Na Companhia Maior não há velhos: "Todos os dias aprendo uma coisa nova"
Um anúncio de jornal pode mudar a vida. Duas vezes. Que o diga Maria Júlia Guerra. Foi através de um anúncio que, no final da década de 1950, se tornou locutora de rádio. E foi também respondendo a um anúncio que, há dez anos, chegou à Companhia Maior. E inesperadamente se tornou atriz.
"Estou sempre a aprender, todos os dias, é a minha maneira de estar na vida. Se eu não aprender uma coisa nova acho que o dia não valeu a pena", diz Maria Júlia. E esta frase é bem capaz de ser a sua melhor definição. "Eu se me ponho a falar nunca mais me calo", avisa. Mas que bom que é ouvi-la falar com aquela voz colocada, as palavras muito bem articuladas e as histórias que tem para contar. "O meu pai era ator e na minha casa vivia-se essa excitação e essa fantasia do mundo do teatro", recorda. Ela era uma menina tímida, envergonhada, sempre com medo de dar a sua opinião, "mas gostava de dizer poesia e quando o fazia não tinha vergonha nenhuma".
Foi por isso que, apesar de o marido torcer o nariz à ideia, decidiu apresentar-se na audição para ser locutora de rádio. Isso e a vontade de fazer coisas novas: "Não tive a felicidade de ter filhos. Mas tinha que fazer alguma coisa, não ia ficar ali entre os tachos e as panelas." Não ficou. Fez teatro radiofónico ao lado de gente como Carmen Dolores, António Silva, Ruy de Carvalho ou Amélia Rey Colaço; apresentou programas e foi realizadora na Emissora Nacional/ RDP e na Rádio Renascença; apresentou espetáculos e festivais em palcos por todo o país. Ia para a rádio por um ano, ficou uma vida quase inteira.
Depois de se reformar, manteve-se ativa como formadora de técnicas vocais, algo que faz até hoje. Mas pelo meio houve aquele dia em que viu o anúncio de um workshop de teatro para pessoas com mais de 60 anos e, já viúva, decidiu ir: "Nunca tinha feito teatro nem dança mas a mim o palco nunca me meteu medo." Está desde o início na Companhia Maior, a companhia profissional do Centro Cultural Belém cujo elenco pertence à chamada "terceira idade", e nestes dez anos trabalhou com encenadores como Tiago Rodrigues e Clara Andermatt, Pedro Penim, Filipa Francisco ou Joana Craveiro. "Não me interessa o protagonismo. Gosto de aprender e de conhecer outras pessoas, cada ano é um desafio."
Como desta vez, no espetáculo que se estreia esta sexta-feira, intitulado O Lugar do Canto Está vazio, em que ela tanto se integra no grupo de 16 atores, que se movimentam como um só, como atravessa sozinha o palco em bicos de pés, em desequilíbrio, um passinho à frente, dois passos atrás. Como tem um monólogo - muito forte - em que fala da decadência do corpo na velhice.
Podíamos ficar a tarde inteira a conversar com Maria de Júlia Guerra. Mas a verdade é que cada um dos elementos da Companhia Maior tem uma história que vale a pena contar. Jorge Leal Coelho, de 77 anos, foi engenheiro, responsável pela construção de autoestradas e pontes, e nunca tinha feito teatro na vida até, um dia, nas aulas de tango, ter conhecido Kim (a bailarina Kimberley Ribeiro) e ter através dela descoberto a Companhia Maior. "Estavam a precisar de homens e eu decidi experimentar", conta. Compensa a falta de técnica com uma enorme descontração e diz que se diverte imenso. Este é já o quinto espetáculo em que participa.
Ou Edmundo Sardinha, um dos elementos novos este ano que é também (apesar de ele não revelar a idade) um dos mais novos do grupo. Entre as suas muitas atividades profissionais, diz que foi agente de navegação (trabalhava na empresa que desencalhou o Tolan do meio do Tejo), declamou poesia em casamentos, foi basquetebolista, participa em anúncios publicitários mas gosta mesmo é de cozinhar. E além disso tem duas filhas pequenas. "Neste momento sou doméstico, o que dá muito trabalho", conclui. Doméstico e ator: "Ao início estava um bocadinho nervoso, mas todos me apoiaram. É uma experiência que me está a fortalecer."
