"Comecei a escrever textos que partilhava com a minha psicoterapeuta e reflexões sobre a vida, sobre mim, sobre o lugar que eu queria para os meus filhos neste mundo", diz Dino D'Santiago.
"Comecei a escrever textos que partilhava com a minha psicoterapeuta e reflexões sobre a vida, sobre mim, sobre o lugar que eu queria para os meus filhos neste mundo", diz Dino D'Santiago.Foto: Paulo Spranger

Dino D'Santiago: “Só em Cabo Verde é que eu senti que entrava numa loja sem ninguém vir atrás de mim”

'Cicatrizes' reúne 50 textos escritos num processo que o fez olhar para o passado para sarar as feridas do presente. Artista multifacetado, diz que é na diversificação que está o seu “superpoder”.
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Como é que surgiu este livro, Cicatrizes?

Este livro nasce sem ter sido um livro. Foi um processo de autoanálise muito profundo daquilo que eu era, depois do nascimento do meu primeiro filho, do Lucas, e de todos os 'não' e 'sim' que eu não queria automatizar na vida dele. Então tive que me deseducar. Ou seja, este livro é o processo de me deseducar e de me tornar cada vez mais desobediente às regras. Comecei a escrever textos que partilhava com a minha psicoterapeuta e reflexões sobre a vida, sobre mim, sobre o lugar que eu queria para os meus filhos neste mundo. No fundo era a herança que eu queria deixar-lhes - o vosso pai não foi uma pessoa impecável, procurou sê-lo, mas quando deixou de querer sê-lo, tornou-se mais humano e tudo ficou mais fácil.

E depois, como é que esses textos chegaram a uma editora?

Escrevi cerca de duzentos textos...

No livro estão 50.

Só estão cinquenta, porque foram escolhidos para celebrar os cinquenta anos do 25 de abril e os cinquenta anos das independências. E depois a Lúcia Garcia, que era a guardiã dos meus textos, insistiu, Dino, tens que editar um livro. Ela é professora de História, sabe que eu adoro ler e sentiu nos textos esse potencial. Então, como já tinha algumas editoras a contactarem-me porque gostavam de editar um livro meu... Estive com duas delas, três, aliás, mas escolhi o Jorge Silva, o editor do livro, da Penguin. A emoção dele no olhar, a sensibilidade...Isto é tão vulnerável que não podia entregá-lo a uma máquina de servir números. Então eles, juntamente com a Lúcia, fizeram essa seleção bonita dos 50 textos que hoje vestem o livro.

Já tinha havido convites de editoras para escrever que tipo de livro?

Queriam muito que eu escrevesse sobre a situação do país, as questões da diversidade, as questões da discriminação e eu nunca me senti motivado para fazê-lo, sempre senti que a minha área era outra, e que eu sempre escrevi para viver, ou seja, para mim deixar de escrever é a mesma coisa como me matarem, desde criança foi sempre a minha ferramenta de existir. Escrevia praticamente todos os dias, sempre foi de forma livre e espontânea, sempre precisei de escrever porque não conseguia dizer muitas coisas. Por vergonha, ou pelo som da minha voz não estar no que achava que era o tom certo para que aquela mensagem chegasse, e pelas várias omissões que eu fui fazendo a mim mesmo, por muitas vezes não me achar no direito de ter aquela opinião ou de sentir o que estava a sentir. Então escrever sempre foi o meu escape, sempre foi o meu refúgio.

Ainda tem esses textos?

Provavelmente, se eu for às capas - que a minha mãe guarda tudo - vou encontrar, mas na minha idade adulta, principalmente, quase todas eles estão traduzidos em canções, as minhas canções são sempre muito autobiográficas, é a forma que eu encontro de poder transmitir a mensagem que eu quero passar sem me sentir muito exposto. No livro, que não era um livro, aí a exposição veio, mas eu estou em paz com isso, porque havia um foco que eram os meus filhos.

Os textos foram escritos nas noites em que não conseguia dormir por causa da sua filha...

