Eis uma expressão que tem tanto de retrato intuitivo como de hipótese filosófica: Mesmo Não Indo, o Tempo Vai. É esse o título da nova antologia de contos de António Tavares (ed. Dom Quixote, julho 2024). São 19 histórias que, em qualquer caso, se apresentam, não como “contos”, antes com a designação de “ficções” - um pormenor que não será uma mera questão de nomenclatura..Na verdade, a agressividade da mais medíocre cultura televisiva tende a associar a noção de “conto” ao estilo e à mensagem de alguns exercícios (ditos) documentais, cujo único objetivo é a redução de qualquer atividade humana a alguma forma de pitoresco..Que pitoresco é esse? Pois bem, a celebração das personagens e suas ações como sintomas mais ou menos anedóticos, por vezes grosseiramente caricaturais, da vida de todos os dias. Dos profissionais da política às vedetas do futebol, evita-se a complexidade dos factos, memórias e ideias, para que todos sejam tratados como agentes de uma futilidade sem responsabilidade - é esse o modelo corrente de pitoresco, ven- dido como inquestionável realismo..Ora, justamente, a escrita de António Tavares não é realista. Ou melhor, não o é nesse sentido vulgar e superficial. O que, entenda-se, não significa que estas prosas sejam estranhas aos contrastes de uma realidade carregada de índices realistas (passe a redundância). Porquê? Porque somos levados a compreender que a realidade é tanto aquilo que conhecemos em paralelo com as personagens, como tudo o que se lhes escapa através das suas ações..“A rapariga disse que dependia do enredo” - assim começa a ficção que se intitula, justamente, O Enredo. O que não quer dizer que se siga uma “explicação” daquilo que a “rapariga” disse. Logo a seguir, sem mudar de parágrafo, escreve o narrador: “Nesse momento, o motorista do autocarro fez uma travagem brusca e um sujeito idoso, agarrado a um varão, na zona do meio da viatura, voou até aos meus pés e caiu pesado sobre eles.” Pobre narrador, a realidade não o deixa descansar: “Era sempre este azar: se seguia na minha paz, algo haveria de cair-me em cima dos pés.”.Com metódica subtileza, as histórias vão adquirindo uma ambiguidade a que, à falta de melhor, poderemos chamar “cinematográfica”, de tal modo as evidências das imagens que nos são propostas atraem as mais inusitadas variações..Vale a pena citar o modo como o narrador, em pose cinéfila, faz o balanço dos seus fantasmas: “Todos os dias eu tinha estes sonhos ou visões como uma película de um filme a passar numa máquina de projeção, enquanto a fita ia mudando de uma bobine para outra. Às vezes, no sonho também havia plateia, como acontece nas execuções na América, gente enternecida por assistir à morte, à passagem de um ser vivo para outro que já está a deixar de ser.”.Realismo & absurdo.A nitidez da morte envolve a interrogação do tempo. Um pouco à maneira de alguns filmes clássicos, por exemplo da primeira fase existencial de Ingmar Bergman (fará sentido chamar-lhe existencialista?). Sentimos que o tempo baralha as evidências de quase tudo o que acontece. Na singularidade de uma nova imagem, na eclosão de uma frase imprevista, através de uma palavra por decifrar, o tempo parece decompor-se numa coleção de detritos que encerra o enigma do nosso ser. Enigma implacável..Assim se diz em O Velho Que Ouvia o Neto ao Piano, um pouco antes de se esclarecer a motivação do título do livro: “O tempo passou, como passam as nuvens, os viajantes pelas estradas e lugares, a meninice e a juventude.”.O autor cultiva uma frondosa diversidade, cuja gravidade não exclui momentos contagiantes de humor. Logo a abrir, por exemplo, em O Homem Que Levava as Chamas do Inferno a Arder Dentro de Si, o título é para ser tomado à letra. Em As asas das borboletas são de cores vivas, o lirismo inaugural antecipa a reviravolta de um verdadeiro conto policial. Enfim, em As Botas, o pitoresco, neste caso genuíno, do calçado do sargento em cenário de guerra irá desembocar na geometria de uma insólita parábola moral..Dir-se-ia que, ao lidar com os sobressaltos do quotidiano, António Tavares quis experimentar todas as formas narrativas que as próprias palavras pudessem atrair ou sustentar - o estilo evoca, aliás, O Coro dos Defuntos, que lhe valeu o Prémio Leya de 2015. Era um romance organizado em capítulos breves, outras tantas ficções sobre um universo também paradoxal: os dados realistas atraem sempre os deliciosos sobressaltos do absurdo.