João Gonçalves e Saoussen Khalifa conheceram-se nas aulas de tango na Voz do Operário. O professor de educação física português e a tradutora/intérprete franco-tunisina depressa perceberam que partilhavam a mesma forma de olhar a vida. Entre conversas, chegaram à conclusão que se há “muitas ligações entre o mundo árabe e Portugal, muitas vezes não são exploradas”, explica agora João na esplanada da Cinemateca. O professor destaca as ligações históricas, a língua, a arquitetura, mas também” o modo de ser, especialmente a sul do Tejo” que é muito semelhante ao do Norte de África. Mas não só esta relação “é pouco conhecida”, como há “muitos estereótipos vincados”. João e Saoussen decidiram então que o cinema poderia ser uma forma de “mostrar esta realidade, que está tão próxima, está do outro lado do Mediterrâneo, mas que nos parece tão distante.”Assim nascia o Lisbon Arab Filme Festival (LAFF), que este ano vai para a segunda edição. Entre 27 de setembro e 4 de outubro, são vários os filmes árabes que vão passar na Culturgest e na Cinemateca, em Lisboa. A começar, na sessão de abertura, com Promised Sky, da realizadora franco-tunisina Erige Sehiri. Em Portugal há seis anos (depois de passagens por Paris e Londres), Saoussen garante que mal chegou a Lisboa sentiu-se logo em casa. E destaca as semelhanças com a sua Tunísia. Sentada em frente a João, a intérprete admite também que apesar da proximidade, “há uma espécie de desconhecimento, há pouco intercâmbio entre Portugal e o mundo árabe”. E também ela destaca as “muitas ideias preconcebidas”, alimentadas por uma cobertura mediática sobre aquela zona do mundo que tende a focar nos aspetos negativos - “é o terrorismo, a pobreza, os conflitos em França e na Alemanha, a questão dos imigrantes”. E garante: “Através deste festival, a ideia é mostrar que o mundo árabe é muito diverso, há uma grande diversidade e uma grande riqueza que é muitas vezes esquecida.”Nesta segunda edição, o LAFF traz algumas novidades, a começar por se dividir entre dois espaços - a Cinemateca junta-se à Culturgest e vai receber a Secção Retrospetiva, a 29 de setembro. “Passámos de dez filmes no ano passado para 16 este ano: 12 da Culturgest e quatro na Cinemateca”, explica João.E Saoussen continua: “Na secção principal o nosso foco é mostrar os filmes mais recentes, o cinema contemporâneo árabe. São os filmes mais destacados dos últimos anos, que foram premiados por outros festivais internacionais, europeus e árabes.” Para a intérprete, não há dúvidas que a paisagem cinematográfica árabe é cada vez mais dinâmica, sobretudo depois da Primavera Árabe. Historicamente há uma forte tradição cinematográfica no mundo árabe, com filmes bastante ousados, com estéticas quase documentais, que falam de questões bastante sensíveis, mas a partir de 2011 houve mesmo uma explosão de produção e de obras cinematográficas por realizadores muito talentosos e jovens destas diferentes regiões.”Para tal, muito contribuiu o crescente reconhecimento internacional. Ainda há pouco no Festival de Veneza o filme The Voice of Hind Rajab, da cineasta tunisiana Kaouther Ben Hania e que conta a história da morte de uma menina palestiniana que estava num carro alvejado por forças israelitas na Faixa de Gaza, obteve uma ovação de 23 minutos. João admite que a questão palestiniana “torna a visibilidade dos filmes muito maior”, mas Saoussen sublinha que não é o foco do festival, que pretende antes mostrar “a diversidade do mundo árabe”. Essa diversidade também se reflete na língua. É que se todos os países árabes partilham o árabe clássico, cada um deles tem a sua versão da língua árabe. Conseguem entender-se? “Entre os países do mundo árabe, embora haja expressões diferentes, palavras diferentes, entendemo-nos mais ou menos porque temos aquela língua comum”, explica Saoussen. “Em Marrocos, Egito ou Líbano, por exemplo, são variantes muito diferentes. Mas entende-se”, continua a intérprete, antes de João lembrar que aqui em Lisboa a questão não se coloca ou não fossem todos os filmes do LAFF legendados em português e inglês - “porque o nosso festival é mesmo para todos.”