Todas as geografias do mundo

<em>Suzanne Daveau</em>, documentário muito convincente de Luísa Homem, cineasta de <em>As Cidades e as Trocas</em>, tem esta semana uma estreia limitada. Retrato feminino de Suzanne Daveau, geógrafa francesa que correu mundo e tornou-se uma referência académica em Portugal.
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Não é a última palavra de cinema documental de arquivo mas é algo de novo, novíssimo no processo de um retrato biográfico. Em causa, Suzanne Daveau, geógrafa francesa que se apaixonou pelo geógrafo Orlando Ribeiro e trocou o ensino em África por uma carreira académica em Portugal.

Uma mulher fascinante e pioneira que Luísa Homem segue através de uma longa conversa - sim, o cinema pode ser processo de escuta da palavra, mesmo quando aqui não há um único plano da senhora a falar. Tudo é escutado, num off, ora em português, ora em francês. No lugar da tradicional entrevista estão imagens de arquivo, planos de Super 8 feitos até 2018, fotografias e documentos. No final das duas horas ficamos íntimos desta mulher de 97 anos que sempre acreditou na geografia humana.

Presente no Festival de Roterdão e logo depois convidado para dezenas de outros festivais internacionais, Suzanne Daveau é mais um atestado de uma fase saudável do cinema documental nacional, sobretudo no impacto artístico que granjeia lá fora. Predisposto em quatro capítulos, o filme dispensa a habitual cronologia da vida da pessoa retratada. Inteligentemente, o início é logo a sua história de amor com Orlando Ribeiro, um encontro num congresso de geógrafos em 1960, em Estocolmo, mesmo apesar do português ainda não ter o divórcio assinado pela sua ex-mulher. No segundo tomo, vemos a vida de Suzanne em África, no final dos anos 1950 quando foi convidada em Dakar a inaugurar a universidade local. Um período onde fez grandes descobertas e aventuras no terreno. Segue-se o capítulo da sua juventude e formação em França, sobretudo a forma como lutou para ser uma mulher com estudos num país dilacerado pela guerra. A realizadora leva a geógrafa para o local onde passou férias, junto à fronteira com a Suíça, local que foi o objeto de sua tese. Por fim, regressamos a Portugal para acompanhar a sua vida no nosso país e a forma como se relacionou com a academia e assistiu a uma mudança da disciplina da geografia.

Entre o espaço-mundo da sua vida profissional e o espaço-casa da vida privada, Suzanne Daveau é um olhar documental que também se faz de silêncios. Aí está o ganho, mas também na forma como a música original de Avelino Santollala, Márcio Pinto e Bruno Silva é organizada. Aos poucos, percebemos que é um retrato de paixão feminina, feito como uma delicadeza sempre subtil. E é sobretudo uma partilha de conhecimento, mas daquele que traz a alma ao saber e lembra que a geografia tem de ser sempre humanista para poder ser ciência. Pode-se apenas questionar se esta duração, duas horas, ajuda à acessibilidade do filme para um público mais vasto, mas fica a garantia que não se está perante uma tese académica. Há aqui cinema e um gesto de tributo pela sabedoria de uma visão global da terra e do homem.

Além de tudo, Luísa Homem evita o "slide-show" da coleção de fotografias de Suzanne, cuja voz parece comandar por intuição cinematográfica a ordem do registo daquelas imagens. Imagens entre o passado e os nossos dias. O tempo e o mundo andam por aqui...

dnot@dn.pt

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