A Cleo quando nasceu não dormia, e fez com que eu, sempre que despertava, não conseguia voltar a dormir, porque a minha mente está sempre a funcionar, e eu tive que materializar esse tempo em alguma coisa que me fizesse sentido. Ou seja, os textos eram muito do processo psicoterapêutico, mas pintei muito, escrevi canções, todos os lugares por onde eu pude desaguar aquele tempo para eu sentir que não era um tempo perdido. E, felizmente, tive pessoas perto que, de repente, dizem 'aqui está um livro que vai ajudar muita gente, principalmente a ti'.

Porque é que sentiu necessidade de ter apoio psicológico?

Porque eu tinha prometido à mãe do Lucas que quando ele nascesse eu ia parar mais em casa, ia trabalhar menos, ia focar-me mais na família. E quando ele nasce, a ferida que eu carrego de várias gerações de pessoas da minha família - principalmente homens que só exercitaram o papel do provedor -, levou-me a ficar ainda mais apavorado. E disse para mim que não pode faltar dinheiro, não pode faltar nada para o meu filho. Então, a promessa que fiz não a consegui cumprir. E fui aconselhado pela mãe do Lucas, e a própria psicóloga veio através dela, e devo-lhe esse lugar.

E qual tem sido o impacto na sua vida?

Eu fiquei muito mais criativo depois, comecei a criar fragmentos de tempo dentro do tempo, com espaços de criação. Eu bloqueava com, 'só podes fazer isto, só ser aquilo', aquelas máximas que nós vamos ouvindo. 'Foca-te numa só coisa, ser bom nessa coisa, não tentes diversificar demais, porque senão depois já é só 10% de ti em cada uma delas'. Mas eu percebi que esse era o meu superpoder, ser 10% de mim em cada coisa que faço.

Dino D'Santiago.
Dino D'Santiago.Foto: Paulo Spranger

Já lá vamos às múltiplas áreas artísticas que o Dino tem estado a desenvolver. No livro o Dino retrata a infância e as dificuldades no Bairro dos Pescadores, em Quarteira, Algarve. Este regresso à infância foi só para sarar feridas pessoais ou também para chamar a atenção para as dificuldades de muitas famílias imigrantes?

Foram as duas. Foi muito um processo individual para me curar daqueles espaços de tanta escassez que ainda se refletiram em mim como adulto, já ter tudo, ter ganho tudo e nunca sentir que aquilo me pertencia, ou que a qualquer momento viria uma tempestade como as que entravam por nossa casa adentro e levariam tudo o que eu havia conquistado com tantas horas e esforço. Não me conseguir apropriar disso fez-me visitar esses lugares e entender que essa criança que fugia pela janela ainda continuava aqui muito presente, nas minhas ações e a dominar as minhas emoções.

Fugia pela janela porque os seus pais fechavam-no em casa para o proteger, porque o que estava no exterior também não era bom?

Só que uma criança não entende que está a ser protegida e a mim só me estavam a privar da minha liberdade e o direito de sorrir na rua e brincar com aquelas crianças que eu ouvia. Infelizmente, muitas dessas crianças que eu ouvia e admirava, hoje já morreram, outras enveredaram por caminhos muito mais tenebrosos e muito mais sombrios, e eu, por ter medo do inferno, do inferno que me foi propagado, tentei estar sempre na lei. Havia perigos em todas as esquinas. Todas as ruas tinham seringas de toxicodependentes por aquele chão espalhadas.

Foram situações traumatizantes?

Que eu não sabia que tinham sido tão traumatizantes até crescer. Até lá eu senti que fui feliz no inferno. Não me apercebia que era tão mau até começar a ter uma vida melhor.

Diz que a estratégia foi estar sempre em movimento e a certa altura no livro escreve: "Há algo que me diz que sou de facto especial". Sempre se sentiu especial?

É o único texto que ainda hoje eu não consigo incorporar. É o único. Ainda no outro dia partilhei isso, numa feira do livro em Óbidos. Mas esse texto eu escrevi para ser a minha oração. Porque foi precisamente nunca me ter sentido especial, mas sabendo que transportava um mundo gigantesco dentro de mim. Só que tudo à minha volta fazia com que não me sentisse especial. Tive de vender a mim próprio essa ideia.

Mas havia aquele sentimento que estava destinado a algo maior?

Não, nunca tive esse sentimento. Eu sempre senti que ia morrer cedo. Então precisava dizer tudo o que tinha para dizer. Independentemente da forma como iria manifestar isso. Se é na música, se de outra forma. Deixem-me é dizer, não me silenciem.

