Convite, Casa, Bosque, Nómadas, Maternidade. Com estas palavras se constrói a exposição Habitar a Contradição de Carlos Bunga, em exibição no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Fora de Portugal há duas décadas, esta mostra na qual o artista trabalha há dois anos, em colaboração com o curador Rui Mateus Amaral, diretor artístico do Museu de Arte Contemporânea de Toronto (MOCA), é vista como “um regresso a casa”. O “convite” veio do diretor do CAM, Benjamin Weil, e “com carta branca para trabalhar e fazer uma curadoria da coleção do museu”. Bunga e Rui Mateus Amaral iniciaram um processo de pesquisa sobre a própria instituição e a sua história. O resultado foi um novo olhar sobre a coleção do CAM, com a exibição de obras raramente mostradas, algumas até da Biblioteca de Arte e Arquivos, sempre em diálogo com o trabalho do artista.“Foi uma exposição em que deixei a pele, por ser o meu país, por ser um regresso. Queria que fosse uma exposição singular, que as pessoas olhassem para o Carlos Bunga, que tem estado lá fora, tem feito muitas coisas em muitos museus de todo o mundo, museus importantes, mas este era muito importante, por ser no país onde eu cresci, nasci. Entreguei -me de maneira muito intensa nestes dois anos, e agora o que eu quero é descansar”, confessa o artista ao DN.Carlos Bunga nasceu no Porto, em 1976, estudou na Escola Superior de Arte e Design (ESAD) das Caldas da Rainha, venceu o Prémio Novos Artistas Fundação EDP em 2003 e vive e trabalha há 15 anos perto de Barcelona. Antes de se fixar em Espanha, andou por outras paragens. “Para o meu trabalho foi importante estar fora, ver o mundo, conhecer gente, países, viver em muitos sítios.” . O artista é conhecido pelas suas construções efémeras, feitas de cartão e fita adesiva. Instalações temporárias, destinadas a serem derrubadas. É uma instalação desta natureza que ocupa a Nave do CAM. Colunas em cartão erguem-se quase até ao teto, incitando os visitantes a circular ou a encontrar ali um refúgio. A obra intitula-se Bosque, é a maior deste género que o artista já fez, e os cilindros que se elevam, que tanto podem remeter para colunas arquitetónicas como para troncos de árvores, têm o seu fim programado. “Depois há um momento em que eu volto para transformar esta instalação. Transformar significa cortá-la e tombá-la. A exposição ficará assim.”O dia em que o artista intervirá na obra novamente será a 14 de março de 2026, e a peça ali permanecerá até ao final desse mês, modificada. “É parte da exposição. Há um conceito, é uma espécie de aceleração temporal dos objetos. Quando temos um acidente, quando as coisas acontecem que não estão sob o nosso controle... Inclusive, quando falamos de uma exposição, monta-se, tem um tempo de vida e desmonta-se. E o que eu faço é montá-la e acelerá-la. Mas não é por uma questão de destruição, é por uma questão de transformação”. Porque, explica Carlos Bunga, “nós temos a obsessão pelo eterno. Temos pânico de ficar amnésicos, e por isso preservamos, conservamos. Mas o que é realmente permanente é a transformação das coisas. A natureza, a vida, é uma constante transformação e também está cheia de contradições”. .Para o artista, os museus têm de ser espaços vivos e é preciso “romper de maneira intencional com o estereótipo de não tocar”. “Houve uma coisa que me chamou a atenção nestes anos todos. Comecei a olhar para as fotografias das obras dos catálogos. Eu falava da presença das pessoas, mas nas fotografias não havia pessoas. E de repente comecei a ver que o importante não era só a instalação, era as pessoas interagindo com a obra. Quando olhas para as pessoas, quando interagem com a obra, elas parecem que fazem uma dança. Contornam, olham para cima, olham para baixo”.Os museus têm um papel ainda mais importante a desempenhar hoje, acredita Carlos Bunga. “Penso que são fundamentais, principalmente no mundo em que vivemos. Este mundo polarizado, do medo, de angústias, do digital e da internet. Poder entrar num museu e ter a experiência das obras é como um antídoto para o