Saia azul e camisa branca, cabelo curto impecavelmente penteado, Danuta Walesa sobe ao palco para receber o Prémio Nobel atribuído ao marido, Lech. Mas desta vez, a mulher do eletricista que, à frente do sindicato Solidariedade se tornou o símbolo do movimento que em 1989 poria fim ao regime comunista na Polónia, abrindo caminho a uma onda democrática que alastraria a todo o Leste da Europa, não se limita a ler as palavras do marido. Desta vez, Danuta diz o que lhe vai na alma, conta os desafios que a mulher por detrás do homem que ficou para a História enfrentou e como esta também foi a sua revolução. A dela e das outras mulheres - as que ficaram em casa a cuidar dos filhos, as que perderam a sanidade mental ao ver os maridos atrás das grades ou as que se juntaram às greves e perderam a saúde e a vida.Esta é uma das cenas mais fortes de 1989, um musical inspirado em Hamilton, de Lin-Manuel Miranda, e que num rap acelerado, misturado com hip-hop e pop, nos conta as aventuras e desventuras de três casais - os Walesa, Danuta e Lech, os Kuron, Grazyna e Jacez, e os Frasyniuk, Krystyna e Wladyslaw. Encenada por Katarzyna Szyngiera e com a colaboração de Andrzej Mikosz “Webber”, um dos melhores produtores de rap da Polónia, 1989 estreou em 2022. Coprodução do Teatro Juliusz Słowacki, em Cracóvia, e do Shakespeare Theatre, em Gdansk, volta agora a estar em cena neste último entre 11 e 15 de novembro. Para quem quiser aproveitar uma ida a Gdansk - a cidade portuária que ficou famosa pelas greves lideradas por Walesa - para ver 1989, recomendo uma passagem primeiro pelo Centro Europeu Solidarnosc, situado por trás do portão azul do estaleiro onde ainda hoje se podem ver um retrato do papa João Paulo II, o polaco Karol Wojtila, e um de Nossa Senhora, símbolo da proximidade entre os manifestantes e a Igreja. Ali ficará a saber mais sobre os acontecimentos que levaram à queda do regime comunista na Polónia e sobre os protagonistas desta revolução. .Uma espécie de preparação importante antes de se sentar no Shakespeare Theatre para mais de duas horas e meia de um musical que já terá chamado a atenção da própria Broadway e só não terá chegado aos palcos nova-iorquinos por ser totalmente cantado em polaco - e talvez também por a complexidade do enredo poder afugentar quem não estiver familiarizado com a História da Polónia.Se quiser saber se é o único estrangeiro na sala, basta olhar em volta e ver se mais alguém está a olhar para cima, para ler as legendas em inglês por cima do palco. E se é verdade que não perceber as letras no original torna mais difícil acompanhar o que se passa nesse mesmo palco, rapidamente o espectador mergulha no ritmo desenfreado das músicas e na coreografia bem oleada..Pelo meio há tempo para se divertir com a seriedade de Lechu (um Walesa interpretado por Rafal Szumer) e admirar a força tranquila de Danusia (a Danuta de Karolina Kazo). Para acompanharmos Wladek (Mateusz Bieryt veste a pele de Wladysław Frasyniuk) e vê-lo trocar a sua vida abastada por uma cela de prisão, enquanto a mulher, Krysia (uma Krystyna Frasyniuk a que Katarzyna Zawislak-Dolny dá vida), vai perdendo a sanidade mental. Ou para vermos como os problemas de saúde (viria a morrer de uma fibrose pulmonar) levaram a melhor sobre o ativismo de Gaja (Grazyna Kuron, interpretada por Magdalena Osinska) e deixaram o seu marido Jacek (Marcin Czarnik, no palco) destroçado, sendo informado da deterioração do seu estado através das cartas de um amigo que recebia na prisão.É a história destes três casais, portanto, a que vamos seguindo, muito também do ponto de vista das mulheres - algo menos comum quando se estuda este período da História polaca.Além dos Walesa, dos Frasyniuk e dos Kuron, ao longo do musical, pelo palco passam várias figuras que marcaram aquela época da História da Polónia - desde o general Wojciech Jaruzelski, o último líder da Polónia comunista, uma figura inspirada no rei Jorge III de Hamilton (o musical que conta a história daquele pai fundador dos EUA) que nos surge sempre de óculos escuros e cigarro na mão, ou o futuro presidente Aleksandar Kwasniewski. Também Anna Walentynowicz, a operadora de grua cujo despedimento do Estaleiro de Gdansk esteve na origem da greve de 1980, é uma das personagens..A par das cenas domésticas, sobretudo dos Walesa, em que podemos ficar com uma ideia do que era uma casa da classe média polaca nos finais dos anos 1980, e das cenas na prisão, não faltam os protestos que levaram à queda do regime e também os Acordos da Mesa Redonda. De 6 de fevereiro a 5 de abril de 1989, o governo comunista iniciou conversações com o sindicato banido Solidarnosc e outros grupos de oposição, numa tentativa de acalmar a crescente agitação social. As conversações alteraram radicalmente a forma do governo e da sociedade polacos. Os acontecimentos na Polónia precipitaram e deram impulso à queda de todo o bloco comunista europeu.Até agora, não há notícia de que Lech Walesa - que aos 81 anos mantém um gabinete no Centro Europeu Solidarnosc, onde é visto com frequência - tenha ido ver 1989. Mas a mulher, Danuta, assistiu a uma das representações. E até há um vídeo dela no final a dar um abraço emocionado a Karolina Kazo, a Danusia da ficção.Em Gdansk .“É impossível compreender a motivação dos ucranianos que hoje resistem à Rússia sem compreender o passado”.O feitiço da língua portuguesa para conhecer a nossa tragédia africana