Maryia Gabriel tem aquilo que ela própria chama de "gigantesco portefólio" de dossiês sob a sua responsabilidade na Comissão Europeia. Comissária para a Inovação, Investigação, Educação, Juventude e Cultura, a búlgara lida com várias das áreas mais importantes e/ou mais afetadas pela pandemia de covid-19 e está responsável por coordenar o maior orçamento de sempre da União Europeia para a investigação e inovação: os 95,5 mil milhões de euros do Programa Horizonte Europa. Motivos mais do que suficientes para uma conversa, à margem da Cimeira Social que decorreu no Porto, na qual também deixou elogios para o trabalho do seu antecessor nas pastas de Investigação e Inovação, Carlos Moedas. Comecemos com o assunto que tem estado em evidência recentemente: a hipótese de levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19. Qual é a sua posição como comissária para a Inovação e Investigação? É um assunto sério, que tem de ser debatido. Temos, por um lado, que dar atenção a todos os nossos inovadores, aos nossos talentos, às nossas empresas, mas, ao mesmo tempo, desde o início desta crise que nos comprometemos com um valor muito forte, que é o acesso a vacinas para todos. O mais importante nesta crise é que precisamos de cooperação internacional, precisamos de abertura entre todos para realmente sairmos dela o mais rápido possível. E isso significa ter a vacina disponível para todos..E suspender as patentes não é a melhor via para isso? O que digo é que temos de encontrar uma abordagem equilibrada. O resto deixaria para os meus colegas da Comissão que têm esses dossiês em mãos.. A covid-19 mostrou-nos que a UE precisa de acelerar o investimento em ciência, investigação e inovação? Seguramente. Mas também gostaria de sublinhar duas coisas, porque não tenho a certeza se todos estão cientes disso. O Horizonte 2020 foi o primeiro programa que mobilizámos na luta contra a covid-19, em janeiro do ano passado, e no último ano investimos mil milhões de euros em vacinas, tratamentos e testes, as três vertentes principais nesta luta. Por outro lado, concluímos as negociações para o novo orçamento do Programa Horizonte Europa, de 95,5 mil milhões de euros, o maior de sempre no nosso programa europeu de inovação e investigação. Acho que este foi um sinal muito forte de que o investimento em ciência e inovação é um investimento estratégico para a UE, porque não se trata só de preparar o nosso futuro, mas também de como nos tornarmos mais resilientes agora, no presente, para estarmos melhor preparados para outra crise. Convém lembrar que se hoje temos uma vacina eficaz contra a covid-19 é muito graças ao investimento da política europeia de investigação e inovação. Não nos esqueçamos que Ugur Sahin, o CEO da BioNTech [parceiro da Pfizer], foi um dos bolsistas do Conselho Europeu de Investigação..Tem a responsabilidade de gerir este Programa Horizonte Europa, com 95,5 mil milhões de euros de orçamento para os próximos sete anos. É este o momento-chave para a Europa conseguir competir com os Estados Unidos e a China pela liderança mundial na inovação? Definitivamente, acho que este é o nosso principal pilar para isso, mas temos de ver também como podemos concertar ações com outros instrumentos disponíveis, a fim de construirmos sinergias e criarmos um melhor impacto. Estamos, de alguma forma, a viver um momentum, porque temos o Programa Horizonte Europa, temos o programa Erasmus +, do qual dobrámos o orçamento, e ao mesmo tempo temos os nossos fundos de coesão, o Next Generation EU e ainda o Mecanismo de Resiliência e Recuperação. É dinheiro sem precedentes à disposição dos nossos Estados-membros..CitaçãocitacaoO Conselho Europeu de Inovação tem um orçamento de 10 mil milhões e, o mais importante, 70% desse orçamento destinado a startups e PME. A nossa ambição é clara: transformar o Conselho Europeu de Inovação numa fábrica europeia de unicórnios..Mas concorda que a covid-19 deixou mais evidente a importância dessa disputa com a China e os EUA pela liderança científica e de inovação? Não devemos ser ingénuos, seguramente. O que está a acontecer durante esta crise com algumas das nossas dependências é uma prova óbvia de que precisamos de aumentar o nosso domínio estratégico, a nossa soberania tecnológica. Mas também é uma evidência de que devemos adotar uma abordagem holística, em que ciência, investigação e inovação devem andar de mãos dadas com a indústria, com a saúde, com as regiões, com cada cidadão. Para mim, a questão agora é como desbloquear todo o potencial da União Europeia, porque, convém recordar, somos a força motriz da ciência no mundo: 25% das publicações científicas de mais alto nível são europeias, e representamos 20% do investimento mundial em investigação e inovação. Mas agora a questão é como transformar esta