Tancos é resultado de 20 anos de desinvestimento em segurança e defesa
Não é muito comum começar um almoço pelo fim, mas foi mais ou menos isso que aconteceu. Ambos precisávamos de café e foi o que tomámos assim que nos sentámos à mesa do 33, na Alexandre Herculano. E se a conveniência da proximidade do escritório de Felipe Pathé Duarte - num palácio recuperado na Rua da Escola Politécnica - podia ter alguma coisa que ver com a escolha do restaurante, a verdade é que pouco contou. "Vinha aqui muito com o meu pai, sempre que ele vinha a Lisboa, é um sítio que faz um bocadinho parte de mim." Investigador, estudioso, professor, vem bem preparado para a conversa, que há de fazer-se à volta das novas ameaças e desequilíbrios que marcam o novo mundo - temas que são definitivamente a sua praia -, mas também para algumas pinceladas de um lado mais pessoal e menos óbvio.
Aos 36 anos, divide o tempo entre várias frentes de combate: comentários regulares na televisão; as aulas no Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna e na Autónoma, onde também tem projetos de investigação na área da segurança mediterrânica; e a consultadoria na VisionWare (especializada em cibersecurity, ciência forense, auditorias de segurança e informação, que oferece serviços de security officer). Áreas complementares e que o obrigam a estar sempre atento ao que está a acontecer no mundo, mas que requerem tempo para investigar, processar e avaliar a informação.
Da experiência enquanto consultor, entende que as "empresas portuguesas ainda não estão muito abertas a estes temas", mas já vai havendo alguma preocupação que justifica auditorias na área da segurança e sobretudo análise geopolítica para avaliação dos riscos em mercados de possível expansão.
Mas assume que o que verdadeiramente o preocupa é a falta de noção nas estruturas políticas. "Portugal é seguro, sim. Mas há uma ameaça real, ainda que possa não ser premente. E neste país há uma falta total de cultura de intelligence. Os políticos não têm noção da importância de ter uma cultura de intelligence no combate ao terrorismo, mesmo do ponto de vista da deteção da potencial ameaça, e isso tem como efeito não serem dadas às forças de segurança as ferramentas necessárias para trabalhar." Refere-se por exemplo à possibilidade de interceção de comunicações, constitucionalmente proibida em Portugal mas fundamental para detetar ameaças. E não entende porque não se cria um colégio de juízes que assegure um bom serviço de fiscalização e permita capacitar o intelligence. "Há gente boa nos serviços de segurança, gente capaz e conhecedora, mas falta-nos uma cultura de contraterrorismo - que pode partir de uma definição estrutural de uma unidade com capacidade operacional. O sistema de segurança interna não passa de uma plataforma de boas intenções." À falta de estruturas tem-nos valido o facto de a comunidade muçulmana aqui ser reduzida e estar relativamente bem integrada, o que facilita a monitorização e o controlo. "E o sistema NSF: Nossa Senhora de Fátima."
Porque é que há tanta dificuldade em definir esta área como prioritária? "Este campo não dá votos, não é favorável politicamente", defende, ainda que não veja que isso seja consequência de termos um governo de esquerda e apoiado à esquerda. "É recorrente o desinvestimento nesta área - ainda temos um complexo da PIDE que é completamente estúpido." E não tem dúvidas: "O caso de Tancos é resultado desta desvalorização progressiva do papel da segurança e da defesa. Durante 20 anos desinvestimos nas infraestruturas e nos recursos humanos, criámos uma ideia de que segurança e defesa são questões secundárias. Assumimos à partida que a estabilidade e a paz eram adquiridas e não criámos condições para a sua manutenção - e podemos vir a sofrer muito com isso. Os paióis de Tancos são um exemplo, o resultado a muito longo prazo de um descurar permanente das componentes de segurança e defesa, na Europa e em particular em Portugal."
Felipe Pathé Duarte acredita que o desinteresse resulta também da ilusão da paz perpétua kantiana e da possibilidade apreendida de proteção de uma espécie de entidade supranacional - a ideia de que, no final, alguém vai resolver tudo. E juntando a isto a crises financeiras que também justificaram algum desinvestimento criou-se as condições para a tempestade perfeita. Por isso defende que é vital focar atenções nas Forças Armadas e nos serviços de segurança, elementos "estratégicos e pilares da democracia e do Estado". "Por decisões políticas e economicistas não se avançou, tratamos mal as forças de segurança, e isto facilita a corrupção. Veja-se os contratos nas Forças Armadas: um miúdo de 20 anos forma-se nos Comandos, faz umas missões e seis anos depois é mandado à sua vida. Não é difícil entender como alguns, com formações altamente especializadas e abandonados, acabam por ligar-se a redes de crime organizado."
