A primeira imagem de Jasmine Xiao Li teve de Portugal ficou-lhe gravada na memória até agora: “o céu azul, a belíssima natureza, a paisagem urbana única”, enumera, passados mais de dez anos sobre esse dia. Também a longa história do nosso país fascinou esta chinesa, que se formou como professora, trabalhou numa empresas de bordados em seda e também como relações públicas. Foi logo naquele Natal de 2014 que Jasmine e o marido, Taokun Tu, decidiram candidatar-se ao Visto Gold e passar a viver parte do ano em Cascais. Agora, a soprano amadora sonha trazer uma ópera de Pequim até nós, para dar a conhecer aos portugueses uma forma de arte que mostra muito as particularidades da civilização chinesa.É numa vivenda num dos condomínios privados desta vila costeira, que ao longo da sua história soube atrair vários membros da realeza europeia, que Jasmine recebe o DN. Conhecemo-nos uns tempos antes, num almoço com Yanbei, pintor chinês que também por volta de 2014 se instalou em Portugal, mas no Estoril. Quem também estava presente era Man Lin, chegada a Portugal aos 8 anos e a primeira advogada de origem da China continental inscrita na Ordem dos Advogados portuguesa. Hoje Lin trouxe a filha mais velha, Natacha, para ajudar na comunicação, apesar de Jasmine falar um inglês bastante razoável. A nossa anfitriã chama todos para um chá tradicional chinês. E é em torno de umas chávenas desse líquido aromático que Jasmine vai contando a sua história. Nascida em Pequim, filha de um oficial do exército e de uma funcionária pública local, formou-se como professora, mas foi o trabalho como relações públicas, em que tinha de trabalhar numa parceria estreita com os media, que garante lhe ter aberto os horizontes. Quanto a Portugal, tendo antes vivido noutros países europeus - como Roménia, República Checa ou Hungria -, Jasmine garante que não era desconhecido para ela. “Para nós, Portugal até era bastante familiar por causa de Macau [território sob administração portuguesa entre 1557 e 1999, quando foi devolvido à China]”, explica, antes de acrescentar que o marido, jornalista e agora editor, até fez um estudo a comparar a China e Portugal no século XVI, aquele em que os dois povos se descobriram. Povo pacíficoQuanto aos portugueses, a impressão de Jasmine não mudou muito desde o primeiro dia em que chegou. “Adoro o povo português do fundo do meu coração”, afirma, garantindo que “vocês são tão pacíficos. Não têm qualquer ansiedade no rosto e tratam toda a gente com calor e muita simpatia”. E vai mesmo mais longe. Comparando com o seu país natal, Jasmine garante que na China as pessoas são “mais individualistas”. E dá um exemplo: quando vai às compras, garante que por vezes acontece sentir que há a tentação de aumentarem os preços quando percebem que tem algumas posses. E afirma que em Portugal nunca sentiu isso.Destacando a preocupação dos portugueses em obedecer a regras - algo que pode não parecer tão óbvio assim a quem sempre viveu por cá - Jasmine também se recorda do dia em que caiu na rua e quatro ou cinco pessoas correram a ajudá-la a levantar-se. “Aqui em Portugal, pessoas que não se conhecem de lado nenhum tentam ajudar os outros por simpatia. Isso é mesmo simpatia. Enquanto que na China, se calhar, há mais desconfiança”, procura explicar, com a ajuda de Natacha, que teve aqui mais uma oportunidade para praticar o seu chinês. Nas paredes da enorme sala onde vamos conversando, com umas portas envidraçadas que dão para a piscina do condomínio, destacam-se vários quadros coloridos, que Jasmine explica serem obra da filha. Recém formada em Artes Visuais, com um mestrado tirado em Nova Iorque, esta regressou há pouco à China, mas já teve oportunidade de conhecer o nosso país , numa viagem de norte a sul com os pais. E Jasmine não esconde o orgulho de mãe quando explica que a filha acaba de escrever um livro, com ilustrações feitas pela própria jovem artista. Um amor herdado da mãe.“O meu amor pela ópera foi sobretudo influência da minha mãe”, garante Jasmine, que logo à chegada nos fez ouvir alguns excertos de algumas destas obras no seu telemóvel. E aproveita para explicar que “Jasmine”, este seu nome ocidental, tem mesmo a ver com a flor homónima, que na China representa amor, boa sorte e a Lua. Entretanto, vai contando que quando era pequena, costumava ouvir a mãe a cantarolar sempre que passava uma ópera de Pequim na televisão. Grande apreciadora desta forma de teatro chinês tradicional que combina música, performance vocal, mímica, dança e acrobacia, a mãe de Jasmine nunca perdia a oportunidade de assistir diante do pequeno ecrã. E a menina acabou por também de apaixonar pela mais popular das formas de ópera chinesas, surgida no século XVIII, em plena dinastia Qing, no reinado do imperador Qianlong, mas que só no século XIX alcançou a maturidade. “Na verdade, a minha mãe podia ter sido atriz de ópera, mas o meu avô não o permitiu”, explica Jasmine. Os tempos eram outros e o avô de Jasmine, conta a própria, acreditava que as raparigas que atuavam em cima de um palco iriam acabar por ser perseguidas por “maus rapazes”.A paixão de Jasmine pela ópera de Pequim é também acompanhada pelo seu interesse pelos clássicos da literatura chinesa. E deixa dois exemplos: O Livro dos Cânticos [ou Clássico da Poesia], “que tem 2100 anos e era a forma que as pessoas daquela época tinham de expressar os sentimentos através de canções”, e os poemas Yuefu da dinastia Han, uma antologia com mais de 2200 anos que contém poemas famosos, entre eles a história de Hua Mulan, a jovem que se disfarça de homem para se juntar ao exército e que a Disney adaptou, primeiro em animação e mais recentemente em live action. Da paixão pela ópera de Pequim - reconhecida como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO desde 2010 - à prática do canto foi um passo que Jasmine demorou algum tempo a dar. E hoje a soprano amadora admite que encontrou muitos obstáculos no caminho da aprendizagem. “Tive sorte porque encontrei excelentes professores e muitos músicos e atores muito bons para me acompanharem”, afirma Jasmine, que explica como gosta de “mergulhar no papel e esquecer tudo o resto. “É uma experiência magnífica”, garante. Questionada sobre para quando podemos assistir a uma atuação sua em solo português, Jasmine admite que gostaria muito, mas que a logística que implica levar a palco uma ópera de Pequim é um desafio enorme. E trazer tantos atores e músicos da China exigiria um grande esforço financeiro. Com um repertório que inclui mais de 1 400 obras, baseadas na história da China, no seu folclore e, cada vez mais também, na vida contemporânea, a ópera de Pequim exige das cantoras um tom muito agudo, vai dizendo Jasmine, enquanto explica que os instrumentos mais comuns nesta forma de arte são o jinghu, erhu, yueqin e também as percussões. “O percussionista é o responsável pelo ritmo e é quem conduz todo o conjunto”, conta.Num artigo em que admite que a lista de melhores óperas de Pequim é demasiado longa para enumerar, o China Daily destaca algumas, como Adeus, minha Concubina ou Rei Macaco.Um editor apaixonado pela literatura portuguesaDiscreto e silencioso a maior parte do tempo - muito também devido às dificuldades com o inglês - Taokun Tu entusiasma-se quando procuramos saber mais sobre as suas atividades como editor. Antigo jornalista, o marido de Jasmine é também escritor e apressa-se a ir buscar um livro cujo título pode ser traduzido, de forma bastante livre, por Uma boa psicologia só precisa de uma vez. Neste obra, junta o pensamentos de poetas chineses e ocidentais, como, por exemplo, Fernando Pessoa. A sua parte preferida da obra do poeta português é a que fala de viver no momento, não viver de acordo com a ciência, mas sim de acordo com as emoções.Interessado em psicologia e filosofia, Taokun Tu está empenhado em levar para a China mais autores portugueses e ajudar a divulgar a sua obra. Estamos a falar, claro, das obras de Fernando Pessoa, mas também de Camões, sobretudo Os Lusíadas, que Taokun Tu logo diz ter lido na tradução em chinês. E também de filósofos portugueses que sejam menos conhecidos dos leitores chineses. Apaixonados pelas artes tal como se apaixonaram por Portugal, Jasmine e o marido pretendem aproveitar os meses que passam no nosso país para aproximar as culturas da sua terra natal e da sua terra de acolhimento.