liderança científica numa liderança na inovação. E aqui penso que a Europa tem uma grande oportunidade, com a quarta onda de inovação. Precisamos de investir nas nossas startups de deep-tech, ajudar os nossos inovadores a tornarem-se líderes globais. E temos um bom instrumento para isso, que é o Conselho Europeu de Inovação, com um orçamento de 10 mil milhões e, o mais importante, 70% desse orçamento destinado a startups e PME. A nossa ambição é clara: transformar o Conselho Europeu de Inovação numa fábrica europeia de unicórnios [startups que atingem o valor de mil milhões de dólares]..O Conselho Europeu de Inovação é uma das novidades deste Programa Horizonte Europa. Que outras há em relação ao antecessor, o Horizonte 2020? Outra novidade, e é um dos elementos mais recentes, são as nossas missões, que fazem parte do segundo pilar da Horizonte Europa. Temos agora cinco missões a desenvolver até 2030 e se tivesse que descrever a importância delas numa frase resumia-a a isto: um bem público que leve os nossos cidadãos a sentirem que houve um impacto positivo nas suas vidas diárias devido a medidas tomadas a nível europeu. Na missão do cancro, que nos toca a todos, a ambição é muito clara: três milhões de vidas salvas até 2030. E temos quatro outras missões que estão todas ligadas ao nosso "acordo verde". Gostaríamos de ver 200 regiões europeias bem avançadas nos objetivos climáticos até 2030; propomos 100 cidades europeias inteligentes e neutras para o clima até ao fim da década - por que não o Porto? Tem potencial para ser uma delas -; atingir 75% dos nossos solos saudáveis neste período, e, outra que é particularmente importante para Portugal,a missão sobre os oceanos, mares e águas. E o que é muito bom é que, desde o início, este foi um processo de cocriação. Definimos estas missões em conjunto com os nossos cidadãos e agora estamos na fase de conceção dos planos de implementação, a fim de ver quais serão as primeiras metas alcançáveis..Como é que esta pandemia redesenhou as prioridades europeias na investigação e que tipo de impacto pode ter a longo prazo nesta matéria? Desde logo, mostrou-nos obviamente que temos de investir mais em ciência, em saúde, em digital, em verde. É por isso que este orçamento foi uma boa notícia. E foi com certeza um sinal muito claro de que temos que fortalecer alguns dos nossos clusters - mais uma vez na saúde, no digital, no verde... Mostrou também que temos que reforçar o apoio aos nossos inovadores, porque alguns deles estiveram presentes desde o início da crise com boas propostas. E outro impacto importante que pode advir desta pandemia é que definitivamente mostrou que é necessário o reforço das parcerias entre a indústria e a ciência. E isso significa que temos sempre que pensar como é que a partir da pesquisa fundamental, onde somos extremamente bons - e temos uma joia da coroa que é o Conselho Europeu de Investigação -, podemos acelerar o processo para ver essa ciência aplicada em produtos e serviços nas nossas indústrias, que, por um lado, são uma forma de liderança europeia, deixando-nos menos dependentes do exterior, mas, além disso, traduzem benefícios reais e concretos para os nossos cidadãos. É por isso que estamos a propor, por exemplo, que o mundo da ciência e dos negócios esteja a elaborar em conjunto de roteiros tecnológicos sobre temas importantes, como a economia de baixo carbono, que é um dos primeiros. Também muito importante é construir sinergias com os outros programas disponíveis. Isso é especialmente importante quando falamos em educação, porque depois da pandemia todos nós vemos como é importante ter capacidade de produção, estar na vanguarda da ciência, mas a verdade é que sem as qualificações, sem as competências necessárias, será muito difícil atingir os nossos objetivos. E é por isso que estou tão feliz com o programa Erasmus +, onde temos agora um objetivo muito claro de envolver 10 milhões de pessoas em sete anos, tantas quantas as que participaram do programa nos últimos 30 anos. Temos também de insistir muito na educação STEM (Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas) e, um tema que me toca particularmente, investir mais nas mulheres e jovens raparigas..Como impedir a fuga de cérebros da Europa quando são tantas as dificuldades em alguns países, como Portugal, para estabelecer e garantir carreiras profissionais aos cientistas? Está a levantar um dos tópicos mais importantes. Eu não gosto de falar sobre fuga de cérebros, acho que é hora de mudar a narrativa. Na Europa temos que falar de mobilidade de talentos, esse é o meu objetivo. Com o novo Espaço Europeu da Investigação haverá uma ação dedicada a tornar a carreira científica mais atrativa. E estou muito grata ao ministro [Manuel] Heitor e à presidência portuguesa, porque foi um dos