“Coloco-me sempre uma questão: como é que Pessoa diria isto se falasse romeno?”
Paulo Alexandrino/Global Imagens

“Coloco-me sempre uma questão: como é que Pessoa diria isto se falasse romeno?”

'Mensagem', de Fernando Pessoa, pode ser agora lido em romeno, com o título 'Mesajul'. O tradutor foi o professor e ensaísta Dan Caragea, um romeno que ainda criança se deixou fascinar por Portugal e que, se fez a primeira visita a Lisboa em 1977, a partir de 1991 fixou-se de vez no país.
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Fernando Pessoa é o máximo do desafio quando se tem que traduzir algum autor português?  É mais difícil do que traduzir, por exemplo, Luís Vaz de Camões?
 Não sei se é mais difícil. Em certos aspetos pode ser, noutros aspetos menos. Mas é uma questão também de ver a que ponto podemos chegar nesta ideia de oferecer uma equivalência, de dentro, conhecendo um pouco os mecanismos poéticos e a forma como Pessoa constrói o seu universo. E tentar reproduzir isso num outro idioma. No fundo, coloco-me sempre uma questão simples, no início. Como é que Pessoa diria isto se soubesse romeno? Se fosse bilingue? Esta é a hipótese de partida, conhecia o idioma, tal como conhecia o inglês, e então, como é que ele se expressaria? Esta é a minha ambição, sugerir um pouco qual é a sonoridade global de um poeta como Pessoa num outro idioma, neste caso o romeno.

Mas há uma dificuldade extra, e por isso fiz a comparação com Camões, que é muito do que Pessoa escreveu tem que ver com mitos portugueses, com referências portuguesas, com figuras portuguesas. Passar isso para o leitor romeno é duplamente complexo?
 Sim, e Camões é igualmente complicado. Toda a viagem de Vasco da Gama n’Os Lusíadas, mesmo para os jovens portugueses, é complicada. Porque não conhecem as figuras mitológicas, desconhecem as referências históricas, etc. Portanto, esta questão das referências tem, nomeadamente no caso de uma tradução, que ser resolvida através de notas. Em alguns casos, não pode ser de outra forma. Não podemos encontrar um equivalente do Infante D. Henrique na Roménia, não é? Na tradução de Pessoa, a opção foi escrever notas com os aspetos que nos parecem que estão a ser frisados no poema. Digamos, pequenas notas que acompanham Mensagem, que, enfim, são notas históricas absolutamente necessárias, e depois o público, tendo o texto e as notas, eventualmente pode chegar à figura, e sobretudo à complexidade da figura histórica.

Na Mensagem há um poema que é talvez o mais conhecido, o mais popular, que é Mar Português, ou Marea Portugheza em romeno. Esse apresenta-lhe uma dificuldade grande de tradução?
Não acho que Mar Português seja difícil de traduzir. A questão aí consta apenas em respeitar fielmente o esquema de Pessoa e encontrar a voz que sugere melhor, no outro idioma, todo aquele sofrimento interior que é necessário que seja pago, digamos, para que se chegue depois às grandes Descobertas. E acho que isto resultou no meu caso, mas também no caso de outras pessoas que também fizeram versões do Mar Português bastante boas.

Sei que não é a sua primeira tradução de um autor português. Quem é que já traduziu para romeno?
Traduzi numa antologia mais complexa poetas portugueses desde o século XII até Pessoa. Quer dizer, no fundo, publiquei uma antologia com toda a evolução da poesia portuguesa desde a Idade Média, das Cantigas de Amigo, e de Amor, até Fernando Pessoa, inclusive. E inclui sonetos de Camões. Era obrigatório, claro. 

A antologia acaba em Pessoa? Não incluiu poetas mais recentes?
O último autor na antologia é Fernando Pessoa, porque depois houve uma outra antologia de poesia contemporânea, portanto, que começava mais ou menos nos anos 1940 ou 1950 e chegava até os nossos dias. Esta antologia foi elaborada por quatro pessoas, onde me incluo. Mas, infelizmente, não foi publicada.

Não chegou a ser publicada?
Não chegou a ser publicada, por motivos ligados à política. Duas das pessoas que fizeram parte, a coordenadora e mais uma colega, abandonaram a Roménia. 

Foi ainda no tempo do regime comunista de Nicolae Ceausescu? 
Foi ainda, sim.

