Foi especialmente por motivos políticos e económicos que, entre os anos 50 e 60, centenas de milhares de portugueses se viram obrigados a abandonar o país rumo a França. Chamado “o salto”, o percurso clandestino está em destaque em Notre Feu, primeira exposição da francesa Isabelle Ferreira em Portugal, no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em cartaz desde a manhã desta quarta-feira, 22 de outubro. O título – “o nosso fogo", na tradução – evoca as noites à fogueira, quando migrantes portugueses, em plena ditadura salazarista, se aqueciam e se escondiam durante a travessia dos Pirenéus rumo ao exílio. A exposição traz uma viagem íntima da artista que transparece ao coletivo, feita de imagens interrompidas e gestos de rasgar, colar e agrafar.“O meu pai fez o salto, mas não é uma exposição realmente sobre o salto dele, é quase uma exposição mais sobre a segunda, terceira geração, que tem a herança deste período, os recortes que este salto causou”, explica a artista. "É uma herança um bocado complicada, há uma raiva que eu não compreendo bem, há silêncios, ausências, dúvidas e interrupções na narrativa que são complicadas de aprender", complementa..Na visita da reportagem do DN na inauguração da exposição, a curadora Joana P. R. Neves explica o trajeto pensado para quem chega à cave do MAAT e se depara com um dos trabalho de Isabelle Ferreira que faz a ligação entre a história e as obras da artista. Uma das peças centrais da mostra, L’invention du courage, refaz um antigo pacto comum entre o passador e o clandestino: antes da viagem, o migrante entregava uma fotografia ao traficante, que a rasgava ao meio. Uma metade ficava com a família, a outra seria enviada apenas se o viajante chegasse vivo ao destino.Isabelle retoma esse gesto como símbolo e linguagem. As imagens que cobre, corta e rasga, especialmente com o uso da madeira, não pertencem aos portugueses que fizeram a travessia à época, muito menos à sua família: são fotografias anónimas, de pessoas de diferentes partes do mundo em diferentes países. "Não tem nenhuma relação com arquivos de portugueses que tenham ficado ou que tenham ido e que fisicamente tenham o tipo, entre aspas, tenho algum aspecto português. Há uma tendência para fazer o esterótipo das comunidades estrangeiras num país, de ligar ao físico e houve uma vontade de fugir à este estereótipo", explica a curadora..As camadas interpretativas mencionadas por Isabelle acerca das lacunas e recortes do passado aparecem também de forma literal noutra obra, Par la nuit, série de fotografias do fundo francês LAPIE com imagens aéreas dos Pirenéus, onde era feita - e ainda é por tantos migrantes do Norte de África - a travessia, que foram manipuladas pela artista.“A fotografia está completa e eu coloco por cima um cartão, escondendo a imagem, e depois começo a trabalhar outra vez com ela, tentando pescar a luz, a matéria, a paisagem. Eu não corto, rasgo”, descreve. “É uma maneira de falar deste processo do salto nos Pirenéus, pela noite, com medo”, completa.Mais adiante, imagens dos Pirenéus voltam a ser protagonistas em Les témoins, obra composta por três peças de mobiliário com rodas que transparecem o sentido de "mover montanhas", completar um caminho sinuoso. As imagens simbolizam alguns dos obstáculos imponentes e as dificuldades com que se deparavam os emigrantes obrigados a atravessar a pé os Pirenéus sob a vigilância das autoridades..Noutro momento, o visitante encontra um conjunto de esculturas cilíndricas com alças inspiradas no vasculum, instrumento usado por botânicos no século XVIII. As peças remetem ao transporte de plantas e sementes, uma metáfora da migração natural e humana. “São objetos que têm alças e que são transportados, portanto é uma maneira de falar do dinamismo da paisagem e da mobilidade”, explica Isabelle.Já no centro da exposição, uma escultura monumental, Ker, palavra que significa "casa" em celta, domina a sala: um pilar construído no MAAT especialmente para a mostra acolhe pedaços de madeiras da região da Bretanha, extremo noroeste francês. “É uma árvore que tem mais de 300 anos e que caiu numa tempestade”, conta a artista, explicando que a longevidade da árvore faz com que a mesma represente diferentes gerações e faça uma ligação com a família: o fogo, a lareira, o lar..Já numa obra vizinha à centenária árvore, cajados de madeira voltam a simbolizar o sinuoso trajeto do salto. “Quando se segura nestes cajados, as mãos ficam magoadas, não dá para fazer o salto”, diz Isabelle que, tanto nos cajados, quanto nos troncos, utiliza agrafes, "que também ajudam a sibolizar a dificuldade da travessia" e que são pintados de prata, ouro e azul da Prússia.Em toda exibição, o rasgo, o corte, o agrafo e o peso da madeira funcionam como gramática de um mesmo gesto, o de tentar compreender uma herança feita de interrupções. A mostra culmina então em Staccato (Tejo), obra feita diretamente sobre a parede, uma mistura de pintura e escultura que dialoga com a arquitetura do museu..O processo é de pura paciência: cada folha e cada agrafo são pintados pela artista num trabalho, conta a curadora, que levou cinco dias para ser finalizado. As cores sobrepõem-se como camadas de tempo. “A ideia aqui não é representar nada, acaba por tornar-se uma paisagem abstrata, mas não é isso. Também não tem nada a ver com o Rio Tejo, como alguns pensam, o nome dado é pura e meramente pelo facto de ter feito o trabalho aqui" diz Isabelle, que já fez versões da série também em Paris e em Luxemburgo.Através de uma narrativa que reflete a complexidade das migrações e travessias, Notre Feu pode ser vista no MAAT até março de 2026 e convida, portanto, o visitante a aproximar-se do fogo. Mas sem se queimar.Veja mais fotos da exposição pelas lentes do fotojornalista do DN, Leonardo Negrão.Do Zé Povinho à Liga da Justiça, Amadora BD está de volta também no feminino e em português.Artista plástico João Queiroz morre aos 68 anos