Maria Rueff.
Maria Rueff.Foto: Leonardo Negrão

Maria Rueff: “Os comediantes são sempre tratados como parente pobre das artes”

Em 'Elogio do Riso', Maria Rueff quis prestar homenagem aos mestres da comédia, uma arte sobre a qual diz existir “um preconceito surdo”. Está em cena ano Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.
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Os 50 minutos da peça Elogio do Riso foi o resultado de um processo prévio de pesquisa sobre o riso iniciado quatro anos antes por Maria Rueff e Rodrigo Francisco. A atriz e o diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada – por iniciativa de Rueff –, mergulharam no que filósofos, dramaturgos, comediantes e outros escreveram sobre a origem e a função do riso. Muito pensamento reunido numa extensa bibliografia na qual sobressaiu o manifesto O Contrador, de Aldo Palazzeschi, publicado em 1914. “É de um poeta italiano que diz que só escavando na dor é que o homem, a humanidade, consegue o riso e, através dele, ser mais profundo. A comédia é uma catarse, tal como a tragédia, serve para que as pessoas possam sublimar as suas dores, os seus desconfortos, as suas circunstâncias mais amargas, e era mais ou menos isso que queríamos pôr em cena”, diz Maria Rueff ao DN.

Como diz Charlie Chaplin, sublinha a atriz, “a vida é uma tragédia vista de perto, ou uma comédia vista de longe. Ou seja, quando nos distanciamos do que estamos a sofrer, conseguimos encontrar graça, ironia, sarcasmo nas situações mais dolorosas e fazer a catarse, e irmos sobrevivendo às nossas dores, às nossas vidas que são difíceis. É essa a tarefa nobre dos comediantes que nós quisemos retratar.”

Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.
Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.Foto: Leonardo Negrão

Este projeto surgiu da vontade de contribuir para dignificar uma área artística que Maria Rueff considera não ter o devido reconhecimento. “Os comediantes são sempre tratados como parente pobre das artes, há muito preconceito, ainda que seja um preconceito surdo, mas que se nota em algumas salas, nas relações com alguns pares. Só para ter uma ideia, eu, no segundo ano do conservatório, fui considerada como estando a tirar o lugar às atrizes e, portanto, era bom ir para o Parque Mayer. Era o que se pensava de alguém que tivesse já alguns traços de comediante.”

A atriz, formada na Escola Superior de Teatro e Cinema – para a qual entrou incentivada pela mãe e por não ter entrado em Direito – quis prestar homenagem aos seus mentores comediantes. “Tive a sorte de me estrear com o Armando Cortez  [na peça Francisco Ors, Quem muda a fralda à menina?, no Teatro Villaret , ele foi o meu mestre de comédia, ele próprio teve os mestres mais excecionais que Portugal já teve, o Ribeirinho, a Maria Matos, o Vasco de Santana, etc. E, de alguma forma, eu sinto-me herdeira disso, porque a comédia tem muita técnica, é uma técnica que é dada nas tábuas, no palco, diariamente, senti-me com essa responsabilidade de passar, ou, pelo menos, de sobrevoar esta arte e, de alguma maneira, com esse material, transmitir aos outros, às novas gerações”.

Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.
Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.Foto: Leonardo Negrão

Maria Rueff, criadora de várias personagens cómicas conhecidas dos portugueses através da televisão, como o Zé Manel Taxista, foi descoberta por Herman José nos café-teatro que fazia com o JoãoBaião (que conheceu quando se estreou com Armando Cortez, em 1991), e consolidou a sua carreira como comediante (embora não só).

“A minha vontade de fazer a peça tem a ver com isso, é agradecer o trabalho de todos os comediantes que ao longo da história aliviaram as nossas dores, há muita gente que nos agradece, a mim, ao Herman, ao Monchique, por exemplo, quando vão ver uma comédia nossa. Isto é o melhor aplauso que se pode dar”.

Maria Rueff considera que a iniciativa do Papa Francisco, no dia 14 de junho do ano passado, de reunir no Vaticano mais de cem humoristas do mundo inteiro, – entre eles a atriz, Joana Marques e Ricardo Araújo Pereira –, foi um momento marcante para a sua arte. “Uma das coisas mais bonitas que oPapa Francisco disse foi essa capacidade unificadora do riso, trabalhar a empatia, quando a doença principal do século XXI é a depressão. As pessoas precisam cada vez mais de rir. Como diz o povo, ‘rir é o melhor remédio’. Quis aproveitar a dignidade que o Papa Francisco deu à nossa arte para acabar com os preconceitos. São dois géneros fundadores do teatro, a tragédia e a comédia”.

Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.
Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.Foto: Leonardo Negrão

Os comediantes, ao longo doas séculos, não têm tido vida fácil, e os tempos atuais não são exceção. “Há perigo sempre, desde a Idade Média, o bobo da corte, se dizia alguma graça que não agradasse ao rei, acabava com a cabeça cortada. Essa cabeça cortada está sempre associada ao comediante. Antigamente era-se morto, já se foi condenado pela PIDE e hoje em dia é-se cancelado. O cancelamento é a nova forma de censura, ou seja, as pessoas são esvaziadas, impossibilitadas de trabalhar, são mortas socialmente ou são condenadas, deixam de poder existir como comediantes.”

Feito esse mapa histórico sobre o riso – que agregou autores tão diversos quanto Umberto Eco, Henri Bergson, Baudelaire, Sócrates, Nietzsche, Gil Vicente, Shakespeare, Beckett, Ionesco, Charlie Chaplin, Buster Keaton ou Mr. Bean, e que deu origem a uma publicação da série de cadernos Textos d’Almada – procedeu-se a “uma espécie de triagem, que fosse sobretudo comédia no teatro, em que eu, de alguma maneira, pudesse ir para fora de pé. Embora seja o meu ofício, fazer dentro da comédia uma coisa que pudesse ser novo”, diz Maria Rueff.

Foi nesse momento que entrou no projeto Hajo Schüler, da companhia alemã Familie Floz, presença frequente no festival internacional de Almada, e cocriador de Elogio do Riso, com Maria Rueff e Rodrigo Francisco.

E se em todo aquele trabalho prévio a palavra escrita dominou, na criação do espetáculo optou-se por outro caminho. “É uma outra forma de fazer comédia, mais de humor físico, mais de pantomima, não tanto através do texto, das imitações. A minha vontade foi desafiar-me e, nesse sentido, estou muito feliz.”

Maria Rueff está praticamente sozinha em palco, e em gestos rotineiros do quotidiano, auxiliados pela cenografia de Marta Carreiras, os figurinos de Dino Alves, o desenho de luz de Guilherme Frazão e desenho de som de Daniel Mendrico, vai-se construindo a narrativa .

Mas a peça é para rir? “Não necessariamente. Quer dizer, também tem coisas que fazem rir, mas eu diria que é talvez mais para pensar”, diz Maria Rueff, para quem é preciso trabalhar o olhar cómico desde a infância. O riso, diz, não é apenas o seu ofício, está no seu dia a dia. “Utilizo com a minha filha desde pequenina, e é uma das coisas que vem no manifesto do Aldo Palazzeschi, devemos ensinar as nossas crianças a rir, a rir no sentido de que tirem das coisas amargas o ensinamento e que depois se possam rir, até rirmos de nós próprios, que é uma forma de mantermos os pés na terra e de nos melhorarmos como seres humanos.”

Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.
Maria Rueff, na peça 'Elogio do Riso'.Foto: Leonardo Negrão

O Elogio do Riso estreou no passado dia 1 de novembro e estará em cena no Teatro Municipal Joaquim Benites (TMJB), em Almada, até 30 de novembro, de quinta a sábado, às 21h, e quartas e domingos, às 16h. Todos os sábados, previamente ao espetáculo, às 18 horas, há conversas com o público sobre o fenómeno do riso. Já passaram pelo foyer do TMJB o humorista Ricardo Araújo Pereira e o gestor e escritor Paulo Morgado. No próximo sábado, dia 15, José Pedro Serra, professor universitário, abordará o tema O riso e as religiões: da Antiguidade aos nossos dias, e no dia 22 de novembro, o encenador António Pires falará sobe Como pôr uma comédia em cena: a carpintaria teatral que leva o riso à plateia. A última conversa será com o humorista e médico Carlos Vidal, no dia 29 de novembro, sobre O riso como ferramenta da saúde mental: benefícios terapêuticos do humor.

Maria Rueff marca presença nestas conversas com o público apesar da sua agenda pesada. Está no Cá Por Casa com o Herman José, na RTP, filma com o realizador luso-francês Ruben Alves a comédia romântica Santo António, o casamenteiro de Lisboa (com Rita Blanco e Joaquim Monchique ), faz há já doze anos Lar Doce Lar com Joaquim Monchique, peça que está em tournée pelo país, e terminou recentemente um filme documentário com João Botelho sobre Salazar, onde faz de Maria, a governanta do ditador, “primeira dama de alguma forma”.

“Gosto de tudo o que faço, até de uma frase de publicidade, entrego-me a 100%, não sei ir para cena ou servir um projeto só por fazer ou só por dinheiro, tem sempre que ser uma paixão. Tenho dois amores profundos, a minha arte e a minha filha. Isto é o que me faz estar viva, estar a trabalhar.”

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