O espetáculo de dança contemporânea O Rei no Exílio estreou em 1991 no Festival Klapstuck, na Bélgica. Foi concebido pelo bailarino e coreógrafo Francisco Camacho no âmbito do programa Europália Portugal. Foi um sucesso e projetou a carreira do artista dentro e fora de portas. “Na Bélgica, a peça correu muito bem. Era um festival importante, nomeadamente na dança contemporânea. Comecei a ter convites para ir a outros países. Nesse mesmo ano, também estava com uma peça da Meg Stuart. Comecei a viver finalmente da dança e da circulação através do meu solo e peça da Meg Stuart”, diz Francisco Camacho a DN.A conversa vem a propósito da reposição do espetáculo, numa versão revista deste solo de dança contemporânea, O Rei no Exílio - Remake, no Clube Estefânia - Espaço Escola de Mulheres, em Lisboa, de 3 a 7 de dezembro. Uma nova apresentação do espetáculo que será precedida da apresentação de um livro sobre o percurso do artista e o processo criativo deste solo marcante na sua carreira.O pai de Francisco Camacho foi o ponto de partida desta peça, criada na sequência da sua saída do país para Nova Iorque, entre 1986 e 1990, para estudar dança contemporânea. “Eu perdi o meu pai aos dez anos, e nestas minhas pesquisas em Nova Iorque, sozinho, no estúdio, começou a surgir a questão do meu pai. Acho que só comecei a enfrentar essa perda e a lidar com ela de outra maneira já jovem adulto. Nunca tinha aprofundado o que é que era, de facto, essa ausência na minha vida e no desenvolvimento da minha personalidade”, revela o coreógrafo. “E comecei a trabalhar com alguns dos seus hábitos. Ele fumava muito, o beber o whisky com o café, não era uma coisa diária, mas eram aqueles rituais quando ele podia relaxar à sexta-feira, depois da semana de trabalho, depois de jantar. O fumar era constante. O meu pai era também um homem muito reservado, recatado, era distante”, revela. Naquele tempo em Nova Iorque, recorda o coreógrafo, faziam-se muito solos, e muito centrados no próprio intérprete. “Quando comecei a trabalhar não quis cair no mesmo erro, tinha que abrir este universo do meu pai. Podia ir buscar uma figura exterior, não fazer propriamente um trabalho de personagem, como no teatro, mas socorrer-me de uma figura que me permitisse criar um interface, em que não sou eu completamente espelhado, nem o meu pai, mas é uma outra pessoa que está aqui em diálogo entre nós e que cria um filtro”. . A ideia de exílio começou a aparecer, ele como que exilado em Nova Iorque a aprender dança contemporânea, naquela altura uma área ainda incipiente em Portugal. Esta ideia de exílio levou-o aos reis de Portugal e, finalmente, ao Rei D. Manuel II, exilado em Inglaterra. “Era perfeito, foi rei sem pensar que o iria ser, porque o pai foi assassinado e o irmão mais velho, que seria o sucessor natural da coroa, também foi assassinado no mesmo atentado. E ele de repente viu-se rei durante dois anos. Mas ele estava bem no seu exílio, a estudar os seus livros e a fumar os seus cigarros, como o meu pai. Também havia ali uma ligação”.Francisco Camacho explica que também lhe “interessou a questão da transição de um regime para outro, transição da Monarquia para a República, e muito a questão de agir ou não agir, as pessoas querem que eu aja, mas eu quero e não quero, por um lado sim, por outro não”. Esta ambivalência está expressa no espetáculo, com a personagem do último Rei de Portugal, exilado em Inglaterra com os seus vícios e o vazio do seu destino.Trata-se de um espetáculo que junta dança e teatro e texto também. “Sem a colaboração da Fernanda Lapa, eu teria patinado, teria sido mais difícil para mim conseguir essa ligação da dança e do teatro, em que eu sinto que as duas linguagens mantêm ainda a sua força, não se anulam uma à outra”, diz o coreógrafo, recordando como o trabalho com a atriz, encenadora e diretora artística da Escola de Mulheres até falecer (em agosto de 2020), foi determinante na criação deste seu primeiro solo e o remake de 2013. . Tudo isso está descrito no livro O Rei no Exílio: Génese e Transformação de um solo (1990-2015), editado pela EIRA, estrutura artística de que Francisco Camacho é membro fundador e diretor artístico. O livro, escrito pelo coreógrafo e com prefácio do investigador Ezequiel Santos - também antigo bailarino e crítico -, revela como chegou à dança contemporânea e como nasceu o solo que lhe “abriu as portas internacionais”, numa retrospetiva do seu trabalho. “Há aqui um lado de dar a conhecer um processo, porque a produção escrita sobre dança em Portugal tem crescido um bocadinho, mas é sempre muito diminuta. A Marlene Monteiro Freitas tem um livro sobre o trabalho dela, a Vera Mantero penso que também, e a Sílvia Real tem uma publicação sobre o ciclo de solos dela, mas é pouco ainda, e quanto mais houver, melhor”, considera o coreógrafo. “Quando leio livros