Vozes jovens, apesar de antigas, máscaras rituais, danças circulares e uma cabra que morreu e ressuscitou em palco. A cena, que à primeira vista poderia parecer enigmática, fez parte da apresentação da banda folk ucraniana Litá no Festival Toloka, um encontro comunitário organizado para celebrar o Natal ucraniano em Lisboa, que aconteceu no dia 21 de dezembro nos Jardins do Bombarda. Mais do que um concerto - e um baile -, aquele momento foi a atualização viva de um património ritual que cruza paganismo, cristianismo, memória coletiva e experiência contemporânea em diáspora de pessoas que estão longe dum país assolado pela guerra. O DN conversou com os músicos Denys Stetsenko e Sofiia Tsyvinska, que abriram as portas a práticas ancestrais que estão mais vivas do que nunca.O momento central da atuação foi um “teatrinho”, como Denys Stetsenko o descreveu, onde a personagem principal era uma cabra, ou koza, em ucraniano, que evocou uma tradição natalícia enraizada nas regiões central e oriental da Ucrânia. No palco, o enredo desenrolou-se com um velho a tentar vender uma cabra ao público, elogiando-a, enquanto outros apontavam defeitos, numa troca verbal marcada pela sátira. Subitamente, a cabra adoece e morre. Seguem-se tentativas de a reanimar, com comida, apelos, a chamada de um médico incompetente - interpretado por uma criança - e até a intervenção de um padre, numa paródia que aparenta ser mais antiga do que o Natal. Nada resulta. Só a música, quando começa a tocar, devolve vida à cabra, que se levanta e dança. O ritual está consumado.“Por isso, tal como no inverno toda a natureza morre, e como na primavera tudo renasce, ela representa a sua morte e a sua ressurreição. Representa isso para que haja todas as dádivas da natureza que venham até este sítio”, explica Sofiia Tsyvinska.O ritual era tradicionalmente levado de casa em casa, como uma espécie de Janeiras ucranianas, com cânticos e teatro em troca de doces ou dinheiro, oferendas que simbolizam generosidade e garantem boa sorte para o ano seguinte. “E o objetivo é trazer prosperidade para esta casa, e também tem momentos de humor. E as pessoas com generosidade oferecem também dinheiro ou guloseimas”, lembra Denys Stetsenko, que mora em Portugal há quase 31 anos.Sofiia Tsyvinska, cantora e investigadora em música tradicional ucraniana, para além de tocar sopilka (uma flauta ucraniana) e violoncelo em Litá, aprofunda o sentido simbólico da encenação, explicando que “todas as personagens, incluindo a cabra, representam as almas dos antepassados”. Por isso, historicamente, quem fazia o teatro não podia entrar nas casas, porque eram vistos como representantes do outro mundo. A morte da cabra é necessária, diz, porque encena a morte da natureza e a sua inevitável renovação. “As pessoas tinham de dar alguma coisa, não podiam mandar-nos embora de mãos vazias. Era uma forma de se livrarem dos espíritos, fazendo algo de bom”, esclarece.A ligação ao Natal cristão surge mais tarde, explica Sofiia, depois de questionada sobre o que é que esta peça - com personagens e enredos distantes das tradições portuguesas - tem a ver com o ritual cristão. As canções de Natal ucranianas, cantadas de porta em porta, conhecidas como koliadky, já são associadas ao nascimento de Cristo. Por outro lado, as shchedrivky, ligadas à passagem de ano, estão ligadas ao solstício de inverno e ao ciclo agrícola. O exemplo mais conhecido é Shchedryk, popularizado no mundo ocidental como Carol of the Bells (Canto dos Sinos, numa tradução livre do inglês), que fala afinal de uma andorinha anunciando a primavera. Esta música chega a ter algum destaque no filme Sozinho em Casa, que já se tornou uma presença constante no Natal..Esta apresentação no Festival Toloka foi o culminar de um mês de ensaios abertos à comunidade, “para quem quisesse participar no teatro”, conta Denys, evocando os ensaios que decorreram “durante um mês”.