primeiros temas com que começámos esta presidência numa das nossas reuniões ministeriais. Claro que precisamos de fazer muito mais. E não é apenas da competência da Comissão Europeia. Há muito a fazer pelos nossos Estados-membros e o nosso papel é apoiá-los nas reformas necessárias. É por isso que é tão importante agora o Mecanismo de Recuperação e Resiliência e os planos nacionais apresentados por cada país, porque eles podem efetivamente dedicar fundos para as nossas mentes brilhantes. Como sabemos, na Europa o nosso modelo é mais baseado na quantidade de publicações dos cientistas, e penso que é realmente hora de levar em consideração outras atividades dos nossos investigadores. Como motivá-los a ensinar e transferir a paixão pela ciência aos nossos jovens se isso não for contabilizado no desenvolvimento de suas carreiras, por exemplo?Também gostaríamos de promover no Espaço Europeu da Investigação uma mobilidade intersetorial, aproximar os nossos investigadores do mundo industrial e empresarial..Portugal investiu 1,4% do seu PIB em investigação e desenvolvimento em 2019. Como colmatar o fosso entre os países mais ricos e os mais pobres da UE em relação ao objetivo de investir 3% do PIB nesta área? Bom, com o Espaço Europeu da Investigação reafirmamos o nosso objetivo dos 3%. Mas estamos conscientes de que alguns dos Estados-membros precisam de apoio adicional. E é por isso que estamos a propor formas de os apoiar. Um exemplo muito concreto: desta vez, os Estados-membros podem, numa base voluntária, fazer uma transferência dos fundos estruturais para o Programa Horizonte Europa, a fim de ajudarem os seus investigadores e inovadores a participarem mais. Outro excelente sinal é o orçamento dedicado a disseminar a excelência e alargar a participação neste Programa Horizonte Europa: triplicámos, de 900 milhões de euros para 3,3% de todo o orçamento..CitaçãocitacaoNeste novo programa Erasmus+ vamos criar 25 academias europeias de professores, onde estes podem cooperar, elaborar em conjunto materiais pedagógicos, inovar. Vamos também criar um novo prémio europeu para o ensino inovador..O impacto da pandemia na educação foi brutal, deixando uma geração em risco de perdas irrecuperáveis na sua educação. É uma geração que precisa de reforço formativo? Quais os planos da Comissão? Sem dúvida, o setor da educação foi um dos mais atingidos. Mas, ao mesmo tempo, devo dizer que fiquei muito feliz por termos visto uma extraordinária criatividade e mobilização de todo o setor. Claro que, com esta pandemia, a primeira coisa é perceber as lições aprendidas e ver como podemos transformar as fraquezas em forças. Porque temos fraquezas, sim. Vimos isso. Temos de investir em equipamento, em conectividade, na formação dos nossos professores - 50% dos professores europeus disseram que tiveram a primeira experiência de ensino à distância. Desta vez, temos o Plano de Ação da Educação Digital e temos ainda o objetivo claro de ter, pelo menos, 20% de orçamento para o digital - e isso significa uma nova educação digital também - dentro do Programa de Resiliência e Recuperação. Por outro lado, devemos investir mais nas qualificações básicas, porque, no momento, há 25% dos nossos jovens sem essas competências. E sabemos que 90% dos empregos exigirão essas habilidades básicas..Já falou um pouco do novo Erasmus+, um dos mais bem-sucedidos programas da União Europeia. Que novidades traz esta nova versão? Em primeiro lugar, conseguimos duplicar o orçamento, para 20 mil milhões de euros. Mas, para mim, o número mais significativo é 10 milhões, que é o número de cidadãos europeus beneficiados por este programa desde 1987 até agora e o número que estamos a propor igualar nos próximos seis anos, de 2021 a 2027. Isso significa ter agora objetivos muito claros: ser mais inclusivo, ser mais verde e ser mais digital. Em primeiro lugar, mais inclusivo, e deixa-me muito feliz o facto de o novo Erasmus+ estar aberto a todos, numa filosofia de aprendizagem ao longo da vida. Não estamos focados apenas no ensino superior, mas há também, pela primeira vez, a possibilidade de experiências de mobilidade para escolas secundárias e há um reforço muito claro do ensino e formação profissional: 17,8% do orçamento total. Depois, um Erasmus mais verde. Os nossos jovens são, sem dúvida, condutores dos nossos objetivos climáticos e vão poder envolver-se em projetos para concretizar as suas ideias climáticas. Nós queremos apoiá-los: mostrem-nos a vossa capacidade de concretizar essas ideias. Vamos ter um Erasmus azul (mares, oceanos) também, importante para Portugal. E, claro, vamos ter um Erasmus mais digital, como já disse, com a mobilidade mista - e nunca a mobilidade virtual irá substituir completamente a física, gostaria de tranquilizá-los sobre isso -, a promoção de