"São pessoas que têm uma paixão pela vida e uma necessidade muito grande de a manter", diz a coreógrafa Sofia Dias sobre estes intérpretes - alguns com experiência de palco, outros nem por isso, mas todos com uma grande disponibilidade: "A idade dá-lhes um desprendimento maior e uma urgência de fazer." Na Companhia Maior não há velhos: há pessoas que se recusam a parar. Ou como diz Júlia Guerra: "Acho que é um ato de coragem dizer o que penso, o que sinto, defender as minhas ideias. Vou em busca de uma verdade, a minha verdade. A idade deu-me isso."
Sofia Dias e Vítor Roriz foram os criadores convidados a trabalhar com a Companhia Maior este ano. A dupla de coreógrafos, que conhecemos de trabalhos como Satélites e O que não acontece, ou como intérpretes em António e Cleópatra e Sopro (ambos com encenação de Tiago Rodrigues), trouxe consigo "uma linguagem e uma série de ferramentas metodológicas" que já faziam parte do seu trabalho e trouxe também uma proposta temática de "abordar o sono, na sua relação com a morte", explicam. "O sono como uma interrupção de um estado de vigilância constante e que, por isso mesmo, pode ser o único espaço de liberdade, em que a personalidade se dilui, somos os múltiplos outros, estamos nessa flutuação entre o que somos e os que podemos ser. Entre o onírico e o real."
Mas, tudo o resto, os movimentos, as palavras, os caminhos, foram surgindo do encontro com estas pessoas e com estes corpos. "Há alguns lugares comuns que são evidentes e que nós nunca tínhamos trabalhado, como a relação do corpo individual com o corpo coletivo", explica Vítor Roriz. "Nós coletivamente geramos espaço para que determinadas personalidades surjam e isso faz com que haja uma responsabilização do coletivo. Por exemplo, um Donald Trump ou a Greta Thunberg são personagens que surgem porque há uma necessidade por preencher."
O que nos leva, imediatamente, acrescenta Sofia Dias, para "a questão da representatividade ou da falta dela - a ausência de representação de alguns corpos em cena, nomeadamente do corpo velho".
"Costumamos relegar para um canto estas pessoas por acharmos que já não estão produtivas mas na verdade a vida continua muito efervescente para todas elas. E o facto de ter que existir uma companhia maior é já um espaço que se está a reivindicar para essas pessoas, mas não deveria ter que ser assim, deveria ser tudo muito mais intergeracional e misturado, porque a vida é assim", diz Sofia Dias. Porque é que os espetáculos só hão de ter intérpretes novos, elegantes, virtuosos?
"Nós não queremos ver corpos frágeis em cena, não queremos ver arestas ou ineficiências", responde Vítor Roriz. Talvez porque não queremos confrontar-nos com "esse corpo - espelho do futuro". Mas não tem de ser assim. "Neste espetáculo não estamos a tentar limar arestas, deixamos que elas se revelem na sua espontaneidade. Nós, enquanto público, desafiamos o nosso olhar sobre a eficácia do gesto, a eficácia do texto, sobre o estilo. Aprendemos a acolher essa diferença."
Desta vez, o lugar do canto fica vazio. Porque aqueles que costumam ser postos de lado estão no centro do palco.
O Lugar do Canto Está Vazio
Direção: Sofia Dias e Vítor Roriz
Elenco: Angelina Mateus, Carlos Fernandes, Carlos Nery, Catarina Rico, Cristina Gonçalves, Edmundo Sardinha, Isabel Simões, João Silvestre, Jorge Leal Cardoso, Júlia Guerra, Kimberley Ribeiro, Manuela de Sousa Rama, Maria Emília Castanheira, Maria Helena Falé, Maria José Baião, Michel
Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa
Dias 22, 23 e 25 (sexta, sábado e segunda) às 21.00, dia 24 (domingo) às 16:00.
Bilhetes: 12,5 a 15 euros