O Obélix não gosta do bacalhau que lhe estão sempre a servir na Lusitânia e não pára de pedir javali, mas quando perguntamos a Fabrice Caro (Fabcaro) e Didier Conrad se gostam da especialidade portuguesa, os autores do novo livro das aventuras de Astérix acenam os dois afirmativamente. “Adoro, gosto muito”, sublinha Fabcaro. Tal como já gostava muito de fado, mesmo antes de escrever Astérix na Lusitânia. A gastronomia - também se faz referência ao vinho do Porto, vinho verde e, claro, aos pastéis de nata - é apenas uma das facetas de Portugal que ressalta ao longo desta história onde a melancolia e também a tão elogiada hospitalidade nacional são protagonistas. Mas teria havido algum lugar-comum sobre os portugueses, que são uma grande comunidade imigrante em França, que Fabcaro terá evitado? “É sempre delicado, quando fazemos álbuns de viagem, brincar com as características de um país sem cair na caricatura. É preciso ter cuidado - trata-se de encontrar o equilíbrio certo. Esse é o legado de Goscinny, e tentei abordá-lo de uma forma amável e respeitosa. Goscinny e Uderzo usavam os traços nacionais com benevolência, e quis seguir esse caminho. Procurei focar-me naquilo que considero belo e autêntico nos portugueses - esse lado da saudade. Foi a forma que encontrei de caracterizar o povo”, disse Fabcaro ao DN. O autor e o desenhador Didier Conrad estiveram ontem em Lisboa para apresentar o 41º álbum desta saga criada por René Goscinny e Albert Uderzo em 1959. . Na versão portuguesa de Astérix na Lusitânia, todas as falas dos lusitanos incluem um “ó pá”. Como é que isso surgiu? “Isso é um trabalho do tradutor. Porque os tradutores, em todos os países, fazem um enorme trabalho de criação. Neste caso, é mesmo um trabalho criativo. Com os jogos de palavras, não é nada fácil. Portanto, o ‘ó pá’ não veio de mim. Nós tínhamos um jogo com os ‘tions’ e os ‘ça’, mas que não era traduzível em português. Por isso, o ‘ó pá’ é mérito do tradutor. Toda a gente ficou muito satisfeita com as traduções. Tenho a impressão de que estão muito bem feitas,” sublinha Fabcaro. O livro, que chegou às livrarias no dia 23 de outubro, foi traduzido para 19 idiomas, incluindo o mirandês. O editor da versão portuguesa, da ASA, Vítor Silva Mota, explica que por cima da tradução houve trabalho de edição e que “o nosso ‘ó pá’ resulta da intraduzibilidade da solução original francesa, onde há uma brincadeira de base com a língua portuguesa”. No original, em francês, “todas as palavras terminadas em ‘tion’, como illustration, tradition, passam a terminar em ‘ção’”, explica. Este terá sido mesmo o principal desafio da versão portuguesa. .'Astérix na Lusitânia' é lançado esta quinta-feira. "Nós queremos que o país goste”, dizem autores. Fabcaro diz que nas suas viagens a Portugal para preparar a história não sentiu propriamente a “saudade portuguesa”, mas essa característica foi muito sublinhada pelas próprios portugueses. Já a hospitalidade lusa sentiu-a bem e quis explorá-la. Na pesquisa histórica diz que descobriu o Viriato, de que não tinha conhecimento, o garum, um molho à base de peixe que os romanos apreciavam e que os portugueses exportavam para todo o império, e que se tornou o móbil da intriga. Este é o segundo álbum das aventuras de Astérix para Fabcaro (fez também Astérix - O Lírio Branco, lançado há dois anos), mas Didier Conrad já fez sete álbuns, tendo sido escolhido por Albert Uderzo para assumir o desenho da série em 2012, juntamente com o argumentista Jean-Yves Ferri. Herdeiro de um legado de décadas, qual é o maior desafio de trabalhar nesta história aos quadradinhos? “É respeitar o espírito. Digamos que esta série nasceu de uma essência própria. E se nos afastarmos disso, já não é a mesma série. Por isso, é fundamental respeitar esse legado - mas, ao mesmo tempo, é preciso integrar sempre um toque de modernidade. Manter esse equilíbrio é o mais difícil”, diz Didier Conrad ao DN. O desenhador, que vive nos Estados Unidos e já trabalhou na DreamWorks, estúdio de filmes de animação, diz que “há uma grande máquina por detrás desta saga. É preciso ter em conta muitas coisas e muitas pessoas - algo que não acontece numa banda desenhada pessoal. De certa forma, é um processo mais coletivo do que individual. Ou seja, o ego não deve realmente ter lugar aqui. É preciso concentrar-nos no resultado final que se pretende alcançar.”Aos 66 anos, diz que já fez tudo o que queria realizar a nível pessoal, por isso não pensa deixar o projeto ou fazer uma pausa, como fez Jean-Yves Ferri, quando Fabcaro o substituiu. “Como se trata de algo diferente, embora dentro de universos que sempre gostei de explorar, e sendo um estilo exigente, é um verdadeiro desafio para mim tentar alcançar tudo o que o Uderzo conseguiu. Isso obriga-me a querer continuar a progredir”, diz ao DN. Quanto ao próximo livro, já há conversas “exploratórias, pistas”, mas há uma indefinição: quem será o argumentista?“É uma surpresa. Eu gostaria muito, mas o Jean-Yves foi escolhido por Albert Uderzo, ele fez cinco álbuns antes de mim, ele é prioritário. Se ele tiver uma ideia, se tiver vontade de voltar, ele terá prioridade, dependerá dele”, diz Fabcaro. .Nas primeiras horas de venda, 'Astérix na Lusitânia' bate obras de Fernando Pessoa na Bertrand do Chiado