O Spirou de cartão à porta com a sua farda vermelha de paquete e o cabelo ruivo, exibindo a mensagem "Precisa de um novo passaporte belga? Contacte o consulado?" lança logo o mote: a sala de exposições do Instituto Camões em Lisboa recebe por estes dias (até 28 de abril) uma mostra que alia a seriedade de um documento de identidade e a mais belga das formas de arte - a banda desenhada..Envergando uma gravata com o Snoopy, bem no espírito do momento, o embaixador da Bélgica em Portugal, Serge Wauthier, junta-se a Willem De Graeve, antigo diretor do Museu da BD de Bruxelas, para explicar como surgiu a ideia de incluir personagens da banda desenhada no passaporte belga. "Na altura eu era diretor-geral para os assuntos consulares e, na Bélgica, a competência para emitir passaportes recai no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nas quatros diretorias que eu dirigia, tinha um diretor para os passaportes que era amante da banda desenhada. Eu também sou [risos]. Então ele perguntou o que eu achava de fazer a proposta ao ministro de colocar BD nas páginas em vez das câmaras municipais". A ideia foi bem recebida e o resultado está hoje patente no passaporte que o embaixador mostra com orgulho - e nas paredes desta exposição..Convencer o então ministro (hoje comissário europeu) Didier Reynders não foi difícil, ou não fosse ele próprio apreciador de banda desenhada. Mas a ideia não vinha sem riscos políticos. "O passaporte é um documento sério, a BD é mais vista como coisa infantil", explica o embaixador Wauthier num excelente português. Apesar desses risco, a proposta avançou e o resultado foi a inserção no documento de paisagens que se encontram em várias bandas desenhadas belgas e que são "verdadeiras obras de arte". Já as personagens criadas por alguns dos grandes nomes da BD belga - do Tintin de Hergé, passando por Lucky Luke de Morris, os Schtroumpfs de Peyo, Blake & Mortimer de Edgar P. Jacobs, Néron de Marc Sleen ou Natacha de François Walthéry -, essas, surgem como silhuetas cinzentas. Pelo menos a olho nu. Porque quando submetidas a luz UV, aparecem no esplendor de todos os seus detalhes..E foi com estas personagens e as suas aventuras que muitos belgas começaram a sonhar viajar. "A ideia", garante o embaixador Wauthier, "era começar o processo da viagem, o momento de encomendar o passaporte, de maneira onírica. Porque sonhar a viagem é já viajar na nossa cabeça"..A escolha das personagens que iam constar no passaporte é que não foi fácil - por excesso de oferta. Segundo o embaixador Wauthier, a ideia era ter "autores das duas grandes comunidades da Bélgica". De resto foi o diretor do Passaporte, Dominique Bulcke, quem, escolheu as personagens. Seguiu-se o trabalho de negociar com os autores, os descendentes ou editores sobre os direitos destas obras. E todos aceitaram que fossem usadas sem cobrar nada. "Acho que perceberam que era uma evolução histórica de um livro de divertimento para fazer parte de um passaporte oficial", conta o embaixador. O que permitiu que este passaporte, que além da beleza estética, passou de 24 elementos de segurança para 48, tenha mantido o preço. E dá a certeza a quem o detém de chamar a atenção dos guardas fronteiriços..Afinal a banda desenhada faz parte da identidade belga. "Para nós a BD é como a cerveja ou o chocolate, todos os belgas conhecem a banda desenhada, todos a leram ou continuam a ler, todos têm uma coleção de livros de BD em casa, maior ou mais pequena, mas sobretudo todos os belgas têm orgulho na banda desenhada, faz parte do nosso património", garante Willem De Graeve, passando a conversa, que começara em português, para francês. O antigo diretor do Museu da BD de Bruxelas aproveita para explicar as diferenças entre a BD belga e a dos EUA - "a Bélgica não inventou a BD, que veio dos EUA, mas inventámos a nona arte. Para nós é mesmo uma forma de arte. Que até provoca uma certa inveja noutros países". E dá um exemplo: "Quando eu trabalhava no museu, éramos visitados por muitos autores de BD americanos e eles tinham sempre uma certa inveja. Porque diziam que nos EUA também se lê banda desenhada, mas fazer-lhe um museu, num edifício tão bonito, não! Seria como fazer um museu sobre jogos de vídeo ou pipocas, é divertido, mas para os americanos não é cultura".E se para os americanos é a personagem, mais do que o autor que importa, para os belgas "Hergé, Franquin são artistas a quem damos o mesmo estatuto que a um escritor ou um pintor", acrescenta Willem De Graeve. Esse orgulho nacional une tanto valões como flamengos? "Sim, diria até que muitos belgas não se questionam se uma banda desenhada é originalmente francófona ou neerlandófona, porque tudo está traduzido.".Mas porquê esta relação privilegiada entre a Bélgica e a BD? "Pensa-se que tem muito a ver com o facto de a Bélgica, não sendo um país muito grande, ser um país complexo, com três línguas nacionais - neerlandês, francês e um pouco de alemão", explica Willem De Graeve. E com a proximidade dos Países Baixos e da França, foi sempre complicado para os escritores belgas publicar no seu país, sendo facilmente atraídos por Amesterdão, se fossem neerlandófonos, e por Paris, de fossem francófonos. "Quando a BD veio dos EUA, há cerca de um século, os editores belgas não gostaram e viram ali uma oportunidade: agora vamos