Riscos de uma transição caótica

São onze semanas a que habitualmente ninguém presta atenção, mas que podem ditar o futuro dos Estados Unidos da América, a qualidade das suas políticas, a coesão da sua administração, a eficácia das suas decisões. A história das transições de poder dá-nos várias lições importantes, o que eleva ainda mais os riscos da atual.
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É um erro desvalorizarmos o período de transição entre a eleição de um presidente norte-americano e a sua tomada de posse. São onze semanas politicamente relevantes e com impactos na governação que se inicia.

Vale a pena começar por referir que a passagem de testemunho não é uma mera tradição da política americana, mas um momento consagrado na lei. É aqui que se definem as obrigações da administração cessante, os tempos da coordenação entre equipas, que se atribuem competências e hierarquias.

A lei diz que, seis meses antes da eleição presidencial, a Casa Branca deve criar o Conselho para a Transição, liderado pelo chefe de gabinete do presidente, tendo uma contraparte com experiência coincidente no lado do presidente eleito. Os dois assinam um memorando de entendimento que baliza o roteiro negocial daí em diante.

No caso atual, as primeiras reuniões entre a equipa de Trump e a de Biden começaram em junho, com uma progressiva partilha de informação setorial, agenda das políticas em curso, pontos críticos em cima da mesa e intelligence sobre matérias ligadas à segurança nacional ou a missões militares no exterior.

O orçamento federal contempla para a logística deste período de transição qualquer coisa como seis milhões de dólares, o número de envolvidos no processo pode ultrapassar em permanência o meio milhar e o Senado é suposto começar as audições às nomeações dos mais de 1200 cargos novos que o exigem ainda antes da tomada de posse presidencial, a 20 de janeiro. A dimensão do aparelho federal é de tal monta que de cada vez que uma administração muda traz consigo à volta de quatro mil novos funcionários públicos.

A transição não é, por isso, uma mera passagem de pastas políticas, dando ou não continuidade à legislação em curso e assegurando a burocracia administrativa do Estado americano. É a construção de um novo edifício de confiança política do presidente vinculada ao seu núcleo duro. Se este tarda em entrar em funções ou desconhece pormenores fundamentais das principais políticas públicas, é o mandato do novo titular da Casa Branca que sai altamente prejudicado.

Há boas razões para valorizarmos as transições de poder na América, e a história ajuda-nos nesse exercício. Desde logo, porque não há qualquer suspensão da política corrente nem da legitimidade das decisões. Foi exatamente na passagem da presidência de James Buchanan para Abraham Lincoln (1860-61) que sete estados anunciaram o processo de secessão da União, que resultaria na Guerra Civil; foi já na transição de Jimmy Carter para Ronald Reagan (1980) que se concluíram as negociações com o Irão para a libertação dos 52 americanos reféns na embaixada em Teerão; e foi na passagem de George H. Bush para Bill Clinton (1992) que foi tomada a decisão sobre uma investida militar na Somália, que enquadrou o que uns meses depois iria resultar no desastre de Mogadíscio, um dos grandes traumas recentes das operações especiais americanas.

Em segundo lugar, porque a qualidade das transições políticas têm um alcance direto na eficácia da nova administração. O exemplo mais recente data de 2000 e resulta do atraso na oficialização dos resultados eleitorais, fruto da recontagem dos votos na Florida, o que atrasou as escolhas para os principais lugares no aparelho de segurança nacional do presidente George W. Bush, protelando por meio ano algumas importantes audições vinculativas no Senado, o que, de acordo com o relatório da comissão sobre o 11 de Setembro, terá prejudicado o acompanhamento, a análise e a resposta às movimentações terroristas que lhe deram origem.

Por fim, recuperando mais uma vez este último exemplo, más transições abrem brechas na segurança nacional e podem motivar atores externos (estatais ou não) a aproveitarem essas vulnerabilidades. Num contexto de competição estratégica aberta entre grandes potências e com instrumentos cibernéticos comprovadamente eficazes, todo o cuidado é pouco. Neste sentido, para não falar de tantos outros, o comportamento de Donald Trump é lesivo dos interesses norte-americanos e um promotor de insegurança nacional.

Para que a transição se faça com sensatez, eficácia, transparência e em proteção do interesse nacional - como aconteceu entre George W. Bush e Barack Obama (2008) e entre este e Donald Trump (2016) -, é preciso que a liderança da agência federal que assegura toda a logística processual destes períodos reconheça o presidente eleito. Tal ainda não aconteceu, o que dilata a bizarria em que vivem os Estados Unidos da América. O boicote é mais grave porque vive de um respaldo do presidente Trump, que objetivamente tem privado a equipa de Joe Biden do acesso a imprescindível informação classificada, tal como a lei prevê.

São cada vez mais as vozes que se insurgem contra esse comportamento, o qual manifestamente prejudica a nova administração, lesa os interesses de segurança americanos dentro e fora de portas e tende a atrasar a entrada em funções dos milhares que compõem departamentos governativos fundamentais. Esta atitude já seria condenável em tempos de relativa normalidade, mais grave se torna quando uma pandemia varre os recursos nacionais, fragmenta a sociedade, desarticula agências e expõe vulnerabilidades a inimigos variados. Para cúmulo da situação, Trump demitiu o secretário da Defesa pelo Twitter um par de dias após as eleições, dando o derradeiro sinal do absoluto caos em que mergulhou o país.

Por tudo isto, a experiência de Joe Biden é ainda mais bem-vinda, a que se junta o traquejo acumulado em anteriores administrações ou equipas de transição dos principais nomes que o acompanham. Tentar normalizar a política interna com excesso de novidade seria uma receita para o fracasso. Um voluntarismo mediático que poderia sair caro num contexto epidemiológico e político como este. É preciso memória histórica, conhecimento administrativo federal, noção clara das mensagens a passar. E um plano estratégico consolidado com condições de ter legislação aprovada no Congresso, percebido e apoiado por uma maioria larga da população.

À partida, os sinais que Biden dá são os certos para consolidar uma administração à altura deste momento histórico, mas as dúvidas mantêm-se sobre as condições para entrar em funções com capacidade operacional plena, por forma a pôr em prática o roteiro prioritário traçado: covid, recuperação económica, justiça racial e alterações climáticas. Na transição ou depois dela, é sobretudo o partido republicano que determinará as condições de governabilidade e normalização da política americana. Também por isso mais uma vez vos digo: a chave dos Estados Unidos da América não está nos democratas, mas na forma como os republicanos renascerem dos anos Trump. Pelo que temos visto, preferem a morte assistida.

Investigador universitário

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