O mínimo que se pode dizer de um filme como Dupla Obsessão é que resulta de uma série de transfigurações sobre a tradição do chamado “thriller” psicológico. Na sua origem está o romance Derrière la Haine (2012), da escritora belga Barbara Abel. Em 2020, a respectiva adaptação cinematográfica, Duelles, realizada por Olivier Masset-Depasse, foi distinguida nos prémios Magritte (da produção belga), ganhando em nove categorias, incluindo a de melhor filme do ano. Agora, Dupla Obsessão, com produção americana, apresenta-se como uma nova adaptação (do livro e do filme), correspondendo à estreia na realização de Benoît Delhomme, director de fotografia francês..Eis um filme genuinamente fora de moda — o que lhe confere um peculiar capital de simpatia. Não é todos os dias que encontramos um drama centrado em duas personagens femininas, tratadas não como símbolos obrigatórios de uma qualquer causa existencial ou política, existindo “apenas” como emanações de um modo de vida (neste caso, made in USA, na classe média de 1960) cuja estabilidade emocional vai ser radicalmente posta à prova. Passam por aqui algumas lições do mestre do “suspense”, Alfred Hitchcock, em particular na encenação da dicotomia inocência/culpa, mesmo se Delhomme se fica pela dimensão de um discípulo aplicado..Evitando revelar mais do que está no trailer do filme, as peripécias de Dupla Obsessão evoluem a partir da relação cúmplice de Alice e Céline, vizinhas, grandes amigas e exemplares mães de família. Quando o filho de Céline morre na sequência de um acidente caseiro, ela parece empenhar-se numa estranha aproximação do filho de Alice, a ponto de esta julgar que se trata de um estratagema para que o seu filho tenha um fim semelhante… Se quisermos ficar pela “psicologia” mais rudimentar, diremos que assistimos a uma fábula cruel sobre o instinto materno — o que, bem entendido, está expresso no título original: Mothers’ Instinct..Jessica Chastain e Anne Hathaway interpretam Alice e Céline, respectivamente, e escusado será dizer que o filme lhes deve muito da sua eficácia. Hiper-talentosas (ambas “oscarizadas”), são como os grandes intérpretes musicais que sabem valorizar qualquer performance, mesmo com uma partitura apenas exemplarmente académica. Aliás, o seu empenhamento neste projecto fica confirmado pelo facto de surgirem na ficha técnica de Dupla Obsessão também como produtoras. Podemos até supor que tal condição envolve uma forma de “protesto” contra o facto de filmes com estas características corresponderem a um conceito clássico de produção “média” que, ao longo das últimas décadas, os grandes estúdios de Hollywood foram desvalorizando..Benoît Delhomme sabe gerir tudo isso sem recorrer a sublinhados gratuitos para afirmar a sua nova condição “autoral”. Decidiu manter a responsabilidade pelas imagens (o que nem sempre acontece quando um director de fotografia começa a realizar), fazendo-o sem ostentação, ao serviço dos ambientes de uma história de inusitada inquietação — entre a naturalidade dos instintos e a dimensão maligna capaz de os contaminar.