As formas da água

Chega com algum atraso este Mulher Oceano, estreia na realização de Djin Sganzerla, drama ensaístico sobre um processo de escrita no feminino. Nos atores secundários estão nomes como Lucélia Santos e Stênio Garcia. Um filme marcado a bold pelo fascínio pela cultura nipónica.

O que acontece quando uma cineasta estreante brasileira quer "fazer à Hong Sang-soo"? Não acontece cópia descarada, decididamente. Primeiro porque essa cineasta é madura, filha de cineastas como Rogério Sganzerla e Helena Ignez e atriz de peso, segundo porque a apropriação ao estilo do cineasta coreano não é decalque, é mais figura de estilo. Djin Sganzerla, nesta longa de estreia, monta um sistema de reconhecimento de formas e nunca de fórmulas. Tanto se deixa ir pelos encantos das ondas do oceano como pelo mundanismo de uma bebedeira de sake. Cinema de pequenas aparições, de subtis achados. Um dois-em-um no que toca a retratos de mulher mas é sobretudo alguém com um espírito de curiosidade que mexe com algo, um tal "je ne sais quois" que fica bem com as duas cidades propostas: o Rio de Janeiro e Tóquio - do Brasil ao Japão passa um desejo de uma iluminação literária: a protagonista é escritora.

Num jogo de invenções de cinema e das suas possibilidades de ficção, o argumento leva-nos até à neurose de Hannah, escritora brasileira em Tóquio a tentar escrever um romance numa altura em que o seu casamento está ameaçado. Ao mesmo tempo, uma mulher com o mesmo rosto e nome idêntico, Ana, tem um dilema: abandonar o Rio e ir para Campinas trabalhar para um grande empresa ou continuar na sua cidade e apostar na sua paixão, a natação de travessia oceânica. De forma orgânica, Hannah parece inventar as ações de Ana, sempre com uma obsessão: o mar. Uma obsessão que a leva também a conhecer as Ama, a tal comunidade de pescadoras que mergulham em apneia para apanhar o mais delicioso marisco do fundo do mar. Entre estas duas mulheres geograficamente tão longe parece haver um elo que se confunde com sortilégio do destino.

Djin não filma este mapa de identidades de forma estritamente narrativa, antes pelo contrário: parece deixar-se perder com as paisagens singulares do Rio e de Tóquio e insufla tudo com uma respiração de radical senso de intimidade feminina, sem compromissos, sem paninhos quentes. É esse lado de objeto livre que dá mais luz a um filme que por vezes toma caminhos mais óbvios entre o zigue-zague entre as cidades, algumas das vezes a dar sinais que na montagem tenha faltado um rigor que disfarçasse mais um pouco essa vinheta do aleatório...

No fundo, bem no fundo, a cineasta-atriz (ela interpreta Ana e Hannah) dialectiza essa projeção de duplicidade - eu sou a outra. Uma projeção eminentemente cinematográfica, alavancada com uma câmara solta, livre e leve. Um filme que nos deixa perto de uma sensação de perdição. Mulher Oceano é para ficarmos tão perdidos como perto de nós mesmos.

Para os portugueses, aqueles que tiverem visto Ama-San, de Cláudia Varejão, poderão achar o episódio meio documental das mulheres mergulhadoras algo decorativo. A câmara de Varejão mergulhou (fundo, esta nunca mergulha) primeiro e cortou o efeito novidade. Mas estas doces mulheres-sereias merecem todos os filmes do mundo...

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