Já estamos a falar há um bom bocado quando a presença do senhor José Luís nos lembra que não viemos só conversar. Sem grande esforço - o 33 é sempre uma aposta segura para quem gosta de boa comida portuguesa -, peço lulas com puré e Felipe opta pelo bife de atum braseado com cebola e puré com pimentos, "muito mal passado". Para enriquecer a mesa, ia para um branco do Douro, mas decide antes homenagear o seu Alentejo - venha o Cartuxa bem fresco, que fica bem com ambos os pratos e traz lembranças da terra.
Felipe diz-se alentejano de Évora mas nasceu em Portalegre, herança da mãe, e fez a faculdade na Coimbra-natal do pai, cidade com a qual mantém uma relação umbilical e que o "definiu muito" nos anos de estudante de Filosofia, caminho que escolheu, apesar de "talhado para o Direito", "quase como um capricho intelectual, numa perspetiva religiosa mais do que com vista a aprender um ofício". O curso não o ajudou a preencher buracos e dúvidas existenciais típicas dos 16/17 anos, mas, como Camus e Vergílio Ferreira, serviu para colmatar esses vazios e ganhar uma "ambivalência intelectual fortíssima", uma alavanca que o ajudou a formar "uma perspetiva ética, a fazer uma intervenção agnóstica aos problemas". Passou por Toulouse - "devo ser o único estudante que não fez nem uma cadeira num ano de Erasmus; foi mais uma questão de festividade, aproveitei para aplicar o meu lado lúdico", brinca - e mais tarde, já depois do trabalho em Filosofia Política na Católica e de três anos na Fundação Mário Soares (a tratar o espólio ligado à descolonização e resolução de conflitos em África), o destino havia de o levar a Inglaterra e aos Estados Unidos, marcando a viragem fundamental na sua vida.
Atum e lulas chegaram cheios de valor, mas não conseguem rivalizar com uma conversa que abre constantemente novas linhas de pensamento. Viramo-nos para os Estados Unidos, com Trump à frente e as possibilidades a irem do impeachment ("previsível a partir do momento em que o presidente crie antagonismo em relação às estruturas do sistema de checks and balances") à hipótese de "um evento externo - uma guerra, um conflito que foque as atenções e a definição de inimizade - que faça bloquear o turbilhão interno".
"Vivemos um período de tensão e não sabemos para onde vai cair, mas é muito semelhante ao que se viveu no final do século XIX, com a demissão progressiva do império - neste caso, o americano, da sua influência mundial -, levando a que outras nações se afirmem como potências regionais, gerando desequilíbrios." Quem pode ocupar esse espaço? A China, a Rússia, o Irão, a Arábia Saudita. E perante esta perspetiva, com inevitáveis submissões subsequentes de regiões vizinhas às que se afirmem e novos laços de dependência a nascer, o desequilíbrio do sistema de relações internacionais preocupa quem vê o mundo pelos olhos de Felipe. A globalização é uma vantagem - "estamos na iminência de um conflito, mas essa iminência torna-se uma tensão provisória constante, fruto dos lastros criados através de relações comerciais num mundo global, que vai impedindo que as coisas disparem -, mas não é certo que resolva tudo.
"Imaginemos um cenário em que a Coreia do Norte consegue desenvolver um míssil intercontinental com capacidade nuclear que chegue aos Estados Unidos - este que foi lançado a 4 de julho, numa clara mensagem provocatória, já atingiria o Alasca... Kim Jong-un não é um louco, é um ator racional, o que o torna mais perigoso. Já há aqui razão para um preemptive strike - talvez não tenha acontecido por pressão chinesa, mas a China está a perder controlo, portanto a possibilidade de haver um ataque dos Estados Unidos à Coreia do Norte é cada vez maior." Essa, explica, é uma situação que nada convém a uma China que, acontecendo uma intervenção militar norte-americana, perderia a capacidade de influência estratégica que tem vindo a construir.
"Acho que vai haver contenção porque um conflito desses implicaria um número de mortos e perdas incalculável e nenhum Estado, em consciência - ainda menos os Estados Unidos - arriscaria desencadear uma situação destas a menos que houvesse uma situação muito evidente, um ataque iminente. Mas tudo é possível."
