Véspera de Natal surreal
Estamos a uma semana do Natal e talvez só Cruzeiro Seixas (um dos portugueses ilustres que partiram neste estranho final de 2020) conseguisse pintar, com o seu traço surrealista, os dias de alguma insanidade a que assistimos nalgumas áreas de segurança nacional, saúde pública e política interna. Foi uma semana surreal, em especial na gestão do caso SEF/morte de Ihor, apenas atenuada por um assomo de bom senso e pragmatismo nas novas medidas para o período do Ano Novo - porque o Natal é quando (e como) o homem (e a mulher) quiser.
Quinta-feira, dia 17, o primeiro-ministro anunciou, via online, que mantém um Natal sem regras impostas pelo Estado, deixando à consciência das famílias portuguesas a gestão dos convívios familiares autorizados q.b. nos dias 24 e 25. Mas, volvidos outros tantos sete dias, já será necessário o recolher obrigatório, acabando com qualquer intenção de festas de Ano Novo. Isto é, as regras mudam radicalmente com uma semana de diferença (o que é indiferente para o vírus), mesmo sabendo-se que os números de contágios e mortes continuam altos e preocupantes.
Muitas famílias já tinham as suas compras feitas, sobretudo dos alimentos que vão permitir criar uma ceia de Natal, e, se o governo voltasse atrás, o primeiro-ministro seria criticado. Também as empresas, em particular os hotéis e restaurantes, já tinham abastecido frigoríficos e armazéns, esperançados de que as regras de relaxamento anunciadas para o Natal se estendessem até aos festejos do Ano Novo. Mas foi puxado o "travão de mão". A experiência dos automobilistas demonstra que, se o travão de mão for puxado em grande velocidade, o carro pode derrapar ou até capotar. Em janeiro se verá se a travagem foi a tempo quanto ao número de mortes e de infetados nos cuidados intensivos ou se o executivo deveria ter seguido mais cedo as orientações dos médicos e especialistas. Como o assunto é demasiado sério, não cabem aqui reflexões sobre comunicações surreais da DGS com compotas à mistura, até porque todos já tínhamos percebido, há vários fins de semana, que os almoços e jantares "neste país" podem ser substituídos por um brunch ou um pequeno-almoço.
Decerto mais preocupado com a sua saúde e a dos seus compatriotas, o primeiro-ministro terá olhado em volta para as medidas restritivas tomadas em vários países europeus nos últimos dias, perante o avanço desta segunda vaga da pandemia, e terá também acolhido o alerta do Presidente da República, numa mensagem cheia de recados nesse mesmo dia, avisando para os riscos de derrapagem da pandemia, ao decretar o prolongamento do estado de emergência até dia 7 de janeiro, como já tinha deixado antever.
Nesse mesmo dia 17, António Costa entrou em isolamento profilático por saber que o presidente francês, com quem almoçou há dias, testou positivo para a covid-19, e vários governantes e responsáveis políticos europeus cancelaram agendas. Costa adiou então uma visita a São Tomé e Príncipe, ao final da manhã dessa intensa quinta-feira, e, à noite, decidiu falar aos portugueses sobre as medidas do governo ao abrigo do estado de emergência (aprovado, entretanto, pelo parlamento e decretado pelo Presidente), já que Marcelo é agora candidato presidencial e optou por uma comunicação através do site oficial de Belém. Como o importante é a saúde, espera-se que os próximos testes estejam negativos e que António Costa tenha um Natal tranquilo, antes de iniciar a condução da presidência portuguesa da União Europeia.
No meio de uma pandemia, assistimos a surrealismo puro em torno da polémica do SEF. Debaixo de críticas de toda a oposição, o ministro Eduardo Cabrita parece ter tido um único objetivo até aqui: salvar o seu lugar como ministro, inclusive usando autoelogios. E se Cabrita é amigo de Costa, desde os tempo da universidade, agora não estará a ser verdadeiramente amigo porque está a provocar danos políticos graves ao primeiro-ministro.
A semana do MAI passou por idas ao parlamento (comissão parlamentar e debate do estado de emergência) e por outras declarações nos media. E ficou ainda mais visível que o ministro não tem peso político para liderar as forças de segurança. Por isso, Magina da Silva, diretor nacional da PSP, não caiu após as declarações proferidas em Belém, num domingo (13) à tarde, defendendo uma fusão entre o SEF e a PSP. A resposta chegou na manhã de sexta (18), com a nomeação para diretor nacional do SEF do tenente-general Botelho Miguel, ex-comandante-geral da GNR.
António Costa foi ministro da Administração Interna (e da Justiça, com Guterres e com Sócrates), tem um perfil centralizador e tem demonstrado ser mestre em tática. Por isso, poderá preferir ter mantido o seu leal ministro como amortecedor. Ironicamente, o ainda ministro Cabrita deverá ir a Belém, para a semana, na delegação chefiada pelo primeiro-ministro, na habitual apresentação de cumprimentos ao chefe de Estado. No final desta semana surreal, de pura sobrevivência de Cabrita como ministro das polícias, Costa ainda beneficiou de um polémico tweet de Rui Rio sobre os acontecimentos de março no aeroporto de Lisboa, a propósito de sondagens. Num cenário surreal, se até Marisa Matias diz ser social-democrata, Rio também pode tuitar à Trump. Tudo é agora possível, é o novo normal.
A ausência de uma oposição forte tem sido notada, aliás, de dia para dia, inclusive à direita. Já lhe tinha dito que a semana foi surreal? O antigo presidente Aníbal Cavaco Silva enunciou uma lista de críticas ao governo, mas sem nunca apontar caminhos, numa entrevista (dia 16) de autoelogio de liderança do passado. Nesta conjuntura, apesar da sua intensa experiência com Sócrates, não é fácil imaginar Cavaco com jogo de cintura para lidar com esta surreal instabilidade política em plena pandemia - que lembra mais manobras de diversão de marionetas ou longamente pensadas jogadas de xadrez na convivência possível entre São Bento e Belém.
Uma nota final de realismo e pragmatismo. A esperança dos portugueses assenta na chegada das vacinas, rapidamente e em força, supostamente a partir de dia 27, numa operação concertada à escala europeia. Mas é preciso lembrar que, segundo os especialistas, só na segunda metade de 2021 teremos uma quantidade grande de pessoas vacinadas e a imunidade de grupo vai demorar a existir. A verdade é que esta vacina foi criada em tempo recorde e está a ser produzida em contrarrelógio. Mas também é verdade que se criou a ideia de ação rápida do plano de vacinação em Portugal, quando, afinal, deverão chegar poucas vacinas na primeira fase. Portugal possui um modelo de saúde resiliente e capilar, justiça seja feita, mas sem vacinas suficientes a confiança não se restabelece na economia e nos cidadãos. Basta lembrar que há ainda muitas pessoas (idosos, inclusive) que esperam tomar a vacina da gripe.
2021 está à porta. Em vez de jogadas surreais, por causa do SEF, em tempos de agravamento da pandemia no país e por toda a Europa, os líderes nacionais e os portugueses em geral deveriam estar focados na presidência da União Europeia, no próximo semestre, bem como no bom uso da chamada bazuca para inverter, a curto prazo, a crise económica e social (que deverá agravar-se no primeiro trimestre de 2021) e para, no médio prazo, reconstruir ou recriar o modelo económico do país após a pandemia, num momento em que a economia portuguesa - em forte recessão - está há algum tempo a ser ultrapassada por quase todos os parceiros da UE. Além da saúde, esta deve ser uma preocupação de todos, porque, como diz o provérbio "em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão".