João de Melo está a comemorar 50 anos de vida literária.
João de Melo está a comemorar 50 anos de vida literária.DR

O feitiço da língua portuguesa para conhecer a nossa tragédia africana

Escritor João de Melo comemora 50 anos de vida literária. O momento perfeito para publicar um livro de contos em que recupera mentalidades de personagens e redesenha um país que mudou em muito.
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Há um facto a que João de Melo não escapa desde que escreveu e publicou o seu terceiro romance, Gente Feliz com Lágrimas: o de nele ficar enredado pela surpresa e magia da narrativa que entusiasmou os leitores, fez receber o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, entre outros (quatro), além de várias traduções, de uma adaptação ao teatro e a uma série de televisão. Um sucesso assim cola-se ao escritor e nunca falta em qualquer biografia literária. No entanto, João de Melo não se submete apenas ao romance de fôlego, como esse e outros que estão na sua bibliografia, é também um excelente autor de contos, um dos registos literários mais complexos devido ao modo como o leitor deve ser “manipulado” num breve percurso de princípio, meio e fim. Uma obra de duas dezenas de títulos que é o melhor exemplo de como o feitiço da língua portuguesa está na mão de alguns escritores ao permitirem conhecer as nossas tragédias.

A recolha de contos que agora publica intitula-se A Nuvem no Olhar e nela alinha oito contos reescritos dos dois primeiros livros deste género e dois textos inéditos. Pergunta-se a João de Melo se esta nova edição tem como objetivo assinalar os anos de vida literária que começaram com um outro livro de contos de 1975, o Histórias da Resistência. Sem o negar, não deixa de encontrar uma outra justificação: “À parte os dois inéditos, estes contos pertenciam a dois livros meus, Entre Pássaro e Anjo (1987) e Bem-Aventuranças (1992). Fiz questão de os resgatar por um processo que me é muito familiar: a reescrita. Na minha opinião, eles já se distinguiam dos restantes contos desses livros, e doía-me a ideia de os ver «perdidos» no esquecimento dos leitores. O cinquentenário literário pareceu-me um bom pretexto para os reescrever, dando-lhes a dimensão da minha escrita atual, mais experiente, talvez até definitiva.”

Para o escritor, o critério de seleção destes contos teve como intenção “dar ao leitor uma ideia de diversidade temática, e ao mesmo tempo captar nos contos selecionados o eco reminiscente deste tempo e dos anteriores: Açores, África ou várias Lisboas. Pretendo também fazer uma chamada à nova geração de leitores, de modo a dar-lhe a consciência do muito que não viveu ou não passou: o país proibido, o drama geracional da guerra colonial, e os contos que falam dessa libertação posterior. É por isso que são todos tão diversos entre si, alguns mais solenes, outros bem-humorados e que pelo riso castigam os costumes”.

As memórias são uma presença constante nestas 231 páginas. Tendo João de Melo entrado no mundo da literatura há meio século, aquela época tem-se esbatido ou nem quer recordar esse mundo literário de tão diferente que é do atual? Responde: “Cada um de nós, escritores, tem a sua forma de relação com a literatura, a própria e a alheia. Em 1975, possuía já uma relação madura com a criação literária. Fui, desde cedo, um grande leitor, e foi-se-me entranhando a ideia de transitar de leitura para a escrita. Mas comecei pela poesia, tinha uns 15 anos; e aos dezasseis escrevi um romance nunca publicado e que guardo no meu espólio como se fosse um pergaminho antigo. A transição da poesia e do romance para o conto deu-se naturalmente, mas tive sempre a consciência de que entrava nos domínios de um texto exigente, mesmo algo disciplinar. O caso é que a minha aventura de escrita se liga com a realidade e com a história social e política do país. Tive uma grande fortuna por ter vivido este tempo português e a minha geração herdou um país literário; não tem desculpa se não escrever sobre ele. Considero-me tão criativo quanto temático, e vice-versa.”

