Disponível a partir de amanhã em streaming (AppleTV+), o novo filme de Spike Lee apresenta-se com o título Highest 2 Lowest. Nele se sugere um contraste entre o “mais alto” e o “mais baixo”, identificando algum tipo de tensão ou, talvez, uma paradoxal aproximação. No Brasil, por exemplo, chamaram-lhe Luta de Classes, enquanto o título espanhol é Del Cielo al Inferno. Desta vez, a conservação do título original é uma opção totalmente lógica, já que na sua ambiguidade poética a expressão é também o título de uma canção — quem a interpreta (de forma prodigiosa!) numa cena fulcral do filme é a britânica Ayana-Lee.Tendo em conta a descoberta do filme pelo leitor/espetador, seria inadequado dizer mais do que isto sobre a raiz dramática da expressão “highest 2 lowest”. Seja como for, justifica-se o sublinhado de um detalhe que está longe de ser secundário, aliás conhecido através de todas as formas de promoção desta produção com chancela dos Apple Studios. Acontece que David King, a personagem central, composta pelo admirável Denzel Washington (na sua quinta colaboração com Spike Lee), é uma lenda viva da edição musical, admirado e respeitado por uma carreira de intransigente defesa da música negra através da sua empresa Stackin’ Hits Records.Estamos perante um filme que começa por ser um herdeiro legítimo e hipersofisticado da tradição do thriller. Com curiosas ramificações. Isto porque o argumento de Highest 2 Lowest, assinado por Alan Fox, tem duas inspirações: antes do mais, o clássico O Céu e o Inferno (1963), do japonês Akira Kurosawa (cujo título inglês é High and Low); depois, o romance King’s Ransom, de Ed McBain (publicado em 1959, e que também já servira de ponto de partida ao filme de Kurosawa).A tensão dramática instala-se a partir do momento em que o filho de King é raptado, sendo-lhe exigido um avultado resgate. Por um lado, o eventual pagamento desse resgate irá pôr em causa todo um processo de reconversão financeira previsto para a Stackin’ Hits Records; por outro lado, uma mudança perversa modifica o quadro geral dos acontecimentos: de facto, o raptor enganou-se e tem em seu poder o filho de Paul (Jeffrey Wright), motorista e confidente de King — o que, entenda-se, não anula a exigência do resgate e as ameaças que a acompanham...Dizer que Highest 2 Lowest é uma variação brilhante sobre a tradição do policial é pouco para celebrar o génio narrativo de Spike Lee. Desde logo, porque ele é (continua a ser) um dos mais extraordinários retratistas da complexidade de personagens e povos de Nova Iorque — o genérico de abertura, feito com imagens de marca nova-iorquinas (e Oh, What a Beautiful Mornin’, da dupla Rodgers/Hammerstein II, na banda sonora), é das coisas mais belas que, em tempos recentes, o cinema nos propôs. Depois, porque esta é, em última instância, uma fábula desencantada, ainda que temperada por uma esperança talvez surpreendente, sobre o mais difícil dos temas. A saber: a circulação do dinheiro.Apenas em streamingSimplificando, Highest 2 Lowest é um objeto em que, à semelhança de outros momentos emblemáticos da filmografia de Spike Lee — penso em A Última Hora (2002), um dos primeiros títulos a integrar referências aos efeitos do 11 de setembro —, é uma confissão de amor por Nova Iorque. Spike Lee revisita e reinventa matrizes de “contos morais” clássicos, de Elia Kazan a Martin Scorsese, preservando um espírito narrativo algures entre o realismo e a epopeia.Resta dizer que, ao contrário do que aconteceu nos EUA (ainda que por um período limitado), Highest 2 Lowest não está nas salas escuras, impedindo-nos assim de saborear em tamanho grande o requinte visual da direção fotográfica de Matthew Libatique — e também a envolvência da sua banda sonora. O que, bem entendido, não impede de ficar, desde já, como um dos filmes maiores de 2025..Eden. Até mesmo o paraíso está em crise.O Último Azul. Ser ou não ser velho, eis a questão