publicar as nossas. Rapidamente a Bélgica se tornou na meca da BD, com os próprios autores franceses a virem a Bruxelas para serem editados", explica..Mas pode haver outra razão, esta cultural. "No passado fomos ocupados por quase toda a Europa, a Espanha, a Áustria, a França, os Países Baixos. E isso teve consequências também na comunicação. Na Bélgica falava-se francês, neerlandês, um pouco espanhol, alemão, mas sobretudo misturávamos as línguas. E rapidamente se percebeu que a comunicação visual era muito mais eficaz. Mesmo na pintura belga vemos que é muito narrativa - Bruegel conta uma história", explica De Graeve. E recua ao nascimento da banda desenhada: "A BD foi inventada em Nova Iorque no final do século XIX. E como era Nova Iorque nessa época? Era um cruzamento de todas as culturas do mundo onde nem todos falavam inglês. A única página do jornal que todos podiam apreciar era a da banda desenhada. Não admira portanto que a BD tenha nascido em Nova Iorque. Como não surpreende que quando atravessou o oceano tenham sido os belgas a apropriar-se dela. Porque fica bem com o nosso fascínio pela cultura visual"..O embaixador Wauthier leva-nos então numa visita guiada informal pela exposição, lembrando que a escolha das personagens e dos cenários em que surgem pretendeu retratar os cinco continentes. "Dominique Bulcke até foi mais longe, porque incluiu o foguetão de Tintin, que representa o espaço. E gosto muito do Schtroumpfs com o globo terrestre, que representa o que sentimos diante de um mapa, quando planeamos uma viagem"..Olhando para as páginas ampliadas do passaporte expostas no Instituto Camões, vemos Londres duas vezes, o Pacífico, os Alpes com Boule e Bill, a América do Sul, Moulinsart com Tintin, Bruxelas com Natacha. Aqui o embaixador faz questão de explicar que o autor, Walthery fez este desenho da sua famosa assistente de bordo de propósito para o passaporte belga - "este não se encontra em nenhuma banda desenhada". E a volta ao mundo continua com paragens nos Estados Unidos, África, Médio Oriente, Amesterdão e... regresso a Bruxelas com uma imagem do Manneken Pis..Mas será que as crianças belgas continuam a ler mais BD do que as outras? Willem De Graeve acha que "percentualmente, sim. Na Bélgica encontra livros de BD nos supermercados, o que deve ser único no mundo". Mas o ex-diretor do Museu da BD de Bruxelas admite que é difícil lidar com a concorrência das aplicações, redes sociais ou streamings. No entanto, "na Bélgica mesmo se hoje se lê menos BD, todos conhecem os autores e as personagens. Há desenhos animados, jogos de vídeo, do Tintin, etc... Continua omnipresente. Felizmente." Para Willem De Graeve, "é um pouco como Camões em Portugal, mesmo que nem toda a gente o tenha lido, todos o conhecem". Afinal, tal como todos os portugueses têm de ler Os Lusíadas na escola, na Bélgica todos os alunos têm de ler a banda desenhada nacional nas aulas de literatura..Fora da Bélgica, os clássicos como Hergé, Peyo, Franquin ou Morris são bem conhecidos de todos também, mas a nova geração de desenhadores belgas é-o menos. Para Willem De Graeve "nunca houve tanta produção de BD na Bélgica". Uma das razões é a democratização do processo de impressão. Mas isso também tornou mais difícil para um autor afirmar-se: "Podemos dizer que há 60 anos a BD belga era um bolo com algumas fatias, hoje o bolo é maior, mas as fatias são mais pequenas". E a quem lhe pergunta quem é o novo Hergé ou o novo Franquin, responde que "as coisas estão muito mais dispersas" Exemplo? "Quando o Museu da BD começou, saíam 500 novos livros por ano, agora são 5000"..Não podíamos despedir-nos sem perguntar ao embaixador Wauthier e a Willem De Graeve qual o seu autor ou personagem favorito. O antigo diretor do Museu da BD de Bruxelas arrisca-se primeiro: "Tenho dois, o primeiro é o Néron e o segundo Gaston Lagaffe. São duas personagens que representam um pouco o espírito belga porque não são verdadeiros heróis, não são como o Super-Homem, são anti-heróis, mas são simpáticos. E acho que isso simboliza bem a Bélgica. Gostamos de pessoas comuns, com sentido de humor." O embaixador Wauthier pega na conversa para acrescentar como essa maneira de ser se reflete na decisão de colocar a banda desenhada no passaporte - "mostra um pouco da nossa capacidade de rirmos de nós próprios". Willem De Graeve concorda e vai mais longe, apontando que esse humor se vê até no principal símbolo de Bruxelas: "Paris tem a Torre Eiffel, Londres tem o Big Ben, Bruxelas tem um menino pequenino que faz xixi. Que este seja um símbolo nacional, diz muito sobre o nosso país"..Mas afinal qual é o favorito do embaixador Wauthier? "Evidentemente há Hergé, que é um monumento. Mas saindo do Hergé, há um de que gostava muito quando era criança que era Tillieux, criador de Gil Jourdan. E tenho um carinho muito particular por Peyo, que fez muita coisa e em tudo o que fez, sejam os Schtroumpfs, Johan e Pirlouit, Benoît Brisefer, há uma enorme poesia." Fica pensativo um momento, e confirma: "com o devido recuo, Peyo". Antes de acrescentar, com uma risada: "Mas quando era criança, era Gil Jourdan!".A exposição pode ser vista de segunda a sexta-feira, entre as 9.30 e as 13.30 e, à tarde, das 14.30 às 18.30, no Instituto Camões, Avenida da Liberdade 270, em Lisboa..helena.r.tecedeiro@dn.pt