O trabalho e o prazer da música coral
Instituição fulcral na história da cultura portuguesa dos séculos XX/XXI, a Fundação Calouste Gulbenkian tem estado a revisitar e, de alguma maneira, sistematizar as suas próprias memórias. Assim aconteceu em junho de 2024 com o lançamento de Soma das Partes, uma realização de Edgar Ferreira com distribuição de The Stone and the Plot, sobre os 60 anos da sua orquestra. Agora, com as mesmas assinaturas, surge o documentário Coro, dedicado ao Coro Gulbenkian — e são também seis décadas de música e encantamento musical que estão em jogo.
O tom do filme, isto é, os seus objetivos informativos e didáticos ficam claramente definidos a partir da inesperada e insólita abertura. São dois minutinhos de um brilhante trabalho de conjugação de imagens — aliás, toda a montagem, assinada pelo próprio Edgar Ferreira, juntamente com Steven Nascimento, é muito cuidada e, sobretudo, esclarecedora. Assim, vemos alguém que pratica natação, corrida e ciclismo, num crescendo (a sugestão musical da palavra vem a propósito) que desemboca em vários grandes planos do rosto do atleta que, por fim, se ligam a um grande plano da mesma pessoa... já na pose de elemento do Coro Gulbenkian.
Que acontece, então? Algo que irá pontuar todo o desenvolvimento do filme, reforçando a sua lógica documental. Não se trata de apresentar os elementos do coro como pessoas cuja existência se esgota nas respectivas práticas musicais, mas (quase) o contrário. Entenda-se, não é por acaso que a fundação do Coro Gulbenkian e as várias etapas do seu desenvolvimento ao longo de seis décadas motivaram a adopção da designação do grupo como “semi-profissional”. Daí o cruzamento de vozes em que ouvimos vários elementos a nomear as suas (outras) atividades profissionais: cantora, atriz, musicólogo, advogada, terapeuta da fala, professora, etc.
Os muitos e variados depoimentos dos elementos do coro são tanto mais interessantes e até, por vezes, emocionalmente envolventes quanto, como é dito, ninguém está ali por acaso — e, sobretudo, ninguém está ali sem dar provas de uma sofisticação profissional que arrasta uma dedicação absoluta às suas tarefas. Ou como também resulta dos depoimentos que ouvimos: vivendo essa afirmação pessoal como uma missão que, paradoxalmente ou não, é indissociável de um metódico “apagamento” no interior do coletivo.
Tudo isto leva-nos a desejar que, em algum momento, o filme suspenda o didatismo da sua exposição, dedicando uma cena à performance integral de alguma peça, ou algum andamento de uma obra, pelo Coro Gulbenkian. Em boa verdade, tal não chega a acontecer. Claro que a opção é clara e coerente — exaltar a música como trabalho —, mas fica essa ligeira frustração de o espectador não deparar com alguns momentos (digamos, um videoclip) em que a celebração da música e das vozes prescindisse de tudo o resto.
Conhecer a música
Podemos inscrever Coro numa muito antiga árvore genealógica em que o olhar cinematográfico não se contenta com a “reprodução” da música (o que poderá explicar a ausência atrás referida), privilegiando o contexto em que os protagonistas musicais desenvolvem o seu labor criativo. Sem qualquer intenção determinista, penso em dois exemplos emblemáticos, algo “extremistas”: Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a digressão britânica em que Bob Dylan começou a usar guitarras eléctricas, e One + One (1968), com o registo do trabalho de estúdio dos Rolling Stones a ser usado por Jean-Luc Godard como motor de uma parábola política pós-Maio 68.
Escusado será dizer que não se trata de “avaliar” o filme de Edgar Ferreira a partir de tais referências. Trata-se, isso sim, de lembrar que Coro reflete um gosto pelo conhecimento da música que convive saudavelmente com os meios específicos de cinema e televisão - afinal, nada disso é indiferente para o nosso prazer de espectadores.