Quando os pratos são substituídos por cafés, já há poucas mesas ocupadas no 33, mas na nossa ainda há muito por digerir. A começar pelas ameaças que chocam a Europa. Felipe faz questão de distinguir o jihadismo da Síria e do Iraque do que temos dentro de portas, fenómenos totalmente distintos ainda que nascidos de uma mesma base - o primeiro marcado por uma ideologia totalizante, uma metanarrativa não muito diferente das que marcaram o século XX. "Como o comunismo, o nazismo, o fascismo, apresentam uma alter-realidade de carácter salvífico, revolucionária, que é mostrada como meio para uma melhor sociedade à qual só se pode chegar através da violência para acelerar o motor, pelo bem maior. Marx dizia que a violência é parteira de uma sociedade nova..." A experiência permite-lhe explicar-me em dez minutos décadas de movimentos que culminam no Estado Islâmico como o conhecemos hoje, para concluir que "não é a religião que se torna nisto, mas uma vontade de poder que vai apanhar elementos religiosos para justificar a dimensão de poder. E como o islão regulamenta todos os comportamentos do homem - espiritualmente, socialmente e em termos de política de Estado -, é fácil seguir uma ideologia fundamentada em religião".
Neste caldo, há um traço de dependência à ideia e não aos líderes ou à infraestrutura - e é aqui entramos na Europa, sendo impossível controlar a ideia, que se propaga a enorme velocidade no ciberespaço. "A radicalização é característica das sociedades abertas, nasce do choque entre expectativa e realidade. E quem está a viver esse processo de radicalização obedece a determinada identidade, característica, etnia que encontra nesta narrativa a justificação para catalisar essa radicalização, para usar a violência como justificação e mudar a sua própria condição. Não é o islão que se torna radical e violento, há uma radicalização prévia", frisa. "Grande parte desta rapaziada são emigrantes de segunda geração, muitos deles convertidos ou reconvertidos. E o problema, para lá da dimensão social - que não justifica tudo, porque muitos deles estão completamente integrados -, é a montante: tem que ver com a neutralização forçada do espaço público, despojando-o de um conjunto de valores que nos definem como europeus e ocidentais." Defende que a aceitação da diferença não implica relativização de valores e que na Europa, em nome do politicamente correto, houve uma deturpação que levou à terraplanagem dos valores no espaço público criando "uma reação de hiperidentidades que se assumem".
Neste processo, pesa ainda a guetização, sobretudo em França e Inglaterra, fruto da ocupação maioritariamente muçulmana e isolamento dos bairros de onde os emigrantes dos anos 1960 foram saindo conforme ganharam poder de compra - também muitos destes radicalizados, seguindo movimentos de extrema-esquerda/direita que entretanto entraram no sistema político, abandonando a violência.
Quanto à nova onda, uma primeira geração de imigrantes, não integrada, teve filhos "que já nascem europeus, são educados na mesma perspetiva dos outros europeus, mas sem que nós os reconheçamos como tal. Vivem num limbo identitário e nascem nesta mistura explosiva, como cidadãos de segunda que são nativos digitais - e isso é muito importante" porque vivem numa realidade dominada pelos videojogos e pelas redes sociais que criam uma "sobreposição de existências". "De repente, eles não cumprem as expectativas e têm de procurar onde se agarrar. E se os emigrantes dos anos 1960 tinham consciência de classe, estes têm uma consciência de identidade dada por uma cultura comum, pela identidade religiosa. E do nada, com a ajuda do ciberespaço, tornam-se hípers."
Com os segundos cafés a caminho, aproveitamos para nos chegar à varanda e fumar um cigarro, enquanto Felipe Pathé Duarte explica as dificuldades de regular uma área em rapidíssima expansão como o espaço virtual, mas sobre a qual já trabalha uma plataforma comum, uma rede de intelligence que faz permanente partilha de informação. O problema é que faltam recursos humanos qualificados para, dentro do SOCMINT (Social Media Intelligence), conseguir ter uma perspetiva abrangente das redes, transnacionais, transversais e globais. À parte isto ou casos concretos, "é irrealista pensar numa intelligence europeia, porque os interesses estratégicos dos Estados são diferentes, por vezes até competem", explica o especialista em questões de segurança. E ainda há, realça, "aquela noção da Guerra Fria de que deter informação é poder, mesmo se, no caso do contraterrorismo, a partilha de informação é que é poder".