De onde vinha essa ideia de que ia morrer cedo?

Nunca consegui explicar isso. Tanto que tinha vergonha de dizer aos meus pais. Talvez porque o mundo onde vivia e as coisas que via à minha volta pereciam tão rápido, desapareciam tão depressa. Mas sempre senti essa angústia. Preciso de dizer tudo já. Sempre tive essa sensação de que o meu tempo era curto para tudo o que eu queria dizer. E hoje, já com o Lucas e a Cleo, tirei esse pensamento de mim. Não, não, não. Eu tenho que durar tempo para que eu possa ver os meus filhos vingarem, para que possa vê-los felizes e a realizarem-se. Então tirei esse pensamento de mim.

O que é que tinha de dizer antes de morrer?

Não tinha a ambição de fazer muita música, mas de dizer tudo o que queria dizer nas minhas canções. E sinto que já disse tudo o que queria dizer. E até já disse mais, porque depois o tempo vai passando, a tua casa está maior e cabem mais coisas do que tu ambicionaste lá atrás. Então eu sinto que já tenho muito mais do que alguma vez podia ter. Eu não desejei nada disto, sendo muito honesto. E também não tracei nenhum mapa que me levasse a algum destino. Eu sabia era que eu tinha uma urgência de não ser silenciado. Por mim próprio. De poder ter a coragem de dizer a uma mulher na vida que a amo, coisa que nunca tive a coragem de fazer na minha infância, por me sentir mais preterido do que os outros. E menos digno de viver. Sempre me senti menos bonito.

No livro diz que se via como "feio, pobre e ignorante".

Sim, durante muito tempo da minha vida. E foi preciso ter uma primeira namorada para isso mudar, depois tive a segunda... As mulheres com quem eu tive a felicidade de viver uma relação conjugal curaram-me. Apesar de sentir que nesse processo de me curar, magoei muito. Por não ter sabido fazer melhor, por achar que a qualquer momento poderia ser trocado. Fui obrigado a saber lidar com esse lugar das minhas emoções todas. Com a panela a ferver e a água sempre a cair. Nunca tive ninguém que me nivelasse. Mas felizmente o tempo ajudou a que eu pudesse ter pedido perdão. E perceber que as pessoas também seguiram os seus caminhos bem, e somos amigos hoje. 

Também escreve "foi à luz destas madrugadas que me apaixonei pela ideia de ter nascido da cor do breu".

É verdade. Até lá sentia só vergonha disso. Porque tudo à minha volta fazia com que eu me sentisse envergonhado por tal. Ou seja, os desejados eram sempre mais claros. 

Essa reconciliação com a sua cor é recente?

Muito recente. Foi o Candomblé a dar-me essa reconciliação. Foi o Brasil a dar-me essa reconciliação. Cabo Verde começou por ser esse pilar. De haver pessoas como eu, no que diz respeito à tez, e a vibrar nos mesmos lugares, fizeram-me sentir em casa. Não me fizeram sentir que precisava sempre de uma sombra atrás de mim a perseguir-me para ver o que é que eu ia fazer aqui ou ali. Então, esse foi o primeiro lugar. E depois, o Brasil, pelo poder de tudo que traduziram para a língua portuguesa de grandes filósofos, pensadores, pessoas que olharam para a negritude com beleza. Com realeza até.  E com muita compaixão. E isso educou-me muito, porque as minhas referências nas artes sempre foram referências europeias. Mas nunca havia representatividade nos lugares onde eu ambicionava viver, mesmo na música. Felizmente, quando a MTV chegou às nossas casas e vemos o hip-hop, rap e o R&B, e estrelas negras, no desporto o Michael Jordan, o Pelé...Mas até lá eu gostava muito de artes plásticas e não havia muita representatividade.

Mas ao mesmo tempo, as referências que tinha eram maravilhosas, porque afastavam-me desse espaço da cor. O espaço da cor foi um lugar que me chegou muito tarde. Nunca me senti limitado pela minha cor. Muito pelo contrário. Sempre senti um superpoder em mim, que era o Dino. E o Dino foi Mr. Escola, Mr. Fotogenia, Mr. Simpatia, coisas que eu nunca acreditava que seria. No mesmo ano, estive na Rádio Escola, sempre tive muitos amigos e amigas que me ajudaram no meu percurso académico. Não fui para a universidade, mas tinha colegas e professores que me deixavam assistir às aulas deles, no IADE.