de outros artistas, não é que eu vá fazer o que eles estão a fazer, mas perceber como é que eles trabalham também me faz refletir sobre o meu trabalho. Crio um diálogo interno entre mim e aqueles artistas sobre os quais estou a ler. E era nesse sentido, sendo que eu gostaria que o livro chegasse não só ao público que já tem uma ligação à dança contemporânea, mas que conseguisse, de alguma forma, chegar às pessoas que são só espetadores. Com o livro conseguem perceber o que é que pode ser um processo criativo”. . A obra é um olhar documental sobre sobre o processo criativo em torno da peça original de 1991, a importância do teatro para o seu trabalho, e tem também um capítulo sobre um filme que foi feito sobre O Rei no Exílio por Bruno de Almeida para a RTP, em 1992. As páginas incluem imagens de cadernos e outros objetos mais pessoais do coreógrafo, mostrados pela primeira vez em 2022, numa exposição sobre o bailarino no Teatro Cerca de São Bernardo, em Coimbra, que organizou um ciclo em torno do seu trabalho. “O livro tem inserts, tem umas páginas que se abrem e desvendam fotografias de alguns destes objetos que estavam na exposição, com um textinho. O Ezequiel gostou muito desse lado da exposição e achou que podíamos manter no livro essa presença de objetos, esse lado mais pessoal, mais íntimo, em diálogo com o lado mais profissional”.O livro conta também com testemunhos de pessoas que trabalharam com Francisco Camacho na peça, como a coreógrafa e figurinista Carlota Lagido e o desenhador de luzes e colaborador de longa data, Frank Laubenheimer. E também do cineasta Bruno de Almeida. . O filme, explica Francisco Camacho, “foi gravado em 1992, a partir da versão original de palco de 1991. Foi filmado todo em película 35mm com uma equipa de cinema mesmo, num estúdio de cinema em Nova Iorque, é como se fosse um filme. Tem muita montagem. O Bruno optou por manter a ideia da quarta parede, como há no teatro. A câmara entra e sai às vezes, mas mantém, maioritariamente, este ponto de vista do espetador, de alguém que se senta numa plateia e está a ver um filme. É um objeto particular, ainda não há muitos, apesar de ser muito antigo, é um modelo que não se encontra ainda muito. ”O filme tem 30 minutos, a mesma duração da peça original, em 1991, na altura uma exigência dos programadores da Europália. Quando foi revisitada, em 2013, o solo ficou mais longo, entre os 45 e 50 minutos. O remake, que estreou no Uruguai, foi feito em plena crise financeira em Portugal e depois de mais leituras de Francisco Camacho sobre D. Manuel II. “Comecei a perceber que o Rei falava imenso de crise, e em 2013 estamos no auge da crise, com a troika já em Portugal, eu via na minha zona de Arroios imensa gente a chegar à rua. Pois esta coisa da crise já vinha de D. Manuel II, e se calhar de mais atrás ainda. E começou a entusiasmar-me trabalhar a crise, essa questão mais ligada ao poder, reforçar ainda mais o poder de agir ou não agir. Retirei textos que se prendiam diretamente comigo”, revela. A peça tem textos de D. Manuel II, António Cabral e do próprio Francisco Camacho.Em 2025 os temas abordados neste solo continuam atuais, crê o coreógrafo. “A crise mantém-se, em relação ao exílio infelizmente vemos muitas pessoas a serem exilados à força. E podemos quase considerar uma espécie de exilados aqui os de Lisboa e do Porto, e já de Braga, as pessoas que deixam de conseguir viver nos centros históricos devido à gentrificação”, sublinha .No remake de O Rei no Exílio o coreógrafo mudou alguns elementos. “Nós tínhamos aquele manto vermelho no original, uma estratégia mais realista, naturalista, de figurinos. Já não tenho aquela fogosidade inicial, aquela vontade de estar sempre on top. E, portanto, também quis mudar o aspeto próprio, não só a minha fisicalidade, em alguns momentos - embora eu retenha um lado mais energético, não o quis abandonar, porque faz parte da linguagem coreográfica que a peça propõe, e eu queria mantê-la. Mas queria aliviar um pouco essa coisa juvenil”, explica. “A Carlota repensou o figurino, retirámos o vermelho completamente, já não há vermelho na peça, agora há um manto de pelo, eu permito-me estar mais curvado, às vezes mais arrastado, às vezes permito-me ser uma coisa mais animal. Esse foi um lado que eu também quis mudar - assumir a minha idade”. Será esta versão de O Rei no Exílio - Remake, que poderá ser vista a partir de amanhã e até dia 7 de dezembro no Clube Estefânia - Espaço Escola de Mulheres, em Lisboa. Antes do início do solo de dança, passará sempre primeiro o filme de Bruno de Almeida. O livro O Rei no Exílio: Génese e Transformação de um solo (1990-2015) é apresentado amanhã antes do espetáculo. .Carlos Rodríguez dança ‘Eterno’ e mostra Picasso entre a luz e a sombra.Olga Roriz: "Libertei-me do pudor. Eu dispo-me neste espetáculo. Integralmente"