O paraíso perdido: Jamilli Correa e Rômulo Braga.
O paraíso perdido: Jamilli Correa e Rômulo Braga.

'Manas'. Os dramas ocultos da Amazónia

Com a estreia de Manas, de Marianna Brennand, reencontramos um certo cinema brasileiro enraizado numa riquíssima tradição social. Ainda assim, os resultados reflectem algum esquematismo dramático.
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Ao descobrirmos um filme como Manas, de Marianna Brennand, produção brasileira com uma participação portuguesa (através da empresa Fado Filmes), talvez seja inevitável inscrevê-lo numa riquíssima tradição social de que o Cinema Novo (Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Carlos Diegues, etc.) constitui uma referência modelar. Deparamos, de facto, com uma lógica em que o desejo de realismo se combina com a preocupação de dar conta de um Brasil habitado por muitas histórias recalcadas e personagens esquecidas.

Assim é, sem dúvida, neste mergulho numa realidade tão dramática quanto perturbante. E tanto mais quanto emerge uma inevitável nostalgia de um paraíso perdido quando somos confrontados com as paisagens exuberantes da Amazónia. Numa pequena povoação ribeirinha, descobrimos Marcielle, conhecida como Tielle (interpretada pela estreante Jamilli Correa), uma menina de 13 anos que vive com o pai, a mãe e mais três crianças do casal. A pouco e pouco, vamos percebendo que aquilo que parece uma existência de escassos recursos, mas com alguma estabilidade, esconde uma realidade muito crua: Tielle é abusada pelo pai, Marcílio (Rômulo Braga).

O filme, convenhamos, exibe as limitações próprias de um tratamento muito esquemático em que o uso (e abuso) da câmara à mão reflete, afinal, uma certa incapacidade de compor o espaço para lá de uma retórica visual de raiz televisiva. Dir-se-á que tal tratamento reflete a formação da realizadora na área documental, o que, em qualquer caso, faz com que as personagens quase não existam para lá da condição de “símbolos” de uma estrutura de cruel manipulação afetiva e repressão sexual.

Seja como for, há pelo menos uma dimensão através da qual Manas consegue superar a sua condição de “ilustração” televisiva da mensagem que está no trailer. Assim, através de várias personagens femininas, a começar pela própria mãe, Danielle (Fátima Macedo), Tielle vai percebendo que, além de o seu caso não ser isolado, há todo um sistema de cumplicidades, silêncios e medos que proclama, por vezes explicitamente, que “há coisas que não podem ser mudadas”...

Distinguido na secção Giornate degli Autori, na edição de 2024 do Festival de Veneza, Manas acaba por cumprir as regras correntes de um tipo de produções (cada vez mais frequente) que procura montar uma “reprodução” de um discurso de denúncia social que está previamente determinado e formatado. Não que isso invalide o valor moral das suas preocupações informativas. O certo é que tal não o impede de integrar uma tendência mediática em que o esquematismo panfletário raras vezes é pensado (e praticado) através de uma linguagem especificamente cinematográfica.

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