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Gelu Savonea, em Bucareste

"Venho da Roménia e descubro em Portugal, pelo menos, uma dezena de grandes arquitetos"

Gelu Savonea, arquiteto romeno que foi vice-diretor do Instituto Cultural Romeno de Lisboa, fluente em português, fala do racionalismo português, tema da sua tese de doutoramento, publicada em livro.
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Defendeu uma tese na Roménia sobre a arquitetura racionalista portuguesa, entretanto já editada em livro. Como é que se interessou pelo racionalismo português? Foi porque estava em Portugal a trabalhar no Instituto Cultural Romeno em Lisboa e surgiu a oportunidade ou porque havia ali qualquer coisa capaz de fascinar um arquiteto seja de que nacionalidade for?

Sempre fui atraído pelo racionalismo, desde a escola. Tive um professor, Sorin Vasilescu, que me influenciou. E a arquitetura portuguesa é muito desconhecida na Roménia. Além do estilo manuelino, nem na faculdade se ensina arquitetura portuguesa. Dos três estilos, permita-me uma brincadeira, importantes portugueses só conhecia o manuelino. Dos dois outros, o pombalino e o ”raul-lino”, não se conhece nada. Então, quando cheguei a Portugal e descobri esta arquitetura modernista portuguesa que é tão próxima da arquitetura italiana racionalista e da arquitetura romena, da mesma altura, fiquei maravilhado, gostei imenso e atraiu-me, claro. Venho da Roménia e descubro em Portugal, pelo menos, uma dezena de grandes arquitetos. Quando digo grandes, é a um nível europeu, não são só importantes para a arquitetura portuguesa.

Desses grandes, dois ou três que possa destacar?

Em primeiro lugar, Pardal Monteiro. Depois, Jorge Segurado, Cotinelli Telmo, Keil do Amaral, Adelino Nunes, Cassiano Branco e Cristino da Silva etc.

Na tese, apesar de publicada em romeno, tem um apêndice em português, e percebe-se que, além dos arquitetos, cita duas figuras que não sendo arquitetos foram importantes. António Ferro, o antigo jornalista do Diário de Notícias que depois vai ser o homem da propaganda salazarista, também Duarte Pacheco, o célebre ministro das Obras Públicas. Porquê?

Os dois tinham vínculos de visão política com os meios intelectuais portugueses. Foram também dois estadistas, apesar de Ferro não ser ministro, dois estadistas visionários, que apoiaram a arquitetura modernista, em geral, e o racionalismo, em particular, que sem eles não podiam ter tido este desenvolvimento em Portugal. Há aqui, também um paradoxo: o rebelde Ferro, torna - com o seu peso no regime - a arquitetura (e as outras artes também) de vanguarda na arte “oficial” dum regime fundamentalmente conservador…

Gare marítima do Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lísboa, de Pardal Monteiro
Gare marítima do Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lísboa, de Pardal MonteiroDR

Esta arquitetura modernista está muito associada ao Estado Novo, porque é promovida pelo Estado Novo, mas quem hoje passear, por exemplo, por Lisboa, encontra facilmente edifícios racionalistas que se tornaram parte da cidade. A Marítima de Alcântara é um deles...

Sim, é de Pardal Monteiro.

Que outros edifícios emblemáticos, racionalistas, são facilmente reconhecíveis em Lisboa?

Bom, além da Gare Marítima de Alcântara também a da Rocha do Conde de Óbidos, mas o primeiro que me saltou à vista não foi em Lisboa, foi o edifício dos CTT no Estoril. Que fica perto da estrada marginal. É muito fácil de ver. Para mim, como arquiteto, era mesmo muito óbvio que se tratava de uma coisa diferente da arquitetura tradicional portuguesa. E era muito no sentido italiano da arquitetura moderna.

Sou de Setúbal, e em Setúbal o edifício central dos correios parece-se muito com o do Estoril. É do mesmo arquiteto?

Sim, sim. As mais bonitas sedes dos correios daqueles anos são feitas por Adelino Nunes. Era unidade estilística promovida pela CTT, porque era uma imagem que comunicava a marca.

Também há igrejas construídas como esta lógica racionalista, certo?

São várias. Em Lisboa, posso dar o exemplo da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, que recebeu o prémio Valmor de 1938, e que é aparentada com a Igreja de Raincy de Auguste Perret. Pardal Monteiro teve uma colaboração de longo prazo com o arquiteto francês. Depois também há a Capela de São Gabriel, de Jorge Segurado, e mais tarde as igrejas construídas pelos arquitetos do grupo MRAR, o Movimento de Renovação da Arte Religiosa.

Prédio do atual ministério da Economia romeno, na Calea Victoria, em Bucareste, de Duiliu Marcu, é exemplo do racionalismo na Roménia
Prédio do atual ministério da Economia romeno, na Calea Victoria, em Bucareste, de Duiliu Marcu, é exemplo do racionalismo na RoméniaDR

Portanto, esta arquitetura racionalista pode estar em edifícios dos correios, pode estar nas gares marítimas, pode estar em igrejas...

Sim, e pode estar em edifícios de escritórios, na arquitetura industrial, na arquitetura da habitação, em tudo. Jorge Segurado, por exemplo, fez o edifício da Tobis, os estúdios cinematográficos oficiais do regime.

