A cultura como um meio para uma Europa mais unida. Esse foi o trabalho de toda a sua vida. Hoje precisamos disso mais do que nunca?Acho que sempre foi assim. É importante entender que este não é um problema de hoje. Há 2000 anos que há um desejo de união. É uma história sem fim, na qual queremos criar ainda mais integração. Mas acho que nunca vivemos um período tão bom como no pós-Segunda Guerra Mundial. Desfrutámos dessa paz. Ao mesmo tempo, a insegurança reside no facto de, ao fim de duas ou três gerações, as pessoas já não saberem o que lhes dá prazer. Venho de uma família de dez filhos, três gerações a viver na mesma casa. Os meus avós nasceram na década de 1880. Os meus pais em 1920. Eu nasci em 1963. Todas estas pessoas estavam sentadas à volta da mesa, um pouco como no filme, Die Blechtrommel, O Tambor, inspirado no romance de Günter Grass, sobre um rapaz que não queria crescer e a sua experiência da Segunda Guerra Mundial. Volker Schlöndorff, um realizador de cinema muito famoso, fez um filme sobre isso. E eu como o mais novo de dez filhos via-me debaixo da mesa daquela família, a olhar para o mundo em redor. É que eu cresci nos anos 60, 70, também em tempos complexos. Assim, acredito na Europa porque ouvia à mesa o que era a realidade. De todos os relatórios sobre a Europa, de Mario Draghi e de tantos outros pensadores dos últimos anos que Ursula von der Leyen pediu, a cultura não fazia parte. A Ernst & Young é que fez um excelente relatório no qual estima que em 2024 havia cerca de oito milhões de trabalhadores no setor cultural na União Europeia. E fazemos parte deste futuro. Porque estamos atrasados nesta nova porta de entrada global da União Europeia, com uma abordagem económica e liberal, sobre como trabalhar em conjunto e como inovar. Portanto, se queremos manter a Europa onde está, precisamos de ser competitivos. E isso está também presente na bússola cultural, no AgoraEU, em todos estes projetos europeus, no novo quadro financeiro plurianual. É sempre um equilíbrio muito delicado que precisamos de encontrar no mundo das artes: como sermos um organismo independente e como fazermos parte desta responsabilidade europeia que temos dentro do sistema político-económico em que queremos viver hoje.Quando pensamos na Bélgica, pensamos em arquitetos como Victor Horta, em pintores como Magritte, em escritores como Simenon. Na música, pensamos em Brel. Na BD em Hergé ou Peyo. Quando anda pelo mundo e diz que é belga, é bom saber que as pessoas pensam nestas figuras do mundo cultural?Certamente, sim, porque está a falar da modernidade, do século XX. Mas antes disso, éramos parte dos Países Baixos. E a Flandres e os Países Baixos sempre foram dominados pelos outros; pela Espanha, pela Alemanha, pela França, pelo Reino Unido. Todos estes países dominaram a Bélgica. Portanto, somos um país onde hoje, graças a isso, graças a esta migração, a esta diversidade, falamos todas as línguas, somos o país com maior diversidade na aceitação da língua alheia. E é ótimo ter essa diversidade, essa é a realidade dos países pequenos de todo o mundo. E isso também se aplica à Europa. É a cocriação que nos diferencia dos produtos chineses e americanos. Nós ousámos, com a diversidade de línguas, com os programas europeus, criar novas séries onde tínhamos todas as línguas diferentes. No final, mantivemos 15 a 20% da quota de mercado, que vimos perdendo desde a Segunda Guerra Mundial para os americanos, que se saíram muito melhor do que nós na sua diplomacia pública, enviando a vanguarda americana até para a União Soviética nas décadas de 50 e 60. Os melhores expressionistas americanos podiam fazer exposições em Moscovo na época. E lembro-me, em criança, que tínhamos um Instituto Americano em Bruxelas. Foi ótimo. E sou um dos últimos bolseiros do Instituto Americano no USIA, numa era pré-Erasmus. Os americanos fizeram um ótimo trabalho ao convidar investigadores de todo o mundo nas primeiras décadas após a guerra, e eu fui da última geração a ser convidada para um programa de intercâmbio nos EUA. Depois, na década de 70, foram para o mundo árabe e deixaram os europeus de lado. É esta a realidade que sentimos hoje: estamos perdidos para os americanos. Começou já nos anos 70 e 80, no âmbito geopolítico. E