Pessoas que o apoiaram nesse percurso, algumas das quais menciona em Cicatrizes.

Sempre tive amigos e pessoas que me guiaram. Mais do que guiar, perceberam que eu amava tantas coisas e davam-me as ferramentas para eu poder viver aquilo, mesmo que eu não tivesse muitos recursos financeiros.

Dino D'Santiago.
Dino D'Santiago.Foto: Paulo Spranger

Em que ano é que foi a Cabo Verde pela primeira vez?

A primeira vez foi em 1987. Ainda era criança, fiz seis anos em Cabo Verde e foi meio traumático, porque não havia nada. Era no interior de Santiago, havia muita escassez, poucos recursos. Não havia luz, nem água potável. Mas eu no bairro dos Pescadores também estava pior, porque a casa dos meus pais em Cabo Verde era muito mais bela, com muita manga, papaia, cana-de-açúcar naquele vale, e havia mais abundância. Mas o facto de ser uma família religiosa e a igreja ser no cimo da montanha, na Assomada, aquilo foram quatro fins de semana terríveis para mim, criança. Então fiquei meio traumatizado por esse lado. Já adulto fui em 2010.

Em Cicatrizes ficamos a saber que quis saber a sua raiz étnica. Porque é que isso era importante?

Porque eu sentia que não encaixava na totalidade enquanto ser no que era o país que me viu nascer. Sentia que tinha mais em mim. Quando comecei a cantar em crioulo não tive receio de dizer muita coisa, que tinha quando cantava em português. Porque aí vinha-me logo a religião ao de cima, a ambição, a inveja, coisas humanas que eu me proibia de sentir, porque não cabia naquilo que foi a minha criação religiosa. Quando comecei a cantar em crioulo, as coisas que me davam raiva não tive vergonha de dizer.

Ou seja, ser olhado de forma diferente, ser perseguido enquanto ia comprar uns ténis ou uma t-shirt e sentir-me obrigado a comprar, porque senão aquelas pessoas iam achar que eu queria levar algo sem pagar. Como sempre foi durante a minha vida e só em Cabo Verde é que senti que entrava numa loja sem ninguém vir atrás de mim. Então, estas coisas subtis, que eu não sabia que me magoavam, descobri em Cabo Verde. Ao cantar em crioulo, pensei que ninguém ia entender o que eu estava a dizer, a não ser os cabo-verdianos. Então eu ia dizer tudo.

E hoje sente que faz parte de uma nação maior?

Sim, hoje sinto-me bem maior. Principalmente agora que agreguei o Brasil e vou lá - a este triângulo Cabo Verde, Portugal e Brasil -, todos os anos, religiosamente. Lá está, essa transformou-se na minha religião. Estes lugares onde fiz da língua portuguesa a pátria, que me faz comunicar com todos eles. E sinto que é também uma herança que, por mais trágica que tenha sido na forma como ela foi construída, e tão desumanamente, ela está tão desumanamente entranhada no nosso ser, mas ao mesmo tempo conseguir fazer dela uma ponte que nos faz comunicar entre povos.

Hoje eu penso que vim para realizar o sonho dos meus ancestrais e tenho esta língua que vai ser a ponte que me vai conectar, vai-me permitir escrever em português e que mais gente entenda. Já somos mais de 200 milhões de falantes da mesma língua. Então, é um passaporte que eu posso olhar com positividade e agregar o meu crioulo, que também me enriquece. E todas as línguas que eu puder falar, o inglês, o francês, tudo.

No livro também fala sobre o encontro com a Madonna. Qual foi a importância de a ter conhecido e ter colaborado com ela?