Há pouco referiu que este é um estilo muito inspirado na arquitetura italiana. E a Roménia recebeu também essa influência. Faz sentido este trio de países?

Sim, sim, claro. O interessante é que - bom, este é menos o caso de Portugal, pois nesta altura já há poucos arquitetos portugueses que vão a estudar nas universidades em França (foi a geração precedente que o fez) mesmo que façam viagens profissionais, para ver o que se passa na arquitetura francesa - na época há muitos romenos que andavam em França a estudar. Ion Mincu, o fundador da escola romena de arquitetura estudou nas Belas Artes de Paris, Petre Antonescu também. Entre os modernistas há Duiliu Marcu (aluno do grande Victor Laloux, tal como Cristino da Silva), Horia Creanga, Constantin Mosinschi, e outros. E o que é interessante é que, uma vez regressados ao país, os modernistas olham mais para a arquitetura italiana, do que para a arquitetura francesa. A mesma coisa fazem os arquitetos portugueses, de certo modo. Eles se dirigem-se mais para a Itália, do ponto de vista profissional e da inspiração, do que para a França, mesmo sendo a França, naquele momento, o país que mais influenciava a arquitetura. Porquê? Talvez porque Bauhaus e LeCorbusier na França proponham uma arquitetura da tabúa rasa (ver La Cité Radieuse) que era inaceitável para tradições culturais tão ricas como as de Itália, Portugal e Roménia. Pensar “global” sim, mas acionar “local”, tendo em conta o ambiente construído e cultural, às tradições artísticas e históricas - essa era a “oferta” dos racionalistas dos três países, uma “oferta” que nasceu na Itália, no Politécnico de Milão, com o Gruppo MIAR.. O racionalismo permite também, gracas ao respeito da história e das tradições do lugar, a aparição das especificidades locais, e eis a razão das diferenciações dos racionalismos dos diferentes racionalismos nacionais entre Itália, Portugal, Roménia, França, etc.

Já falamos aqui de Pardal Monteiro, como um dos nomes importantes do racionalismo português. O Edifício Histórico do Diário de Notícias, que foi prémio Valmor em 1940, e que é de Pardal Monteiro, enquadra-se nesse estilo?

Sim, mas tenho que dizer que a história racionalista e o Art Deco (e o Futurismo na arquitetura) se misturam nas fronteiras dos três. Não há, na história, estilo puro. Então, há uma influência bastante importante do Art Deco nesse edifício histórico do Diário de Notícias. O racionalismo, na obra de Pardal Monteiro, é mais evidente na Gare Marítima de Alcântara, por exemplo. Eu vejo o racionalismo em oposição com o estilo Bauhaus. O estilo Bauhaus faz tábua rasa de toda a arquitetura que existia antes. Esse é o pensamento de Walter Gropius e também de Corbusier. O racionalismo, por seu lado, diz que não podemos tábua rasa daquilo que já se construiu. Não podemos aterrar Paris inteiro, como foi o projeto do Corbusier e da Cité Radieuse, e construir imóveis de 20 andares. Fazemos uma arquitetura racional, que racionaliza os aspectos da vida, que se adapta ao novo modo de vida dos homens do século XX. Mas, ao mesmo tempo, ficamos com os materiais que já existem, com os prédios que já existem, e fazemos uma arquitetura para integrar tudo isso, em vez de fazer tábua rasa. Então, deste ponto de vista mais conceitual do que da forma, o edifício histórico do Diário de Notícias, um dos mais prestigiados endereços de Lisboa, é racionalista. Talvez a decoração seja art deco.

Livro resultante da tese de Gelu Savonea
Livro resultante da tese de Gelu SavoneaDR

Falou há pouco de António Ferro, de Duarte Pacheco, do próprio Estado Novo incentivar esta construção racionalista. Também falámos da Itália, que na altura era liderada por Mussolini, o criador do fascismo.  Mas este estilo existe em vários países da Europa, independentemente da ideologia política dos governos? Ou seja, é um estilo de época?

Sim, até há racionalismo em França. Então, se pensarmos assim, podemos ver que há uma ditadura na Itália. Há um Estado voluntarista, que vai se tornar ditadura com o tempo (talvez a morte de Pacheco e a remoção de Ferro tenham tido também um papel nessa evolução), em Portugal. Há uma democracia liberal na Roménia e na França. Então, esta é a prova que o racionalismo é independente. Até sobreviveu ao fim das ditaduras. Porque há o neo-racionalismo italiano depois da guerra, quando já a Itália era uma democracia.

Em Bucareste, que edifícios são hoje os mais representativos deste racionalismo? 

Para mim, emblemático do racionalismo romeno, é o prédio atual do Ministério da Economia, na Calea Victoriei (em restauro há demasiados anos). É um exemplo das virtudes de arquiteto e urbanismo novador de Duiliu Marcu, que soube integrar na Calea Victoriei, a mais antiga e bela avenida de Bucareste, um edifício que marca a entrada da avenida na modernidade sem contrariar o seu carácter histórico.          

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“Roménia sempre deu importância à Educação. E sobretudo a Educação Musical tornou-se uma obsessão”
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“Coloco-me sempre uma questão: como é que Pessoa diria isto se falasse romeno?”

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