mais competências digitais, formação para os nossos professores. Neste novo programa Erasmus+ vamos criar 25 academias europeias de professores, onde os professores podem cooperar, elaborar em conjunto materiais pedagógicos, inovar. Iremos também criar um novo prémio europeu para o ensino inovador. Os nossos professores fizeram um trabalho incrível durante a pandemia, mas não é normal que apenas 20% se sintam respeitados pela sociedade. Se queremos atrair os melhores para esta carreira, precisamos de os apoiar, e estou feliz que com o Erasmus+ tenhamos essa oportunidade também..Um dos principais problemas que os jovens europeus enfrentam em muitos países é o acesso ao mercado de trabalho. Como podemos garantir aos jovens reais oportunidades de trabalho qualificado? É um tema muito importante. Já toquei em algumas das questões principais, como o acesso à educação. Depois, quando pensamos no mercado e na indústria, é claro que precisamos de continuar a incentivar o ensino e formação vocacional para a chamada educação STEM (Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemática), pois é óbvio que hoje precisamos de pessoas com essas competências. Outra importante linha de apoio é a Garantia para a Juventude, que até agora deu a possibilidade de 24 milhões de jovens europeus conseguirem um emprego. Desta vez alargámos o limite de idade até aos 29 anos, e já não 24. E uma outra coisa importante, que não tenho a certeza de que todos os nossos jovens estejam conscientes, é que os encorajamos a criar as suas próprias startups, a tentarem ser empreendedores. É por isso que existe um voucher de 15 mil euros para os jovens que queiram lançar as suas ideias. E, claro, temos que desenvolver um tema importante que é o das microcredenciais. Como convencer os jovens a seguirem uma formação se essa formação depois não for reconhecida e não tiver impacto na sua carreira? Começámos este trabalho em junho do ano passado, com um grupo de especialistas, e até ao final deste ano irei propor aos nossos ministros europeus um plano de ação para as microcredenciais na UE, que são importantes também para a formação de adultos, que, como sabe, foi uma das metas estabelecidas nesta Cimeira do Porto. ter 60% dos nossos adultos a participarem anualmente em ações de formação..No seu extenso portefólio cabe também a cultura, um dos setores profissionais mais afetados pela pandemia. Como garantir que a cultura não é deixada para trás na Europa? Quando falamos de cultura e setor criativo, estamos a falar de 4,4% do PIB europeu e de 8 milhões de empregos. É um setor muito importante e do qual falamos sempre em último lugar. Queria deixar-lhes [aos profissionais da cultura] algumas mensagens importantes: em primeiro lugar, e pela primeira vez, no programa Horizonte Europa existe um cluster dedicado à cultura e criatividade com acesso a 2,3 mil milhões de euros. Criaremos com o Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT) uma nova comunidade de conhecimento e inovação, com foco nos setores e indústrias culturais e criativos. E, claro, temos o nosso Programa Europa Criativa, para continuar a apoiar a cooperação. Precisamos agora de uma plataforma onde o setor encontre uma forma de trabalhar em conjunto e falar a uma só voz, onde os profissionais da cultura tenham acesso a todas essas informações, porque não tenho a certeza se todos estão cientes de que há um novo cluster de cultura no programa Horizonte Europa. O setor não pensa espontaneamente nestes programas. O último apelo que lhes deixo é para estarem atentos à nova iniciativa Bauhaus Europeia, porque acredito plenamente que temos de transformar o negócio verde num projeto cultural. Conto com eles para nos mostrarem que com a cultura podemos alcançar os nossos objetivos sustentáveis e climáticos..CitaçãocitacaoQuando falamos de cultura e setor criativo, estamos a falar de 4,4% do PIB europeu e de 8 milhões de empregos. É um setor muito importante e do qual falamos sempre em último lugar..Para finalizar: Sucedeu ao comissário português Carlos Moedas nestas pastas. Encontrou a casa bem arrumada? Primeiro, devo dizer que ele foi um excelente colega quando eu era comissária Digital. Lembrar-me-ei sempre da nossa primeira conferência de imprensa conjunta, sobre computação de alto desempenho. Em apenas três anos conseguimos transformar isso numa nova liderança europeia. Tenho total respeito por ele, até porque cada novo Horizonte Europa trabalha sobre os pontos fortes e a base sólida do seu antecessor. E algumas das ideias herdadas são tão pertinentes que agora é realmente um prazer trabalhar no seu desenvolvimento. Estou muito grata, por exemplo, pela ideia de criação do Conselho Europeu de Inovação. Agora é realmente hora de transformar isso em algo operacional e tangível..rui.frias@dn.pt