hoje estamos a ser “atacados” por ambos os lados, pelo Ocidente e pelo Oriente. Precisamos de reencontrar esta identidade que partilhamos na diversidade, e que faz desta democracia o caminho que Michelangelo Pistoletto, o fundador da Arte Povera, artista italiano que ainda está vivo aos 92 anos, defendeu no ensaio O Terceiro Paraíso. Ele sentiu a necessidade de encontrar um novo equilíbrio entre o material e o espiritual. No Terceiro Paraíso, faz uma reconfiguração do símbolo do infinito, a que acrescentou o terceiro círculo. Esta forma do infinito acrescentando um terceiro círculo é uma filosofia antiga do que a Europa precisa de se tornar. E ele fez este símbolo em todo o lado. É por isto que os artistas são tão importantes para as narrativas. Fui um empreendedor cultural toda a minha vida. As pessoas que criam as narrativas são quem escreve, quem desenha, quem faz arte. Como o Prémio Nobel da Literatura húngaro [László Krasznahorkai]. Estamos a ir tão depressa que precisamos de abrandar novamente. Ele não está a falar sobre a destruição da guerra, mas sobre a realidade da sociedade. São elementos de que Lea Ypi, economista e filósofa albanesa da London School of Economics, fala: a migração e como precisamos de a abraçar. Estes são os novos pensadores que temos de ouvir e que espero que possam inspirar os nossos políticos, os nossos líderes, precisamos disso. A democracia é também burocracia, precisamos de estruturas, e há o perigo de desmantelar essa estrutura. Vemos isso nos EUA hoje em dia, vemos como se desmantela a segurança social e assim por diante. Não é uma questão de esquerda ou de direita. Mas há esperança. Vimos que o D66 venceu as eleições nos Países Baixos. Antes era visto como um partido de elite, mas o novo líder está a criar uma linguagem melhor para o que o D66 pode ser, como social-democrata, liberal europeu, liberal no sentido de humanismo, no sentido do que a sociedade precisa de ser. E é por isso que continuo otimista, nestes tempos sombrios, de que existe um futuro.Sabemos que os orçamentos para a cultura são cada vez mais reduzidos. Como conselheiro da ministra da Cultura da Flandres, quão difícil é convencer os líderes políticos da necessidade de investir?Continuo a acreditar que a educação é fundamental, pois a cultura ainda é muito elitista. Falamos de inclusão, mas temos um longo caminho a percorrer para abraçar a diversidade. E a melhor forma de unir todos é através da educação. Quando se juntam crianças de diferentes meios sociais, rendimentos e famílias, é preciso levá-las a museus e exposições. Eu próprio quando liderei o BOZAR, o maior centro de arte da Bélgica, passámos de 150.000 visitantes para 1,5 milhões porque tentei abrir as portas a todos. Penso que o sistema educativo ainda é a melhor abordagem. O que precisamos de fazer no sistema artístico é garantir que, se houver uma boa educação, estaremos a preparar a geração do futuro.Falava dos seus anos como diretor do BOZAR. Todos podemos aprender com a Bélgica que as artes podem unir as pessoas. Ou seja, apesar das divisões na sociedade belga, quando se trata de arte, podemos encontrar um belga flamengo a ler Tintin ou um belga francófono a ouvir Wim Mertens?Acho que tem razão. Penso que também tem a ver com a liderança e com a educação, com as amizades e com a abertura das pessoas. Haverá sempre pessoas conservadoras, desinteressadas e retrógradas. Mas na minha experiência, é possível convencer as pessoas. Tentei sempre dialogar com todos os partidos políticos, mesmo com os de extrema-direita e de extrema-esquerda. Fui ao parlamento, debater com eles e, se argumentarmos bem e apresentarmos bons argumentos, é possível dialogar. Ouvir os outros é essencial, assim como o bom senso. No final de contas, é como a Constituição Americana. Quando George Washington a escreveu, não escreveu uma constituição, mas sim algo de bom senso. Se conseguirmos isso, conseguiremos unir as pessoas e elas poderão ver a luz. Isto acontece, novamente, através da educação, da abertura do sistema e da diversidade. É preciso viver em harmonia, aceitando o outro, e a ortodoxia de certas ideologias, entre as quais a religião, tem um impacto muito negativo na convivência. Vemos isso no Médio Oriente. O mesmo se aplica à Ucrânia