.Quando falamos em cinema, pensamos na indústria americana com Hollywood, pensamos também em Bollywood, a mega indústria do cinema indiano, e até talvez já tenhamos ouvido falar no cinema nigeriano de Nollywood, mas o que é que o espectador português pode esperar de diferente do cinema árabe? João começa por explicar que para o cinema árabe o Cairo é o grande centro de produção e de visibilidade, mas o professor admite que hoje há muitos festivais árabes de renome - “Marraquexe, Amã, o Red Sea, na Arábia Saudita, está a crescer muito, cada vez há mais produções sauditas. No Egito há vários e na Tunísia também. São festivais bastante reconhecidos, que atraem muitos realizadores.”Saoussen concorda e lembra que “historicamente, as primeiras produções cinematográficas no mundo árabe foram no Egito, que foi considerado um pouco como a Hollywood do mundo árabe”, mas acabou por alastrar a outras regiões. “Na Tunísia, em 1966, temos o primeiro Festival de Cinema Internacional do mundo árabe, as Jornadas Cinematográficas de Cartago. Este festival ainda hoje existe, é organizado todos os anos, e manteve aquela vontade de mostrar cinema independente”, conta. Para a tradutora e intérprete essa é uma característica incontornável do cinema árabe: “é cinema comprometido, que mostra muitas vezes as realidades sociais daqueles países.” Ou seja, “desde o início da história do cinema árabe que há realizadores bastante ousados, que quiseram nas suas produções desafiar um pouco o status quo e mostrar realidades às vezes difíceis.”Empenhado em alargar o âmbito do festival, mas sem nunca fugir ao cinema, os co-diretores do LAFF contam como antes de algumas sessões haverá pequenos momentos de degustação de gastronomia dos respetivos países e juntar alguma música também está em cima da mesa. Mas e no cinema, algum filme/realizador que queiram destacar? Saoussen remexe nos papéis e volta ao filme de abertura do festival, Promised Sky, para lembrar que este integrou a seleção Un Certain Regard no Festival de Cannes e que conta a história de três mulheres da Costa do Marfim na Tunísia. “Fala da realidade dos migrantes da África subsaariana, cristãos, num país árabe [de maioria muçulmana]. Eles têm o sonho de uma vida melhor, mais segura. Então, fazem o caminho para a Europa, mas muitas vezes param ali, no norte da África”, explica a intérprete, antes de prosseguir: “o filme mostra como as populações, umas e outras, interagem com as dificuldades, com a pobreza”. Uma realidade, diz, “muitas vezes ignorada” aqui na Europa. Destaque ainda para From Ground Zero, do palestiniano Rashid Masharawi. “Este é um documentário, é uma composição de 22 curtas-metragens. Cada uma de 3 a 6 minutos. E é mesmo muito poderoso. Passa-se em Gaza depois do início da guerra e mostra o impacto da destruição no dia a dia” e como isso obriga a desenvolver a criatividade, sublinha Saoussen. Por fim, destaque ainda para Happy Hollidays, do palestiniano Scandar Copti, premiado em Veneza no ano passado pelo melhor argumento. Passado em Haifa, cidade israelita com forte minoria árabe, “fala de uma comunidade que se sente de segunda divisão, oprimida”, diz Saoussen sem querer fazer spoiler. Quem quiser saber mais, é ir até à Culturgest (bilhetes 5 euros) ou à Cinemateca (bilhetes 3,20 euros) já a partir de dia 27. Veja AQUI o programa completo.