Samuel Mariño vai interpretar no CCB, a 17 de novembro, com o Gabetta Consort, obras de Händel, Vivaldi, Purcell e Graun.
Samuel Mariño vai interpretar no CCB, a 17 de novembro, com o Gabetta Consort, obras de Händel, Vivaldi, Purcell e Graun.Foto: Olivier Allard

Samuel Mariño: “Não creio que me sinta livre na Venezuela, mas nenhum país me faz sentir realmente livre”

O sopranista venezuelano, antes de se juntar ao Gabetta Consort, no CCB, no dia 17 de novembro, para interpretar 'O Delírio Amoroso', de Händel, explicou ao DN o que torna a sua voz única.
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É sopranista, não contratenor. O que é que o torna diferente de outros cantores, como Philippe Jaroussky?

Acho que nós - e essa é a beleza da coisa - somos todos diferentes, e eu realmente acolho a diferença de cada um. Também adoro Philippe Jaroussky, mas se falarmos de técnica, eu tenho uma voz aguda, mesmo quando falo. Para as pessoas que lerem isto, quando falo, a minha voz é muito aguda. Se por acaso estivermos ao telefone, talvez acreditem que sou uma mulher a falar, e não preciso de usar um mecanismo de falsete, que Philippe Jaroussky ou outros contratenores usam, porque, fisiologicamente, não tenho uma maçã de Adão grande, como muitos homens têm. A minha laringe não se desenvolveu completamente.

Então, é naturalmente assim?

Sou assim naturalmente. Soa estranho, porque eu canto ópera, o que não é nada natural. É essa a minha luta com a ópera, tento que seja o mais natural possível. Mesmo que seja um som artificial, porque temos de chegar a uma plateia de mil ou duas mil pessoas. Temos de fazer algo com o microfone, temos de fazer algo com o corpo, o que não é realmente natural. Quando falamos, não estamos a um metro de distância do público, mas na ópera temos de estar. Mas eu nasci assim naturalmente e tento fazer o mesmo na ópera, quando canto. Tento manter tudo o mais natural possível.

Em que momento decidiu que queria cantar, especialmente tendo em conta que nasceu com uma voz que desafiava os padrões?

Acho que não decidi sozinho. Terminei o Ensino Secundário bastante cedo, aos 16 anos, por isso estava a explorar coisas novas. Foi a minha mãe que me disse que devia estudar música, canto, porque ela via algo de especial em mim e sabia que eu adorava música. Mas, como disse antes, procurava sempre coisas naturais. A música foi sempre algo natural para mim, algo tão óbvio, talvez até demais. Simplesmente fazer música. Antes de ser músico, dancei ballet, por isso estava muito concentrado na disciplina. No ballet é preciso acordar muito cedo e acabar os ensaios muito tarde, e é preciso fazer isso todos os dias, porque é assim que funciona. É preciso muita disciplina. Para mim, música ou canto não era algo tão estruturado. Era algo como simplesmente abrir a boca e cantar. Nessa altura, claro, eu ainda não era profissional. Mas foi por isso que não o quis fazer. Foi a minha mãe que me disse: “Tenta cantar, é algo de que gostas, algo que talvez te seja natural, algo que faças bem.”

Foto: Olivier Allard

Foi difícil começar, mesmo com o ballet, na Venezuela? Era algo acessível?

Acho que sempre foi acessível, sim, mas o problema são os preconceitos. Quando és homem e danças ballet, ou quando és homem e te dedicas às artes em geral, a qualquer arte, dizem sempre: “Isso não é coisa de homens, devias gostar de carros, ou de desporto”, ou algo do género. Portanto, acho que era acessível quando estudava, mas claro que havia o preconceito de ser homem e artista.

Como é que fez este exercício de começar a cantar depois de começar a dançar, e depois cantar música barroca, que é algo tecnicamente muito exigente?

É sim. Foi uma decisão difícil para mim, porque queria muito ser bailarino. Dançar é a minha paixão. Adoro dançar, especialmente ballet. Tentei fazer as duas coisas ao mesmo tempo, mas foi impossível para mim, porque cada uma delas exige muita dedicação. E, como se diz na Venezuela - e provavelmente também em Portugal -, não quero ser aprendiz de tudo e mestre de nada. Não quero fazer isso. Eu sabia que se fizesse ballet, teria de me dedicar a 100% ao ballet. Se cantasse, teria de me dedicar a 100% ao canto. E fisicamente também não era compatível, porque o ballet tem a ver com compressão, com figura estética, e o canto tem a ver com a expansão, porque é preciso mais ar. Foi uma decisão difícil, mas decidi seguir a carreira de cantor, e aqui estou hoje. E sim, enfrentei muitos preconceitos quando era jovem, e ainda enfrento. Não creio que a luta tenha realmente terminado, trata-se de derrubar e empurrar as barreiras. Sinceramente, acho que estamos apenas a começar.

