"Toda a gente sabia." O escândalo de incesto que abala a elite francesa
O acusado é o famoso cientista político, constitucionalista e antigo eurodeputado socialista Olivier Duhamel, que já se demitiu do prestigioso cargo de presidente da Fundação Nacional de Ciências Políticas. Quem o acusa é a enteada, Camille Kouchner, que num livro revela que ele começou a abusar em 1988 do seu irmão gémeo, então com 13 anos. Ambos são filhos de Bernard Kouchner, ex-chefe da diplomacia e cofundador dos Médicos Sem Fronteiras, e de Évelyne Pisier, ícone feminista, antiga amante de Fidel Castro e professora de Ciência Política falecida em 2017, que ao ouvir as denúncias terá optado pelo silêncio. E não terá sido a única. São estes os atores do escândalo que está a abalar a elite da esquerda francesa.
"Eu não revelo nada neste livro, toda a gente sabia, incluindo os amigos da família", escreveu Camille em La Familia Grande, cujos primeiros excertos foram revelados na última segunda-feira pelo Le Monde e que chegou às livrarias na quinta-feira. Logo na terça-feira, os procuradores de Paris abriram uma investigação preliminar por "violação e agressão sexual" contra Duhamel, que na véspera se tinha demitido da fundação que gere o Instituto de Estudos Políticos de Paris (conhecido como Sciences Po), mas também dos vários media onde era comentador. "Por ser objeto de ataques pessoais e desejoso de preservar as instituições em que trabalho, ponho fim às minhas funções", escreveu no Twitter, na conta pessoal, entretanto apagada.
Mas Duhamel, de 70 anos, poderá não ser o único a cair por causa do escândalo, com a imprensa a debruçar-se agora sobre aqueles que alegadamente sabiam e nada fizeram. O título do livro, no original em espanhol, era o nome que o politólogo (filho do ex-ministro socialista Jacques Duhamel) dava ao seu poderoso círculo de amigos, que incluía a elite intelectual e política - apodada negativamente de "esquerda caviar".
Frédéric Mion, diretor da Sciences Po, já admitiu que sabia dos alegados abusos desde 2019 e os estudantes pedem a sua demissão. Isto depois de, na segunda-feira, quando foi revelado o caso, ter enviado uma mensagem aos estudantes e professores dizendo-se "estupefacto" com a acusação contra Duhamel. Disse depois que pensou que se tratava de um "rumor", admitindo "falta de discernimento" em relação ao caso. Recusa contudo demitir-se.
Mion terá sido informado pela antiga ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, professora na Sciences Po. Quando soube das acusações, esta consultou um advogado penalista, que lhe disse que os crimes já teriam prescrito, mas ainda assim contou ao diretor, que lhe terá dito que iria fazer algo. Filippetti admite agora que se calhar podia ter feito mais, mas que pensou ter feito o que era acertado na altura.
Quem também está a ser criticada é Elisabeth Guigou, amiga da família, ex-ministra da Justiça e atual presidente de uma comissão sobre o incesto. Guigou reitera que só soube do caso esta semana, pela imprensa, indicando que esta é uma prova de que "todos estamos em contacto com vítimas ou agressores sem o saber". À revista L'Obs, a ex-ministra disse que não é exceção à regra. "O silêncio durante anos desta família, que eu conheço, mostra-nos como é preciso ser corajoso para que este tabu possa ser levantado", acrescentou.
Uma sondagem feita em novembro revelou que três em cada dez franceses conhecem pelo menos uma pessoa que foi vítima de incesto, sendo que um em dez foi ele ou ela vítima de abusos (oito em dez vítimas que os franceses conhecem são mulheres e uma em cinco são homens). "Este livro nasce de uma necessidade de testemunhar sobre o incesto, para demonstrar que é algo que dura anos e que é muito, muito difícil de sair desse silêncio. A omertà [código de silêncio dentro da máfia], numa família, pesa sobre todos", disse Camille numa entrevista à L"Obs.
Na altura dos acontecimentos, aquele que era o "padrasto adorado" - com quem Évelyne Pisier se tinha casado em segundas núpcias em 1987, três anos após o divórcio de Bernard Kouchner - impõe-lhes a necessidade de manter o segredo. Os episódios de incesto terão durado pelo menos dois anos. "Eu tinha 14 anos e deixei-o continuar. Tinha 14 anos, sabia e não disse nada", escreveu Camille, acusando o padrasto de ter feito dela cúmplice.
Uma das razões para nem contar a Évelyne era porque ela passava então por uma depressão - a própria mãe tinha-se suicidado em 1988, dois anos depois do pai. Mas quando Camille e o irmão - ela opta por chamar-lhe de "Victor" no livro - finalmente lhe contam, duas décadas depois, Pisier fica ao lado do marido, contra os filhos.
Já Bernard Kouchner quis "partir a cara" a Duhamel quando soube dos factos, também já em 2008, tendo mantido o segredo a pedido dos filhos. "Felizmente, este terrível segredo que pesava sobre nós há demasiado tempo saiu para a luz do dia", disse agora num comunicado. "Aplaudo a coragem da minha filha Camille", acrescentou. Já "Victor" disse ao Le Monde estar feliz por a irmã falar em seu nome e confirmou aquilo que ela denuncia no livro em relação a Duhamel.
As revelações de Camille Kouchner são as últimas a abalar a sociedade francesa. Em janeiro do ano passado, a editora e cineasta Vanessa Springona revelou no livro Consentimento (editado em Portugal pela Alfaguara) como manteve uma relação a partir dos 14 anos com o famoso escritor Gabriel Matzneff, então com 50 anos. Ele tinha começado a persegui-la, com cartas e até na rua, depois de a ter conhecido num jantar com a mãe. Ela, como acabou por consentir esta relação, não se apercebeu que tinha sido uma vítima.
Matzneff nunca escondeu as suas preferências sexuais por adolescentes, escrevendo sobre as suas experiências nos seus livros e diários, incluindo sobre turismo sexual com menores nas Filipinas, ou até falando disso em programas de televisão. As ações do escritor, vencedor de vários prémios, em vez de serem criticadas, eram toleradas pelos meios culturais, políticos e mediáticos, segundo Springona.
Camille Kouchner
Jurista, de 45 anos, revela no seu livro o caso de incesto que envolve Olivier Duhamel e o seu irmão gémeo.
Évelyne Pisier
A mãe de Camille casou-se em 1987 com Duhamel. Morreu em 2017. Era professora de Ciência Política e escritora.
Bernard Kouchner
O pai de Camille. Antigo chefe da diplomacia francesa, foi médico e cofundou os Médicos sem Fronteiras.