As relações entre Portugal e a Roménia são antigas, mas tiveram um grande desenvolvimento a seguir à Revolução de 1974 em Portugal, porque com a democracia foi possível estabelecer relações com os países comunistas. Nessa Roménia em que o senhor cresceu, havia interesse por Portugal?
Provavelmente havia interesse, mas era uma espécie de curiosidade sobre algo que não se podia imaginar, porque não havia informação nenhuma. Um bloqueio total. Uma curiosidade que existia na alma de cada pessoa, mas sem se poder satisfazê-la. 

Por Portugal até ao 25 de Abril ser visto como um país fascista?
Sim, por ter uma ditadura dita fascista. E nós tínhamos, lembro-me perfeitamente, apenas meia página no Manual de Geografia sobre Portugal, uma breve descrição, e com uma fotografia de Lisboa da dimensão de um selo. Mais nada. Não podíamos visualizar nada do país, porque não havia imagens.

Mesajul
Fernando Pessoa
(tradução de Dan Caragea)
Editura Leviathan
224 páginas

Estudavam os Descobrimentos?
Nas aulas de História, sim, davam-se os Descobrimentos. E também demos, na Literatura Universal, no 12.º ano, Camões. Eram os conhecimentos que eu tinha na altura de Portugal. A minha mãe falava-me do vinho Madeira, que apreciava, mas que afinal era vinho do Porto, que tinha conhecido antes do regime comunista. Naturalmente, ninguém sabia como era, não podíamos saber. Era só um mito. Falava um pouco das sardinhas portuguesas, que também já não existiam à venda. Também não tínhamos ideia. Eu era um grande fã do Benfica e do Eusébio, isso sim. Desde miúdo. Jogávamos futebol, um futebol de mesa, com os amigos. Eu jogava sempre com o Benfica, não sei porquê.

Então o Benfica é a sua grande porta de entrada para Portugal?
Sim, não sei porquê. Bem, até sei. Foi por causa do campeonato mundial de futebol de 1966 e dos êxitos do Benfica nas taças europeias. Das vitórias do Benfica sabíamos. E depois, também tenho que dizer aqui, com toda a sinceridade, que eu tinha uma secreta paixão pela ideia de Portugal ser um país imperial. Portanto, sem ter motivos, admirava Portugal porque ter um império, para um jovem, era algo fabuloso, num tempo em que já não existiam grandes impérios.

Visitou Portugal pela primeira vez já depois da Revolução. Em que ano?
Foi em 1977. E quando cheguei aqui a primeira vez, a Lisboa, estava à espera de haver uma metrópole, uma capital imperial como Viena. E afinal vi uma cidade bem simpática, mas sem aquelas construções fabulosas e até me perguntava “mas afinal estes portugueses não roubaram grande coisa, não é”? 

Veio fazer o seu primeiro curso de português? 
Sim, sim, sim. Julho e agosto. E com os meus amigos cá, tinha discussões durante a noite, acerca do comunismo. Eles eram comunistas, cantavam a Internacional e a Bandiera Rossa e mais não sei o quê. Eu sempre dizia, “mas vocês não sabem o que estão a fazer, não sabem onde se vão meter. Vocês são loucos, etc, etc.” Mas felizmente Portugal não se tornou comunista.

Nessa altura estudava já português na universidade em Bucareste?
Sim, estudei de 1974 até 1978. Foram os anos em que eu me formei em Bucareste com dupla especialidade de romeno e português. Pertenço à primeira geração que estudou português na Roménia. 

Na apresentação da sua tradução de A Mensagem esteve presente José Bettencourt Gonçalves, que foi seu professor em Bucareste. Foi o primeiro português com quem contactou?
Bem, tinha sido um pouco antes com o leitor, que esteve lá só um mês e pouco, mas foi quem abriu praticamente o leitorado. Depois, no inverno, foi-se embora. Carlos Lélis, que era da Madeira. Depois veio José Bettencourt Gonçalves que ficou entre nós até 1980. E foi com ele que tirámos o curso. Depois acabei por ser colega dele. Imediatamente depois da minha formação, como havia falta de professores, fui assistente desde 1978 até 1990.

