Crónica irlandesa em ritmo hip hop
O título do filme Kneecap, realizado por Rich Peppiatt, envolve uma ironia cuja crueza importa ter em conta. Não se trata apenas de identificar uma parte do corpo humano — a rótula ou, por extensão, o joelho —, mas de referir uma forma de agressão, por vezes de tortura, praticada por grupos paramilitares durante os Conflitos na Irlanda do Norte (que duraram até 1998 e são muitas vezes referidos como “The Troubles”). Ao mesmo tempo, Kneecap é o nome de um grupo de hip hop — formado por Mo Chara, Móglaí Bap e DJ Provaí — cujos elementos se apresentam “nos seus próprios papéis”, num registo de autobiografia ficcionada (muito ficcionada, garantem diversas fontes). Daí o subtítulo português: Kneecap – O Trio de Belfast.
O misto de rebeldia, provocação e desejo de liberdade com que o trio é habitualmente rotulado não pode ser dissociado dos conflitos que opuseram protestantes e católicos por causa do estatuto político da Irlanda do Norte: no sentido da preservação dos laços com a Grã-Bretanha (segundo os primeiros) ou da integração na República da Irlanda (na perspectiva dos segundos). Foram anos de muitos episódios violentos, com um saldo de quase 4 mil mortos, mais de metade civis.
A música dos Kneecap emerge como um fresco delirante desse tempo, enraizado num tecido humano em que as tensões sociais surgem pontuadas (ou prolongadas) por elementos tão variados, por vezes tão contundentes, como as relações sexuais, a circulação de drogas ou as clivagens políticas. Exemplo extremo será a figura de Arlo (interpretado por Michael Fassbender), ex-paramilitar republicano que conseguiu espalhar a notícia da sua própria morte, desse modo escapando à vigilância das forças britânicas. Todos estes elementos têm tanto de complexo como de sugestivo — como se estivéssemos perante uma memória documental transfigurada pela energia do hip hop, de tal modo que o elemento dramático central, mais do que o conflito político, é a luta pela preservação da língua irlandesa, numa enérgica resistência à imposição do inglês como forma oficial de comunicação.
Resta saber se o filme consegue ter um programa formal minimamente consistente para lidar com tudo isso — o que é duvidoso. Os resultados assemelham-se mais a uma colagem de telediscos (Peppiatt já tinha filmado o tema Guilty Conscience dos Kneecap), aqui e ali interrompidos por cenas mais ou menos intimistas (aliás contando com alguns talentosos intérpretes como Fionnuala Flaherty). É nesses momentos de maior contenção que compreendemos que ficou por fazer um filme mais rigoroso na sua elaboração narrativa, menos dependente de uma estética de videoclip em que o mais importante não são as personagens, mas a convencional acumulação de imagens mais ou menos aceleradas.