Elis Regina e Tom Jobim: a música é uma “coisa” humana.
Elis Regina e Tom Jobim: a música é uma “coisa” humana.

Memórias de uma singular odisseia artística

O encontro de Elis Regina e António Carlos Jobim num estúdio de Los Angeles deu origem a uma das obras-primas da música popular do Brasil: 'Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você' é uma sugestiva evocação documental das suas sessões de gravação.
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Rezam as crónicas que as gravações do disco Elis & Tom (1974), reunindo Elis Regina (1945-1982) e António Carlos Jobim (1927-1994), começaram em clima marcado por alguns desacordos conceptuais e artísticos. Podemos até supor que as imagens dessas gravações, filmadas pelo empresário e produtor Roberto de Oliveira, desempenharam uma função catártica na evolução positiva de um álbum que acabaria por se inscrever como uma referência obrigatória na história da música popular brasileira - são essas imagens (e sons!) que servem de base ao documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, realizado por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, produção revelada no Festival do Rio de Janeiro de 2022, a partir de hoje nas salas portuguesas.

São várias as personalidades direta ou indiretamente ligadas às memórias do álbum - por exemplo, César Camargo Mariano, Hélio Delmiro, Nelson Motta e o próprio Roberto de Oliveira - a recordar essa tão peculiar conjuntura, vivida nos meses de fevereiro/março de 1974. Como uma antologia de memórias de uma obra gravada num lugar inusitado, com o seu quê de universo “alternativo”: os estúdios da MGM, em Los Angeles. Seja como for, são as imagens registadas em película de 16mm que constituem a matéria principal de Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você - o subtítulo provém de uma das canções do álbum, que começa com os versos: “É, só eu sei quanto amor eu guardei / Sem saber que era só pra você.”

A realização segue uma opção “formal” que talvez fosse evitável, quanto mais não seja porque altera o próprio testemunho das imagens de 16mm. Isto porque prevaleceu a opção de “encher” o formato largo do documentário (correspondente ao retângulo 1x2,3 do “scope” clássico), desse modo não respeitando as proporções do 16mm (mais próximas do  também clássico 1x1,33). Tal opção não anula a importância do documento, ainda que nos faça perder um pouco da relação física e, mais do que isso, sensorial, da câmara com os corpos que observa.

Como antologia de memórias de uma singular odisseia artística, Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você permite-nos perceber as dinâmicas de um contexto que, escusado será dizê-lo, mudou muito neste meio século que passou. Tendo em conta, sobretudo, a monotonia de algumas experiências digitais dos tempos atuais (o que, naturalmente não justifica que demonizemos as maravilhas técnicas dos estúdios do presente), este é um filme capaz de nos dar a ver e ouvir um labor criativo que, através das experimentações das vozes e dos instrumentos, se fundamenta sempre na complexidade dos laços humanos. É esse, aliás, o sentido do depoimento do engenheiro de som e produtor Humberto Gatico que, já perto do final, surge a celebrar o valor do legado dos artistas envolvidos na gestação do álbum - como ele sublinha, Elis e Tom Jobim “já partiram para o Céu”, mas deixaram qualquer coisa que perdura para as gerações que vieram depois.

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