E como é que se dá a sua decisão final de se fixar em Portugal? É algo que se torna possível pelo fim do regime comunista romeno em 1989?
 A questão de me fixar foi uma coisa de que não me apercebi. Porque eu não tinha nenhuma intenção de ficar nalgum sítio. Não emigrei, digamos. Pelo menos, na minha cabeça. Eu estava aqui com uma bolsa do Instituto Camões a preparar o doutoramento. E que se prolongou por três anos. Por 1991, 1992 e 1993. Em que comecei a fazer uma série de trabalhos e projetos aqui. E fiz uma série de descobertas na área da linguística computacional. Estava na moda, era o início. Portanto, isso  interessava muito. As bases de dados lexicais, a forma como o português podia funcionar em motores de busca, etc. E, portanto, isto prolongou-se. E prolongou-se quase sem dar por isso. Depois vieram outras ofertas e adiei, adiei, adiei. E a partir do momento em que eu me dei conta que as minhas filhas, que nasceram cá, já estavam perfeitamente integradas, aí eu entendi, quando eu senti as raízes que elas tinham, eu entendi que eu devia abdicar de regressar.

A sua mulher é romena, mas conheceu-a em Portugal.
Conheci-a em Portugal em 1991. Eu estava cá com uma bolsa do Instituto Camões. Naquela altura, em Lisboa, acho que não havia mais de 50 romenos, éramos poucos e era habitual visitarmos a Embaixada. Conheci o embaixador e a sua família. Ele tinha duas filhas. Também era já amigo da nossa adida cultural dessa época. Era o tempo da primeira Embaixada livre, digamos,  e todos eram muito simpáticos. Naquela altura, evidentemente, havia a necessidade de comunicar, de conhecer, havia um intercâmbio extraordinário de ideias. Portanto, eu tornei-me um visitante habitual da embaixada e, pouco a pouco, aproximei-me em termos sentimentais de uma das filhas, a Anne Marie.

Praticamente não viveu na Roménia pós-Ceausescu?
Só alguns meses. Fiquei desapontado. O motivo, aliás, para procurar uma bolsa foi para respirar um pouco, porque eu me tinha metido naquela época no jornalismo político. Estava a ferver contra o comunismo e contra os comunistas. Porque, no fundo, quem continuou a governar nos primeiros anos foram os ex-comunistas. Apesar daquela violência da execução de Ceausescu. Nunca concordei, mesmo que odiasse o regime comunista. Não achei digno de um país que queria ser democrático. Foi praticamente uma execução sumária. 

Hoje Portugal e Roménia estão juntos na União Europeia. Há 2000 anos os dois países integravam o Império Romano e um dos legados é que muitas vezes fala-se dos romenos como sendo os latinos do leste e os portugueses os latinos do ocidente. As línguas têm pontos de contacto. Há até palavras iguais. Mas a mentalidade dos romenos e dos portugueses têm semelhanças apesar da distância?
Acho que sim. Nós, os romenos, temos alguma proximidade maior com os povos do sul. Começando com a Itália. Com a Espanha também e com Portugal.

Mais do que a França? Mas a França é a referência cultural para a Roménia.
Sim, a França é uma referência, mas é vista sempre como uma entidade mais racional, mais fria, mais crítica, enquanto com Itália, Espanha e Portugal é o sentimento que domina, as emoções dominam.

Se eu tivesse que lhe pedir a sugestão de um grande nome da literatura romena, pode ser um romancista ou um poeta, alguém com um peso que se pudesse comparar a Pessoa, quem é que sugeriria que se lesse?
Acho que em Portugal um nome que podia ter uma hipótese de ser traduzido e até bem entendido pelos portugueses, seria Lucian Blaga.

Blaga foi cá diplomata nos anos 1930, não é?
Foi. Tem no Estoril uma estátua, etc, etc.. Mas deviam também conhecer a sua obra filosófica.

Que não está traduzida? 
Não está traduzida. É uma obra fundamental para o conhecimento do século XX. Pelo menos uma síntese seria interessante acompanhar uma boa tradução de Blaga, que existe em português, mas podia fazer-se até muito mais.

Portanto, Blaga está traduzido em português, mas não essa obra filosófica?
Está apenas a poesia e foi traduzida e saiu numa editora do norte sem a divulgação necessária, provavelmente, acho eu. Seria desejável maior divulgação. É um pouco complicado. Nós temos que saber que para impor um poeta, um escritor, é preciso muita política cultural.

A tradução para romeno de Mensagem, uma das obras mais emblemáticas de Fernando Pessoa, foi lançada em Lisboa no Instituto Cultural Romeno e depois na embaixada da Roménia. Na foto, tirada durante a cerimónia na embaixada, estão o secretário executivo da CPLP, Zacarias da Costa, o tradutor Dan Caragea, o Encarregado de Negócios Mircea Iliescu e o professor José Bettencourt Gonçalves.

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