O Ateneu, a magnífica sala de espetáculos de Bucareste, ostenta um friso histórico com pinturas que vão da conquista romana da Dácia, com Trajano a enfrentar Decébalo, à coroação de Fernando I e da rainha Maria em Alba Iulia, quando após a Primeira Guerra Mundial se deu a reunificação das terras romenas. O compositor George Enescu, nascido em 1881, cuja estátua orna a escadaria central do Ateneu, é um outro género de herói celebrado pela Roménia, o cultural. E o seu nome, espalhado por Bucareste e por todo o país (em estátuas, ruas e instituições), ganhou, como já é tradição, destaque em agosto e setembro, graças ao festival de música com o seu nome que se realiza a cada dois anos. No mítico Ateneu, o tal do friso histórico que bem poderia incluir o compositor (tal como o escultor Constantin Brancusi e tantos outros romenos geniais do século XX), vi o maestro Gabriel Bebeselea e a Orquestra Sinfónica de Antuérpia, por entre obras de George Gershwin e Arturo Marquez, dirigir de Isaac Albéniz Rapsódia Espanhola Op. 70, com arranjo para piano e orquestra de Enescu. E na outra sala do Festival Internacional George Enescu, a ampla Sala do Palácio (acrescentada ao antigo Palácio Real durante a era comunista), ouvi do compositor romeno Suite N.2 em C Maior, interpretada pela Orquestra Sinfónica de Frankfurt, dirigida por Alain Altinoglu. . Durou quase um mês o Festival Enescu, este ano de 24 de agosto a 21 de setembro. Sempre com salas repletas, por um público romeno apaixonado por música clássica, mas também por uma audiência internacional, boa parte já repetente neste festival que se iniciou em 1958, apenas três anos depois da morte de Enescu. Simbolicamente, o concerto de abertura da edição de 2025, ano em que se assinalam 70 anos da morte do músico, foi Poema Romeno, Op. 1, a sua primeira composição, ainda muito jovem, com o maestro Cristian Macelaru a dirigir a Orquestra Filarmónica George Enescu. . Entrevistei Macelaru há uns meses em Lisboa. É o diretor da Orquestra Nacional de França, e o maestro que vimos na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris enfrentar a chuva. O título dessa entrevista foi “A Roménia sempre deu importância à Educação. E sobretudo a Educação Musical tornou-se uma obsessão”. Enescu tem um papel decisivo nesse amor dos romenos à música clássica. “Estamos a falar de alguém que nasceu em 1881. Portanto, que cresceu nas duas últimas décadas do século XIX. E, nessa altura, a Roménia não era um país tão focado neste tipo de arte erudita. Se olharmos para o mapa, há uma grande encruzilhada onde a Roménia fica. Por causa do Danúbio, do Mar Negro e dos Cárpatos sempre se manteve como uma fronteira entre o Norte e o Sul e entre o Leste e o Oeste. Tantos impérios e povos, ao longo de mais de mil anos, vieram e trouxeram as suas influências. Mas o país era, sobretudo, uma sociedade agrária. Não era tanto uma sociedade que florescesse, porque quando as pessoas passam fome, é muito difícil pensarem em arte. Depois, quando se chega a um patamar economicamente estável, investe-se nas artes. É um progresso natural do funcionamento das sociedades, e é por isso que, na década de 1880, quando Enescu nasceu como um talento inacreditável, muito foi possível”, disse-me, em junho, o maestro. Esteve em Portugal por iniciativa do Instituto Cultural Romeno de Lisboa para apresentar o Festival Enescu. “Enescu foi uma criança prodígio. E foi para Viena estudar por isso. Começou a tocar violino aos quatro anos. Aos sete foi estudar com grandes professores. A imprensa vienense considerava-o um Mozart romeno. Depois foi para França. E com 16 anos apresentou ao público em Paris Poema Romeno, uma obra orquestral lindíssima”, diz Cristina Andrei, diretora do Museu Nacional George Enescu, cujo polo principal está em Bucareste, no Palácio Cantacuzino. . Mas Enescu nunca fez do palácio na Avenida da Vitória a sua casa, explica Andrei: “O palácio foi mandado construir pelo pai