro, quer e não chega lá. Mas eu tinha a certeza absoluta, porque eu via na minha evolução, eu nunca me contentei. Antes de ir para o Joseph Camp eu ganhava um salário milionário. E eu deixei isso para ganhar três vezes menos. Mas sabia que ali era a casa que eu queria para ir ao pormenor. Não era qualquer um que deixava isso. Mas eu estava feliz. E ainda bem que fui. Tinha razão. Na moda sempre tive razão. Só não tive razão no coração. Agora, na moda, sim..Ícones mundiais da moda de luxo estreiam-se no imobiliário em Portugal .Português Miguel Castro Freitas é o novo diretor criativo da marca de moda francesa Mugler. "É uma honra".