e à Rússia: precisamos de nos sentar juntos à mesa novamente e trabalhar no período pós-traumático após a guerra. Estou atento à realidade da Ucrânia e pergunto-me o que acontecerá às próximas gerações. Ainda ouço dos meus pais e avós a contar o que aconteceu nos nossos países, e é aí que precisamos de demonstrar empatia em relação ao colonialismo e ao pós-colonialismo, e como devemos lidar com estas comunidades. Por isso, não estou envolvido com o movimento woke e defendo as diferentes formas de construir pontes e reunir todos os parceiros à mesa. Não se trata de uma abordagem política. Devo dizer que estou no empreendedorismo há 40 anos e, em tudo o que fiz, foi possível. No BOZAR recebemos diplomatas, deputados, ministros. Bart de Wever, o nacionalista flamengo que é agora o primeiro-ministro da Bélgica, tem autoridade sobre a Escola de Belas Artes porque é uma instituição federal subordinada ao gabinete do primeiro-ministro. Introduzi isso na alteração da Constituição em 2001. A Ópera Nacional, a Orquestra Nacional, e a Escola de Belas Artes tornaram-se instituições federais segundo a Constituição. Hoje, até os partidos nacionalistas flamengos o reconhecem. Jan Jambon, que foi ministro-presidente da Flandres, é agora vice-primeiro-ministro federal para o orçamento e responsável por estas instituições, e está realmente empenhado. Nunca tinha ido à ópera até há uns meses, mas encontrei-o na La Monnaie, a ópera onde a minha mulher trabalha na equipa administrativa e que foi eleita a melhor ópera da Europa. Jambon veio e fez um discurso como se fosse algo que frequentava há 40 anos. Então, é possível que até estes políticos que fundaram partidos que queriam desmantelar o país possam subitamente mudar de opinião, deixando o seu orgulho de lado. Quanto ao rei, senti-me honrado por receber um título de nobreza, Foi um pouco estranho quando anunciaram que eu iria receber o título. O meu diretor na altura, um advogado muito conceituado, disse-me: “Não tem escolha, não pode recusar. Tem a responsabilidade de aceitar”. E foi isso que tentei fazer na minha vida: ser um exemplo. Sinto-me um funcionário público, no melhor sentido da palavra, um dignitário do meu país, sendo europeu e criando oito filhos numa família recomposta, com um filho adotado na Etiópia. Eu estava na Etiópia em 2002, quando o chef da embaixada faleceu vítima de sida. Liguei à minha mulher na altura e adotámos um menino de 10 anos. Veio para a Bélgica, encontrámos um chef na comunidade etíope, respeitamos a língua, etc. Ter aquele menino na família mudou completamente a nossa vida. Hoje um dos meus filhos tem uma companheira bávara em Paris, o meu filho etíope tem uma companheira de Londres, outro meu filho está com uma suíça e temos um deles com uma rapariga do Burundi. É uma nova realidade e todos nós podemos aprender. Quando nos reunimos, falamos francês, inglês, flamengo, todas as línguas, e isso para mim é europeu. Portanto, sou uma realidade viva do que é a Europa, e não sou o único. Os partidos populistas de extrema-direita dizem que antes era melhor. É isso que eles tentam fazer: criar uma opinião pública que ache que há tantos problemas no futuro que o melhor é não inovar, olhar para trás. E é aqui que entra a herança cultural europeia, temos de cuidar dela, pois é algo do nosso passado que nos une, em vez de nos separar.Estamos em Portugal, onde, como membro do Conselho da Europa Nostra e Presidente da Europa Nostra Bélgica, entregou o prémio Helena Vaz da Silva à pianista Maria João Pires. Se tivesse de escolher uma personalidade da cultura, das artes portuguesas, seria ela?Maria João Pires é um exemplo excecional, em todos os sentidos, na área da inclusão, da educação, da cultura educativa, da união das pessoas, do diálogo, da empatia, do bem-estar, tudo isto se reflete na abordagem holística da arte. Ela é tudo isso. E como mulher teve de lutar pelos direitos das mulheres na música clássica, onde 99% dos maestros, compositores e todo o repertório eram homens. Ela é uma dessas pessoas que tem uma energia positiva, porque sempre foi positiva, e isso, penso eu, é um grande símbolo do que a sociedade pode ser com Maria João Pires.."Para nós belgas a BD é como a cerveja ou o chocolate, faz parte do nosso património"