do primeiro marido da mulher de Enescu, uma viúva aristocrata com quem ele casou quando já ambos passavam dos 50 anos. Maruca era uma mulher bonita e enigmática. Inteligente e com carisma. Num curto período, no final da Segunda Guerra Mundial, ele viveu numa pequena casa atrás do palácio, que também está a ser restaurada. Enescu era um homem modesto, e não gostava de viver no luxo. Sempre foi dedicado à música e era uma pessoa muito generosa. Ao longo da vida apoiou muitas pessoas, especialmente músicos, tanto compositores como intérpretes, e isso faz parte do seu legado”. Acrescenta a diretora do museu que guarda manuscritos e até instrumentos do compositor que foi também um grande violinista, que “Enescu merece lugar de destaque na consciência universal. Para alguns, a sua música é difícil, complexa, mas é uma música visionária. Enescu não compôs para a época, mas sim para nós que vivemos no século XXI”. Entre o Museu Enescu e o Ateneu serão uns bons 20 minutos a andar. Oportunidade para ver os cartazes com nomes sonantes da música clássica mundial que não falham o Festival. Vêm a Bucareste celebrar um compositor que pôs a Roménia no mapa da música clássica. “Até bem dentro do século XIX, embora autónoma, a Roménia esteve sob domínio otomano. Nesta parte da Europa, a cultura predominante era otomana. Por exemplo, a única música barroca era a da Igreja Ortodoxa. Na Transilvânia era diferente, pois estava sob o domínio dos Habsburgos. Enescu, auxiliado pela família real romena, foi estudar para Viena e Paris. Nas obras da primeira parte da sua vida, há uma influência musical alemã evidente. Especialmente de Brahms. Depois dos estudos em França, em que teve como professores Gabriel Fauré e Jules Massenet, começou a ser ele próprio. E integrou-se muito bem em Paris. Foi logo reconhecido o seu talento incrível, primeiro como violinista, mas também como compositor, pianista e maestro. E trouxe esse saber para a Roménia. Ajudou muito a desenvolver aqui a música clássica. Apoiou muitos músicos”, contextualiza Marin Cazacu, violoncelista e diretor-geral da Filarmónica George Enescu, baseada no Ateneu. Fundada em 1868 como Filarmónica de Bucareste, recebeu o atual nome depois da morte do compositor e, tal como aconteceu este ano, faz o concerto de abertura do Festival. . Cazacu conta que conhece o nome de Enescu desde criança, como todos os romenos, uns via família, outros graças à escola. A “obsessão” romena pela música clássica afirmou-se durante a monarquia, mas manteve-se durante o regime comunista, que se impôs a seguir à Segunda Guerra Mundial e só terminou em 1989, com a Revolução que derrubou Nicolae Ceausescu. Mas o também professor na Universidade Nacional de Música de Bucareste, conta que teve o privilégio de aprender com alguém que foi próximo de Enescu: “O meu professor de violoncelo foi descoberto ainda jovem por Enescu, nos anos 1930, na atual República da Moldova, que então fazia parte da Roménia. Depois de o ouvir, de ver que estava ali um grande talento, disse-lhe que tinha que ir com ele, ofereceu-lhe uma bolsa para o Conservatório Real de Bucareste. A amizade entre os dois foi para a vida”. Cazacu vai buscar um livro sobre esse professor, Serafim Antropov, que tanto o marcou. O rosto está na capa. E recorda-me que Enescu nasceu em Liveni, também na histórica Moldova (ou Moldávia), mas na parte ocidental que continua a ser Roménia, ao contrário da chamada Bessarábia, que Estaline anexou em 1940 e foi parte da União Soviética até 1991.A conversa é em francês, a lembrar como a França é uma referência para a Roménia, orgulhosa da sua língua latina, um milagre pois o país historicamente esteve rodeado por alemães, húngaros, eslavos e, até certa época, turcos. Ora, nesta ilha de latinidade, Paris era vista como o centro do mundo e Enescu tornou-se conhecido lá, e foi a partir de lá que se tornou um compositor universal. Quando percebeu que o Kremlin ia impor o comunismo