“Este festival é uma maneira de unir os ucranianos em Portugal e sentirmos o nosso Natal, com as nossas tradições”, explica. O Toloka, que combina mercado, música, gastronomia e rituais, assume-se como um espaço de encontro entre memória e presente, num contexto marcado pela guerra que continua a afetar a Ucrânia.A própria história dos Litá está ligada a este contexto, que ganhou dimensão em fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Foi nessa altura que a banda se formou. Danylo Klyutsko, então com 16 anos, chegou a Portugal com a mãe, a namorada e duas amigas, numa tentativa de se afastar do ambiente de guerra em Kyiv. Tocavam na rua para juntar algum dinheiro quando Denys Stetsenko, violinista e professor de violino, os encontrou quase por acaso..“Em Portugal não havia ninguém que estudasse mesmo folclore ucraniano da maneira como elas estudam”, recorda, admitindo que, apesar de conhecer aquelas práticas, sendo ele próprio ucraniano e músico experiente, ficou “maravilhado” com o que ouviu. Ivanna Korzh, Sofiia Tsyvinska e Kateryna Sidelnykova estavam ligadas à investigação etnográfica, às recolhas de campo junto de pessoas nas aldeias. Danylo Klyutsko, além de músico, também tem um passado ligado à patinagem artística, que é evidente quando ensina as danças tradicionais em Litá. Para além disto, Danyo também “construiu os seus instrumentos”, nomeadamente . “a kobza e a bandura”, dois instrumentos de cordas ucranianos com caixa de ressonância em forma de pera, sendo que o primeiro tem cordas pressionadas e o segundo tem cordas que são tocadas livremente, como acontece com as harpas.No início, a banda estava muito apoiada na polifonia das vozes, mas Denys consiedrou que deveria haver uma parte instrumental, apesar de haver uma barreira a superar: não tinham instrumentos..“Perguntei que instrumentos eles podiam tocar. Ivanna estava a começar a tocar violino, a Sofiia tocava flautas, mas nós precisávamos de alguém que tocasse violoncelo, por exemplo. Então arranjámos um violoncelo, tivemos um patrocínio de uma luthier (construtora de instrumentos musicais) que tinha um violoncelo que podia ceder. Depois, no Tejo Bar, o João Luz também ofereceu o violino velho dele”, relata Denys Stetsenko, num tom que sugere que assistiu a um momento histórico.A partir daí, o projeto ganhou forma, integraram-se redes de dança como os festivais Andanças, Tradidanças ou o Desdobra-te, e encontraram apoio institucional, no que diz respeito a habitação, que se resume a um quarto, através do programa Residências Refúgio, no Largo Residências, em Lisboa. O grupo cresceu, mudou, perdeu e ganhou elementos. Hoje, são seis: Denys Stetsenko, na voz e violino, Danylo Klyutsko, na voz, kobza, bandura, lira (sanfona) e bubon (pandeiro), Ivanna Korzh, na voz, sopilka e violino, Sofiia Tsyvinska, na voz, sopilka e violoncelo, Margarita Kumpan, na voz e no violino, e Margaryta Kulichova, na voz, violoncelo e na parte técnica que envolve o som, sendo também ativa no cinema documental.Litá é mais do que um nome: vem da expressão mnohaya lita, ou, literalmente, muitos verões, uma forma de desejar longevidade. Evoca também o verbo litaty, voar. A ideia de movimento, de passagem, de ciclos, atravessa todo o trabalho do grupo, incluindo o primeiro disco, More (Mar), uma colagem de canções recolhidas, arranjos próprios, danças e colaborações, gravadas entre Portugal e a Ucrânia. A capa, com a figura feminina à espera do amado que foi para a guerra, sintetiza uma tensão antiga e atual, que também é baseada em letras com 200 anos que continuam a falar do presente.Foi assim o Festival Toloka, entre risos provocados pela estranheza ritual da morte da cabra, onde tudo foi um gesto de continuidade cultural em contexto de deslocação forçada. “Em qualquer festa tem de haver danças”, diz Denys. Mas, naquele palco, dançar foi também um ato de resistência e de afirmação de uma identidade: a ucraniana..Uma viagem ao simbolismo do Natal ucraniano, com todos os antepassados presentes e muita música