Ao referir que um dos propósitos dos oito contos foi o de estabelecer a edição definitiva dessas histórias, é preciso esclarecer se o escritor João de Melo nunca está satisfeito ou é a passagem do tempo a razão dessa reescrita? Responde primeiro com a exceção: “Esta é uma prática algo constante em mim: rever, reescrever, tornar mais maduros os textos, sejam eles contos ou romances.  Só o Gente Feliz com Lágrimas escapou até hoje ao remendeiro literário que sou. Em mim, essa é uma espécie de sina ou de cruz do calvário pois vou sempre à frente de tudo o que escrevi. Também uma dinâmica produtiva que me resgata para a minha própria atualidade. A História está cheia de escritores auto exigentes, não preciso sequer de os mencionar. Sou um deles, pronto.”

Para alguns escritores, muitos dos seus contos são resultado de romances frustrados. Também se dá o caso de alguns romances serem fruto de contos frustrados. Pertencerá João de Melo a alguma destas situações? Não hesita: “Não. Até porque não escrevo contos com a linguagem dos romances, e vice-versa. O conto é um texto literário exigente, mesmo quando simples e curto. Nada pode falhar no seu equilíbrio formal. O romance é um género de corda larga, podemos nele pastar mais à vontade, que o pastor e o polícia não estão lá para nos vigiar.”

Falando de romances, questiona-se qual será o que se segue mas a resposta é inesperada: “Desta vez, será um Diário: Novas fases da Lua» (2017-2024). Sairá no mês de setembro, há de porventura somar-se à comemoração dos meus 50 anos de vida literária. Faz parte, aliás, do Diário que me acompanha desde 1993, com alguns interregnos pelo meio. Procura responder à ideia de muitos, que advogam a tese da decadência dos intelectuais na Europa. Ela não existe. O silêncio social e os mecanismos de intervenção é que nos têm sido contrários. Não me submeti: observo o mundo de hoje, tenho ideias e ideologia, hei de encontrar sempre um modo de expressão interventiva sobre a ordem do tempo e do mundo.”  

A “novela” O Tríptico dos Barcos é um bom exemplo de como para as mais novas gerações da atual sociedade portuguesa a guerra colonial nada lhes diz. Será que o “nosso” Vietname passou à categoria de ficção é o que se pergunta ao escritor, que tem a guerra em África bem presente na sua obra: “A literatura não se serve à mesa. Nem na cama. Nem no confessionário. Também não se pretende moralizadora nem pedagógica. Fui professor durante largos anos, passei testemunho a várias gerações de alunos. À medida que foram descobrindo a minha condição de escritor, deram-me provas de me quererem também em duplo. Desconhecem a nossa tragédia africana, sim, mas muito mais a dimensão asiática do Vietname americano. A literatura, o cinema, o teatro e as outras artes não deixam que a memória prescreva. Digamos que essa é uma das essências da literatura; a outra é a da criação pelo imaginário do mundo e pela linguagem.”  

Lisboa é muitas vezes cenário destes contos. Será que as histórias encaixam bem nesta cidade ou existe outra razão: “Houve um tempo em que cheguei a pensar que estava em dívida literária para com Lisboa; que lhe devia um romance. Mas não há fundamento nisso. Fiz de Lisboa a cidade das partidas e dos regressos. O seu quotidiano está em todos os itinerários dos meus livros. Chamei-lhe mesmo «a cidade da vida», a ponto de me tornar tão lisboeta quanto açoriano. Paguei-lhe o meu tributo, tanto de cidadania como de criação pela escrita literária.”