A maior foi a que eu resumi no meu texto. Foi o facto de ela ter olhado para mim e ter encontrado potencial. Fez-me olhar para mim e validar-me. E ela, sem saber, curou-me desse espaço. Porque, depois dessa passagem, eu consegui materializar aquilo que sempre foi, para mim, o mais belo, que é a comunhão. Deste encontro vieram as Batucadeiras, vieram os músicos que a acompanharam na Madame X, tour que ela religiosamente levou toda a gente e honrou esta passagem dela por Lisboa, que a conectou com Cabo Verde, o Brasil, São Tomé, com a Guiné, Moçambique, Angola. Ela soube ser vulnerável e ensinou-me sobre vulnerabilidade. 

Ela disse a toda a gente, numa roda, que não ia aguentar um concerto, porque sentia muitas dores no corpo, e pediu para que todos nós orássemos por ela, para que ela aguentasse mais um concerto. E fez 80. Foi mais uma lição, de humildade, não és de ferro, tu quebras.

Soube encher um coliseu de ar condicionado para que toda a gente trabalhasse nas melhores condições, num inverno rigoroso, num espaço que não está tão protegido neste sentido por ser tão amplo e subiu todos os andares para ver se estava a ser cumprido o que ela tinha pedido. Aquilo que ela me ensinou eu precisaria de décadas para ter acesso. E ainda por cima, ela agradece-me por eu existir na vida dela.

Sentiu-se intimidado pela perspetiva de a conhecer?

Não, eu não tinha expectativa nenhuma. Aconteceu tão por acaso, comigo a cantar Cesária Évora, ainda por cima, o que nos uniu foi a paixão que ambos tínhamos pela Cesária Évora. Foi isso. Depois passou a ser sempre isso, porque no final do dia era eu a mostrar-lhe músicas de Moçambique, de Angola, de Cabo Verde, de São Tomé, e ela apaixonou-se por isso. Quando só lhe introduziram Fado, e ela já amava o Fado, mas de repente perceber que tinha todo este universo numa única cidade, em Lisboa, foi incrível.

E o impacto na carreira? Ajudou?

Finalmente consegui reconciliar-me com isso, porque foi mútuo, senão eu sentia que ficaria com uma dívida de gratidão, mas não, foi bom para os dois. Ela criou um disco numa altura em que não estava a pensar em gravar disco nenhum, conheceu um universo que nunca pensaria em conhecer e sempre fez questão de mencionar-me em todos os lugares por que passou. E eu igual. Ela teve uma passagem determinante na minha vida, numa fase importante da minha vida em que eu estava em transição. Foi mesmo o universo a juntar duas pessoas que têm amor pela mesma coisa, pela arte, pelas pessoas.

Dino D'Santiago.
Dino D'Santiago.Foto: Paulo Spranger

O Dino diz-se "CantorPintorPoeta". É um artista multifacetado e tem feito várias coisas. Como é que foi quando o John Romão, curador da Bienal de Artes Contemporâneas o convidou para fazer uma ópera?

Fiz como em tudo na vida, primeiro disse logo bora, depois logo vemos como faremos a obra. E o John foi incrível, porque juntou logo as melhores pessoas do teatro, mesmo do universo da ópera, trouxe pessoas importantíssimas para este projeto. Foram mesmo pessoas determinantes, desde as luzes, o som, a direção de atores. Encontrou-me pessoas maravilhosas. Então eu só tive que me preocupar em criar a história e as canções. Depois para o libreto tínhamos o Rui Catalão, com base nas histórias que ele também já colhia. A ópera era crioula. E eu decidi que o tema que eu queria retratar era precisamente o tema da imigração. E então, no meio do processo, o Adilson liga-me em desespero. Já não falávamos há anos e ele diz-me, 'Dino, preciso de recorrer a ti porque sinto que é a última porta que me pode ajudar. Desde 2019 que o meu visto caducou e nem o SEF nem a AIMA conseguem dar conta. Sou um dos 400 mil casos que está aqui em espera, mas no meu até nem é justo, porque o meu visto é permanente. E eu nem queria acreditar que ele não tinha a cidadania portuguesa, porque ele está aqui há 41 anos. Até a mãe já era portuguesa, infelizmente faleceu. E então, nessa dança [na ópera Adilson] ele diz, parece que querem que eu cometa um crime para validar o facto de não me darem a cidadania. E eu disse, não, a ópera não é sobre imigrantes, a ópera é sobre o Adilson.

O Adilson é amigo, primo?