na Roménia, deixou de novo Bucareste e acabou por morrer em Paris. Está sepultado no Père-Lachaise. “A França é decisiva na formação de Enescu, mas o espírito romeno impregna a sua música. Por exemplo, as suas primeiras obras, as duas rapsódias, são influenciadas pelo folclore romeno. Todos os romenos, quando as ouvem, sentem-se realmente parte deste país. E há um certo folclore romeno que foi criado por Enescu. Mas volto a dizer: os seus pensamentos sobre a música nunca foram tornar-se um folclorista romeno. Ele queria ser um compositor universal”, afirma o diretor-geral da Filarmónica Enescu. Essa ambição de universalidade explica complexidade de que já a diretora do Museu Enescu falava. Cazacu alerta que “nem todas as obras de Enescu são imediatamente acessíveis ao público. São complicadas. Enescu gostava muito de polifonia. Muitas vozes significam polifonia. Era uma pessoa complexa por dentro, penso eu, ouvindo a música. Mas tinha uma generosidade incrível. Porque na sua música esperamos sempre a harmonia da vida”. Ao longo da vida, entre períodos que viveu na Roménia e outros fora, até ao exílio final, Enescu não só se foi tornando uma marca nacional, como trouxe a Bucareste músicos como Richard Strauss, Igor Stravinsky, Massenet e Ravel. “A centralidade cultural de Bucareste entre as duas guerras mundiais era, numa importante medida, produto das ações de Enescu. Os maiores compositores vieram ao Ateneu apresentar a sua música”, realça o professor Cazacu, que diz que o compositor é essencial na formação dos músicos romenos.Agora na Sala do Palácio, converso com Valentin Serban, jovem violinista, mas um nome já consagrado. “Sou de Brasov. E ouvi o nome de Enescu muito cedo. Mas é um pouco contraditório, pois é um símbolo nacional, mas poucos sabem verdadeiramente sobre ele. É um compositor intelectual, à frente do seu tempo. Há quem conheça as rapsódias, mas o que Enescu deixou de mais importante nem sempre é fácil. É muito filosófico. Naquela época, sobretudo, as orquestras tinham dificuldade em interpretar as obras. Acho que ele ficaria feliz de viver agora e ouvir o quão boa uma orquestra pode ser hoje e como pode tocar a sua música. É um génio. Criou tradição musical na Roménia e nos últimos anos tornou-se mais famoso e em parte isso deve-se a este festival, que recebe orquestras do mundo inteiro, que depois voltam a casa e tocam Enescu”.Cristina Uruc, diretora-executiva do Festival Enescu, satisfeita com o sucesso de mais uma edição, a 27.ª, com mais de cem concertos, e 4000 músicos de 28 países, sublinha que todo o esforço da organização “é feito não só para promover e divulgar o legado de Enescu como músico e como uma das figuras romenas mais importantes, mas também para dar uma ideia ao mundo do que a Roménia é. É um sinal muito importante o facto de o Estado romeno apoiar a cultura financiando o Festival Enescu e atraindo turistas de todo o mundo, de forma a aumentar também a visibilidade da Roménia. O festival é a marca cultural romena mais conhecida. Por isso, atrai muitos visitantes. Depois, descobrem os marcos arquitetónicos de Bucareste e a natureza da Roménia. Chegam a ficar duas semanas, descobrindo a gastronomia e a cultura locais e muito mais. Por isso, setembro é um mês muito animado e multicultural em Bucareste. E vamos fazer tudo para que continue assim”. . A 28.ª edição do festival será em 2027. E no próximo ano realiza-se o Concurso Internacional Enescu, que premeia jovens músicos talentosos, como Serban, o violinista de Brasov, vencedor do grande prémio em 2020/2021, que no final da nossa conversa recomendou muito ver a ópera Édipo, mais uma obra-prima de Enescu, o “romeno universal”. .“Roménia sempre deu importância à Educação. E sobretudo a Educação Musical tornou-se uma obsessão” ."Venho da Roménia e descubro em Portugal, pelo menos, uma dezena de grandes arquitetos".“A grande lição que todos aprendemos na Roménia é que a liberdade não é grátis“