Se pagou o tributo à capital e a todos os locais que vão desfilando pelos seus livros, terá João de Melo alguma vez sentido que gostava de escrever num outro registo ou tom? Para o autor é “difícil responder sem a ideia do autoelogio». Ou seja, diz: “Na verdade, comigo já se cumpriram todos os ciclos e geografias.  Fechei o maior de todos eles: não mais Açores da infância, nem Portugal do Salazarismo, nem Áfricas coloniais. Sobre tudo isso já falei e disse. Também não quis ser, estritamente, um regionalista insular: tive sempre a preocupação das travessias de tempo, espaço e condição. O meu único livro que «não sai» dos Açores chama-se O meu mundo não é deste reino, e é um dos meus títulos favoritos. De resto, fiz dos continentes ilhas imensamente grandes; e, destas, pequenos continentes marítimos, com o seu relativo universo de partidas e chegadas. A minha «inspiração» foi sempre mais mítica do que geográfica, porque pretendi ser de um tempo e de todos os tempos; e de um lugar para ser de todos os lugares e mundos. Não é pequena ambição, reconheço. Mas nada, ninguém nos pode valer no risco intencional e solitário da criação.”

Se esta recolha tem dois contos inéditos, não se pode deixar de questionar João de Melo sobre o que há mais de inédito na sua Arca. Confirma: “Há sempre. Muitos, experienciais, hipotéticos, mais intimistas do que temáticos. Terão o seu tempo. No entanto, vários destes contos são subsidiários de outras histórias, já escritas ou por escrever. Escrevi um romance sobre a guerra, Autópsia de um mar de ruínas, muito baseado na experiência terrível da minha aventura angolana. Mas nem isso obstou a que tivesse de escrever a novela que dá título ao A Nuvem no Olhar: o regresso de um navio cheio de tropas, onde cada um transporta o seu trauma, a sua memória de guerra, essa maldição que a mim me ficou para toda a vida, pense embora as catarses que a escrita me facilitou para alívio da memória maldita. Essa novela atinge o mundo ideológico de três gerações de uma família, e portanto projeta-se muito para além do tema estrito da guerra.”

Por último, falemos da maldição que paira sobre o conto como género muito pouco apetecível para as editoras: “Hum, nem por isso! Anseiam sobretudo pelo romance. Mais vendável, um meio de transporte com lugares sentados e janelas de correr à nossa ilharga. Eu ando talvez pelos 50% dos dois géneros literários: tantos romances quantos os livros de contos. Não sei ser de outra maneira, nem quero. Os meus editores sabem disso.”

A NUVEM NO OLHAR

João de Melo

D. Quixote

231 páginas

OUTRAS NOVIDADES LITERÁRIAS

OUTRA HISTÓRIA

A maior parte dos historiadores não superam o país onde nasceram e foram criados e são influenciados por ele na construção da sua história nacional, daí que a História de África seja para os estudiosos estrangeiros parte de uma visão enviesada do continente e dos seus países. Zeinab Badawi, a autora de Uma História Africana da África fez questão de contrariar essa construção e relatar com o olhar de quem nasceu no Sudão e de quem percorreu muito de África. As páginas dedicadas a Tombuctu são prova disso.

UMA HISTÓRIA AFRICANA DA ÁFRICA

Zeinab Badawi

Editorial Presença

428 páginas

“REGRESSO” A MONTAIGNE

No prefácio ao 30º título da obra reunida de Eduardo Lourenço que a editora Gradiva está a lançar, Montaigne ou a Vida Escrita, Guilherme d’Oliveira Martins enquadra a referência de Montaigne para o filósofo português, o autor que “muda a perspetiva da análise” e a quem Lourenço “procura seguir a lição”. Em seis textos de profunda análise, o filósofo faz aquilo que o prefaciador já anunciara: “A reflexão de Eduardo Lourenço ajuda-nos.” E o último ensaio deste volume, sobre Os Lusíadas, “faz” de Camões um paralelo com Montaigne que permite ao leitor o entendimento de como o homem pode não ser do seu tempo.   

MONTAIGNE OU A VIDA ESCRITA

Eduardo Lourenço

Gradiva

133 páginas

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Daniel Bastos: “Há cada vez mais a consciência da importância dos emigrantes para a afirmação de Portugal”

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