O Adilson é amigo de infância, não é primo. Sempre nos chamámos por primos, ele desde 1984 que está em Portugal, eu nasci em 1982, conheci-o primeiro que os meus irmãos e sempre vivemos no Bairro dos Pescadores, de frente um para o outro, e no bairro da Abelheira, que é onde vivem os nossos pais atualmente, também de frente uns para os outros. Então é a minha família, não consigo vê-lo de outra maneira.

E como é que está esse processo? Está resolvido o caso?

Ele temeu muito que a ópera e a exposição fizessem com que pessoas mal intencionadas tentassem expulsá-lo do país. Ele temeu muito e só partilhou isso comigo passada a quinta récita da ópera, e eu nunca pensei, mas ele fugia do palco a correr e ia logo dormir para o hotel para que nada acontecesse, e foi horrível quando percebi. Mas felizmente vieram pessoas inacreditáveis assistir à ópera, já tínhamos um escritório de advogados a trabalhar na questão dele e apareceram outros advogados que se sensibilizaram e a título de pro bono decidiram ajudar. Outras pessoas que pediram para não ser reveladas estão a fazer o trabalho via Cabo Verde, e pessoas como o Rui Tavares, que tem sido incansável e mobilizou toda a sua equipa, e as pessoas que estão com ele no Livre para trazer a história do Adilson ao mundo. E com isso até criar uma lei que proteja casos como o do Adilson num país que é dele também.

Nós não queremos só que o visto dele tenha os prazos de validade resolvidos. Não, é o direito dele à cidadania, é para aí que estamos a caminhar e felizmente estamos rodeados de pessoas maravilhosas que já estão a dar essa esperança, ele já tem um documento que prova que pode estar cá, porque quem está em falta com ele é a AIMA neste momento. Desde o início que eu disse que se o Adilson tiver a cidadania, esta ópera já terá valido a pena. Mas não resolvemos os outros 400 mil casos. Pelo menos que haja um porta-voz desse lugar.

A ópera tem estado em itinerância...

Sim, lotada em todos os lugares por onde passa, o que também nos deixa muito felizes. Sempre que chega aquele momento final do Adilson dançar ainda ilegal em cima daquele palco - injustamente ilegal -, e ver as pessoas, as lágrimas, as mensagens que vamos recebendo, que ele vai recebendo, e o brilho que ele finalmente voltou a ganhar, para mim estamos a honrar a mãe que morreu infeliz por não ter conseguido dar a nacionalidade ao filho. Mas a história está a continuar e isso está a deixar-nos muito felizes. Tem custado a cada momento revisitar a história, mas ao mesmo tempo há um processo ali de cura muito bonito, entre todo o elenco, a equipa de produção, o próprio Adilson.

E vai voltar para Lisboa?

Está prometida. Por isso posso já dizer que garantidamente vai voltar, só não posso dizer para onde e quando, mas já está garantido que vai acontecer.

E o Dino está completamente ainda envolvido nesse projeto?

Completamente mesmo, estou em todas as apresentações, mas quero muito não precisar de estar, que o Adilson se sinta confortável, e que realmente esta obra possa passar por muitos, muitos lugares. O maestro tem sido também incansável, o Martim Sousa Tavares, em promover a obra por onde passa. Há pedidos para Cabo Verde, Brasil já está conversado, Espanha também.

Então vai para fora?

Sim, depois de o Adilson ter a sua situação resolvida, porque nós não vamos para fora sem ele.

Dino D'Santiago.
Dino D'Santiago.Foto: Paulo Spranger

Novo disco e exposição

E em que é que o Dino está a trabalhar agora musicalmente?

Vou lançar um novo álbum, que é precisamente esse abraço de que falávamos no início entre Cabo Verde, Portugal e Brasil. Um álbum que vou editar agora com o Amaro Freitas, pianista de Jardim de Pernambuco, e o Criolo, rapper, compositor maravilhoso de São Paulo. Então vamos editar um disco entre Lisboa, São Paulo, Recife e Santiago, em Cabo Verde, que é um lugar onde nós celebramos e honramos o lugar dos nossos ancestrais, e dizemos que hoje vimos para realizar o sonho dos nossos ancestrais e deixar para trás todo o pesadelo que os desfez. Tem sido uma viagem muito bonita, vai sair agora em novembro.