Foto: Robbie Ewing

Esse esforço significa que o talento é, na verdade, trabalho árduo?

É trabalho. Acredito que tenho este talento, tenho esta voz, sim, mas acredito que o meu talento é ser trabalhador. Gosto muito de trabalhar, é isso que adoro, adoro mesmo trabalhar. Em todos os trabalhos que já tive na vida, desde a Disneyland até tomar conta de crianças, gosto muito de trabalhar. Sou uma pessoa dedicada, gosto de fazer coisas. Quando decido fazer algo, dedico-me e faço. Esse é o meu maior talento.

Para além de música antiga, no seu último álbum, Lumina, também canta composições clássicas, como Dvorák, Schubert, Gounod. Qual é a sua preferência, tendo em conta que é tudo tecnicamente muito diferente?

Entre o barroco e o moderno, é muito complicado, porque, como latino-americano - especialmente como venezuelano, que somos um povo bastante caribenho -, adoro música barroca, por causa dos ritmos, com todas estas síncopes, todos estes ritmos quase como de dança. Além disso, adoro a música barroca por esta expulsão extrema de emoções. São emoções muito, muito intensas. Mas o que eu adoro no período clássico, ou o que quer que seja, no período posterior, é o lirismo, é a letra. A letra e este divino que encontramos em Dvorák, em Gounod. Esta busca constante do som divino é algo de outro mundo.

Por que motivo Händel é o compositor mais presente no seu repertório?

Para ser sincero, é porque a coisa de que mais gosto no mundo é o teatro. Eu adoro teatro. Händel é um compositor teatral. Acho que ficaria muito aborrecido, talvez, só com gravações de Händel. Acho que Händel é algo para se ver, algo para se apreciar, porque ele é muito teatral, com muitos efeitos o tempo todo. E, devo dizer, o Händel é muito, muito, muito gentil com a voz. Não compõe como um Vivaldi, que é supervirtuoso, mas eu não me interesso por isso, não me interesso por esse virtuosismo máximo. Interesso-me mais pelas emoções profundas, e Händel é muito bom nisso.

O amor é um tema frequente na música que interpreta. É amor pela música ou considera-se uma pessoa apaixonada por tudo?

Eu acredito muito no amor, acredito mesmo, mesmo que seja muito difícil. Eu sei que é muito difícil acreditar no amor, principalmente com todas as guerras que temos hoje em dia, todo o ódio, muito ódio. Sinto que hoje vivemos numa época em que as pessoas têm muito ressentimento, mas eu ainda quero acreditar no amor, talvez seja essa a minha ingenuidade, mas acredito mesmo no amor como cura para a guerra, sim.

Sente que também transmite essa mensagem quando canta?

Não sei se a minha mensagem quando canto será de amor, mas às vezes é muito triste, muito triste mesmo, e acho que tem a ver com emoções, com libertar-se e simplesmente ser livre, sentir-se livre. Quero que o público vá ao concerto e se identifique talvez com a alegria da personagem, mas também com a dor, porque acho que é essa a beleza da ópera. Às vezes sentimos coisas tão profundamente dentro de nós, que a música pop ou talvez o rock, outros géneros musicais, não conseguem alcançar, porque estes géneros musicais são mais sobre o quotidiano, sobre o dia a dia, mas na ópera são as emoções muito, muito profundas, e é com isso que quero que o público se ligue a mim, a essas emoções profundas.

A sua voz vai mudar, como por exemplo aconteceu com Plácido Domingo, que era tenor e agora é barítono? Para onde sente que vai a sua voz?

Está a mudar completamente. Não encontro grande alegria em cantar muitas notas rápidas e peças virtuosas, porque a minha voz é talvez mais encorpada, talvez um pouco mais pesada, e eu também quero assim. Sempre senti que estas coloraturas, estas notas rápidas, eram impressionantes. Quer dizer, é muito impressionante para o público, mas no final de contas é tudo muito superficial. Assim, quero alcançar um pouco mais de profundidade na minha voz para criar um repertório talvez mais profundo também, mais profundo nas emoções, mais profundo nas composições, mais complexo. A minha voz mudou bastante nos últimos dez anos, principalmente porque algumas coisas se tornaram mais fáceis, enquanto outras mais difíceis.

Tem algum ritual antes de subir ao palco?