O que acontecerá a seguir está por definir, mas o diagnóstico parece fácil de fazer depois desta conversa. E se Felipe não fecha soluções ideais, reconhece com firmeza a defesa e a segurança como áreas prioritárias - ou não se tivesse preparado durante toda a vida, mesmo que não o antecipasse, para o ponto de breakeven que vivemos.
Naqueles anos do início da década de 2000, com o curso tirado, viu crescer o interesse por entender a ideia bélica, a razão de haver violência - "estávamos ali em plena guerra do Iraque, tinha havido o 11 de Setembro, os neocons no poder, a definição de preemptive strike e preventive strike... nessa altura frequentei uns seminários do Miguel Monjardino que foram decisivos. Estávamos a acordar de um estado de certo mindnumbing que se sucedeu a um conjunto de vitórias e bem-estar no Ocidente." Fala do tal período que trouxe a ilusão de que a paz perpétua era possível e do subsequente abanão que fez voltar a andar "o motor da história, com uma dimensão de inimizade diferente, de um ator não estatal que põe em causa o maior Estado que marcou os anos 1990, feito por um tipo de barbas de outra religião".
Esse deslumbramento com a geopolítica levou-o ao doutoramento que o colocaria oito meses em Oxford - "uma espécie de Eurodisney do wannabe intelectual, em que acontecem coisas e há debate e acompanhamento, mas numa realidade de Harry Potter". Desses tempos mantém a rede de contactos que criou e com quem valida permanentemente o trabalho que desenvolve, "numa abordagem agnóstica de falsificabilidade, popperiana, em que apresento sempre as coisas esperando que me apontem o erro para mudar: todos os cisnes são brancos até que me mostrem um preto". Dali a Washington, "o umbigo político do mundo" - onde trabalhou no CSIS (Center for Strategic and International Studies), foi um pequeno salto no qual beneficiou da riquíssima cultura de think tanks norte-americana, muito vivida nas áreas estratégicas de interesse dos Estados Unidos. "Estava no departamento de Homeland Security and Counterterrorism , com sábios com quem podia debater, acesso a informação e a produzir relatórios para eles. E nessa altura havia já a guerra da Líbia, o início das primaveras árabes e o mundo estava num turbilhão. Foi período muito interessante."
Quando regressou a Portugal, Felipe trazia uma cabeça muito mais aberta, uma visão diferente e a sensação de que o que aqui existia não chegava. "Frustrado, zangado com a situação política e social em plena crise e sem perspetivas, foi uma altura um bocado asfixiante" e chegou a pensar deixar o país. Mas a vida interveio - acabou o doutoramento e começou logo a dar aulas - e foi perdendo a vontade de sair, mesmo porque Portugal lhe oferece o que não poderia ter em mais nenhum lugar. "Gosto de viver em Lisboa, vive-se bem aqui, e num saltinho consigo pôr-me no campo, com o qual tenho uma relação umbilical. Tenho um lado rústico muito desenvolvido", ri-se. Mas assume-o como verdade e tem pena de não ter tanto tempo quanto gostaria para carregar baterias em Pinhel (Coimbra) ou Marvão (Alentejo), onde se refugia, em casas antigas de familiares - "sou um produto do IP2", brinca, falando com paixão das cores, das estações e sobretudo dos cheiros que o fazem regressar à infância e o ajudam a renovar-se de tempos a tempos.
É esse regresso às origens, em que aproveita para cozinhar - "gosto imenso de recriar receitas de família, faço uma perdiz ótima!" -, montar a cavalo, caçar e retomar contacto com os seus heróis "intangíveis", Corto Maltese e Hank Moody (protagonista de Californication), que lhe serve de escape, um mundo bem mais simples do que a geopolítica em que se move diariamente. Mas viver no campo é "impensável".
Tínhamos mote para mais três horas de conversa sobre o que esperar nas diferentes regiões do mundo, mas por esta altura estamos sozinhos e o senhor José Luís tem de ir descansar. Despedimo-nos com a sensação que nos deixam certos filmes em que se adivinha sequela, mas com a convicção de que, por essa altura, talvez haja maior definição sobre o futuro.
Restaurante 33
Couvert
Água
Vinho branco Cartuxa
Lulas recheadas
Bife de atum braseado
Cafés
Total: 77,90 euros