E qual é o título do álbum?

É mesmo Criolo, Amaro e Dino, os nossos nomes, e vamos estrear em frente ao Teatro Municipal de São Paulo no dia 6 de dezembro e vimos para o Primavera Sound em Portugal, como primeiro concerto, no Porto, e depois é passar pelos lugares onde se expressa a língua portuguesa, com vários pedidos já, mas os dois que podemos anunciar são esses dois momentos.

E a pintura e o desenho?

É visceral, para sempre. É a pintura que me leva agora à curadoria em Paris, que vou fazer nos dias 8 e 9 de novembro, com Lisboa, Nu Bai, Paris, uma curadoria que fiz juntamente com a Gulbenkian, que vai celebrar vários anos em Paris, e convidaram-me para levar um pouco do que é a experiência no Jardim de Verão em Lisboa, para Paris. Para além da curadoria, assinei as imagens que comunicam a exposição. É uma exposição/curadoria musical.

Em relação às artes plásticas, vai haver uma exposição?

Sim. Estou agora a ser representado pela Underdogs, do Vhils, falei muito com ele e ele abriu-me as portas da Underdogs para me abraçarem nesta viagem. Tenho vários pedidos no Brasil, Estados Unidos e alguns países da Europa - a Holanda foi o que mais insistiu - e Portugal. Quero fazer um primeiro momento em Portugal, estamos a escolher agora uma boa data, eu queria que fosse no meu aniversário, 13 de dezembro, mas como está tão em cima, vou preparar alguma coisa especial para esse momento, mas não ainda a exposição.

São desenhos, pintura...

Muito desenho em papel. Uma das séries é um ciclo que eu chamei de Reciclagem Mental, onde toquei só em papel reciclado e reciclei a minha forma de olhar para o ser africano, ser descendente de africanos, ser negro e encarar a pele como veste, como algo belo. Então, foi a minha reciclagem no processo psicoterapêutico e somático de encontro com a minha negritude. Fiz vários ídolos meus, afrodescendentes, mensagens de filósofos negros que deixaram o nome nos tempos, que vai de Grada Kilomba até Baldwin. Fiz uma série de retratos nesse ciclo de Reciclagem Mental. E a outra série é Portal de Retorno, onde fiz várias gravuras, vários lugares onde só aparecem meios rostos, por sentir que na vida de um africano são sempre meias vidas vividas. É uma homenagem a todas aquelas almas, perto de dois milhões, que ficaram no Oceano Atlântico sem terem tido um velório, sem terem tido direito a um funeral digno. Fiz uma série de quarenta obras dessas dedicadas a esse lugar.

A exposição será uma combinação dessas duas séries?

Sim, sendo que o meu foco maior vai ser no Portal de Retorno. Cada vez que invocarmos a nossa ancestralidade e a celebrarmos e formos felizes no tempo de hoje, estamos a curar a nossa ancestralidade. Então o Portal de Retorno é a minha homenagem.

Voltando ao princípio da nossa conversa, não há receio de muita dispersão no seu trabalho?

Hoje não. Hoje é mesmo a minha maior reconciliação, 'vai a todos os lugares que te complementam'.É como os órgãos que tens no corpo, tens vários órgãos que fazem a máquina viver, e eu tenho vários lugares por onde me exprimir e que me deixam feliz. Amo ser curador e trazer as pessoas que eu gosto de ouvir para o palco, preciso de desenhar como quem precisa de beber água, preciso de escrever como quem precisa de ar para viver, e preciso da música para harmonizar tudo aquilo que eu não consigo dizer na palavra dita.

E este é o primeiro, mas não será o último livro?

Sem dúvida, este livro foi uma abertura de portal, porque muitos textos que ficaram de fora darão ficções incríveis, se eu não me quiser expor, protegendo-me e às pessoas que revelei nos meus processos terapêuticos. Quero ainda, desejo muito, fazer um filme, já tenho várias ideias para isso também, quero ainda fazer um documentário. Então, não me quero limitar em nada, quero aproveitar tudo o que a vida me puder proporcionar em termos de tempo para viver tudo isso, e ser muito feliz com os meus filhos. É o meu maior desejo.

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