Não tenho nenhum ritual, porque já vi muitos colegas meus que têm rituais e percebi que, no dia em que se esquecem de alguma coisa, ficam a tremer. Tento não ter nenhum ritual. Vivo a minha vida quotidiana como qualquer outra pessoa. Adoro fazer compras no supermercado, adoro passear o meu cão. Adoro este tipo de coisas e gosto de o fazer como se fosse um dia normal da minha vida.

Vem a Lisboa com o Gabetta Consort. É difícil adaptar-se à frequência e ao temperamento dos instrumentos, tendo em conta que fazem uma interpretação historicamente informada?

É realmente muito difícil, mas com Andrés Gabetta é ótimo, tal como com a irmã, a violoncelista Sol Gabetta. São tão bons com os seus instrumentos que se sentem livres. Têm total liberdade. Então, se eu fizer algo, eles vão segui-lo. Se eu fizer algo, eles estarão sempre comigo. E é tão bom que acho que o violino do Andrés é como uma extensão do braço. É realmente algo que lhe pertence. E não é como quando se vê outros músicos que lutam muito com o instrumento. Ele tem total liberdade com o instrumento e isso é ótimo. Porque é um excelente músico. É algo que me deixa sempre muito entusiasmado, tocar com ele.

Canta outras coisas para além de música clássica e antiga?

Este é o tipo de música que mais ouço. Mas também ouço muitas outras coisas. E estou a pensar explorar outros géneros também. Acho que vai acontecer em breve, porque já me aconteceu na minha carreira musical. Gravei o meu primeiro álbum, com Händel e Gluck, para mostrar ao público quem sou. E posso gravar como cantor barroco. Depois, gravei Mozart para mostrar ao público que também posso cantar esse repertório. E agora gravei o Lumina, que, para ser honesto, é mais como uma nota de agradecimento ao público, porque gravei grandes clássicos que o público adora. Essa é a minha forma de agradecer. Agora, a próxima gravação que quero fazer, acho que me pede para me afastar um pouco do espetro clássico. Claro que sou cantor de ópera e a minha voz terá sempre um toque operático ou lírico. Mas acho que estou entusiasmado por me distanciar um pouco do espetro da ópera clássica e talvez explorar mais a música pop.

Há alguma colaboração ou papel de sonho que gostaria de ter no futuro?

A minha colaboração de sonho seria cantar com um artista pop. Adorava cantar com a Billie Eilish. Adoro a Billie Eilish. Essa seria uma das minhas colaborações de sonho.

Por outro lado, há algo que de certeza nunca fará ao longo sua carreira?

Não creio que conseguisse colaborar com um regime como o nazi ou outro qualquer. Eu jamais me venderia a isso. É muito difícil para mim. Mesmo hoje, é muito difícil. Tenho uma ética, uma moral, uma forma de pensar. Não quero fazer parte de algo que não me represente. Ou algo que não sou. Por isso, será difícil para mim cantar num país ou numa situação em que as pessoas não sejam livres, por exemplo.

Sente-se livre na Venezuela?

Há muito tempo que não vou à Venezuela, talvez há uns cinco anos. Não creio que me sinta livre na Venezuela, mas também não me sinto livre na Alemanha. Nenhum país que me faz sentir realmente livre, mas acho que me sinto livre. Penso que a liberdade mais importante é a liberdade que temos connosco próprios. Estou a tentar viver esta liberdade que tenho comigo mesmo. Estou a tentar libertar-me do meu passado. Quero tentar libertar-me do que as pessoas dizem sobre mim, do que as pessoas escrevem sobre mim. Quero sentir-me livre. É algo que ainda está em fase de pesquisa.

O que é que o público português pode esperar de Samuel Mariño?

Nunca vivi em Portugal, mas para mim é algo muito próximo. Sempre foi algo muito próximo, pelo menos para pessoas como eu, de Caracas, da Venezuela. Cresci com pelo menos dez - talvez até mais - descendentes de portugueses. Primeira geração de portugueses nascidos na Venezuela. Alguns deles nasceram mesmo em Portugal e aprenderam espanhol na escola. Lembro-me de tudo isso. Portanto, para mim, Portugal sempre foi algo muito próximo da Venezuela. Diria que é ainda mais próximo do que Espanha, mesmo que a minha avó seja espanhola. Não me lembro de ter crescido com a primeira geração de espanhóis na minha turma, mas lembro-me da primeira geração de portugueses na minha turma. Assim, penso que o público vai esperar o que já sabe sobre os venezuelanos. Somos muito apaixonados. Somos muito exagerados. Somos pessoas muito sinceras. E eu só quero proporcionar às pessoas uma experiência através das emoções da ópera.

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