espírito”.Nesta mostra criaram-se ligações entre interior e exterior, com as cadeiras do jardim lá de fora a serem levadas para o interior do espaço expositivo para serem usadas pelos visitantes como quiserem. Por exemplo, viradas para as janelas através das quais se veem as árvores e plantas. Também há obras que estão lá fora, e em diálogo com as que estão no interior. . A obra de Carlos Bunga é diversificada, além de instalações site specific, inclui desenho, escultura, fotografia e vídeo. Para o curador Rui Mateus Amaral, Carlos Bunga mostra nesta exposição no CAM “uma vulnerabilidade e abertura que não existiu em exposições anteriores”. São cerca de 20 as obras de Carlos Bunga que nunca foram mostradas, por exemplo, Maternidade (2025), composta por três fotografias ampliadas da mãe do artista, que já morreu, tiradas nos anos 1980, em clubes noturnos no Cais do Sodré.Ela veio de Angola em 1975 para Portugal com uma filha de dois anos e grávida de Carlos Bunga. “Uma mãe imigrante, uma mãe solteira, uma mãe negra”, que não sabia ler nem escrever, que usou o corpo para poder cuidar. Mas não havia vergonha, mas força no seu olhar, apesar do racismo, misoginia e discriminação. “A minha mãe dançava de sorriso aberto, ela dizia que o sistema foi desenhado para enfraquecer as mulheres”, escreveu Carlos Bunga num texto que leu quando mostrou Maternidade aos jornalistas. “Mas o trabalho não se chama Mãe. Quis pôr Maternidade para falar a partir dela. Como ela era, a sua força, a vitalidade. Ela sempre foi assim, tranquila, natural, autêntica. O bonito é que ela, de alguma maneira, pode ser um espelho de tantas outras mulheres que se escondem, que vivem no silêncio. É uma posição política, essa força do olhar”, diz ao DN. . Uma outra referência à sua mãe está no desenho A minha primeira casa foi uma mulher, 1975 (2018), que mostra uma grávida com uma cabana no lugar da cabeça e um cartaz a dizer Portugal Colonial.A casa é um elemento fundamental na obra de Carlos Bunga, aparecem muitas, de variadas formas. Na obra o Lugar onde diariamente abandonamos o mundo (2021) vê-se uma cama num quarto negro com uma luz acesa na mesa de cabeceira. A cama, “que não é uma cama qualquer”, é igual às que havia no Forte de Peniche, que foi um centro de refugiados, onde ele viveu. Para Bunga, a arte foi a luz acesa, “a arte serviu de terapia”. Em Casa nº17 (2002) o artista mostra um modelo em pequena escala, feito a partir de uma caixa de cereais, da casa onde viveu em Torres Vedras, pré-fabricada, umas das que foram construídas no pós 25 de Abril para resolver a crise da habitação. Casas feitas para durarem dez anos, mas nas quais se viveram 20, casas destinadas a “desaparecer”. Antes de ser demolida, Carlos Bunga fotografou o interior da casa, já vazia, com brinquedos e outros objetos que ficaram para trás. Também registou a estrutura já derrubada. Imagens de “resistência contra o apagamento da memória”, diz o artista. . Também há casas no lugar das cabeças em corpos de criança, esculturas feitas de madeira da série que chamou Nómadas e para a qual fez seis novas esculturas para esta exposição. Também Carlos Bunga se sentiu nómada enquanto crescia, transitando de lugar em lugar. A palavra “nómada” foi ampliando o sentido e o artista aplica-a, por exemplo, para descrever a sua obra artística. “Temos a tendência para catalogar, para dar nomes. Este é um trabalho nómada. É um trabalho que quer, propositadamente, escapar às catalogações.”A ideia de casa está também nas esculturas expostas no átrio do CAM. São composições com mesas, cadeiras, armários, tapetes, candeeiros, mas que não podem ser usados, veiculando a ideia de “negação”, de “austeridade”, sublinha Rui Mateus Amaral. Apesar disso, diz o curador, o objetivo é dar a sensação de casa” a quem entra no espaço. Carlos Bunga resume: “Este projeto quer ser mais casa e menos museu”. .Cerith Wyn Evans. Luz, som, ar, objeto - quando tudo conflui, o que acontece?.Dino D'Santiago: “Só em Cabo Verde é que eu senti que entrava numa loja sem ninguém vir atrás de mim”