Redes sociais. Apoiantes de André Ventura atacam Ferro Rodrigues e o canal Parlamento
Até outubro, o Canal Parlamento tinha uma página muito discreta no Facebook. O andamento dos trabalhos parlamentares não engajava multidões de adeptos nas redes sociais. Nos primeiros nove meses de 2019, entre gostos, comentários e partilhas, havia um total modesto de 522. Mas em outubro, depois das eleições legislativas, tudo mudou.
Em menos de três meses, o número de interações com aquela página oficial triplicou o registo dos nove meses anteriores: 1570. Por cada vídeo que a AR TV publica, há agora muito mais reações.
Isto foi, durante algum tempo, um enigma. Até se perceber que um grupo de apoiantes do Chega, identificados, e muitos perfis falsos (sem foto, sem amigos, que só publicam assuntos relacionados com o partido de André Ventura) elegeram o pacato Canal Parlamento para fazer política por outros meios que não os habituais.
É o próprio partido que anuncia, na sua página de Facebook, a hora a que está prevista a intervenção do deputado e publica o link da página do Canal Parlamento. O apelo surte efeito: "Nós queremos ouvir é quem nos defende!! Dr. Ventura!", "É bem verdade! CHEGA!", "é impressão minha ou estamos é todos à espera de ouvir o Dr. Ventura?". A estratégia do partido é clara: elogia o deputado, critica os restantes 229, e ainda se gaba da repercussão do feito: "Incrível como este direto subiu das 150 visualizações as 500 quando o Ventura falou", nota um dos comentadores. No final, o plenário da Assembleia da República de dia 4 de dezembro, "integralmente preenchido com declarações políticas" - ou seja, sem qualquer tipo de debate legislativo ou propostas -, teve mais de 900 comentários.
Para se ter uma ideia da estranheza deste número veja-se o que aconteceu ao post seguinte da mesma página, esse, sim, sobre um tema que desperta reações fortes: "Audição do bastonário da Ordem dos Médicos, sobre o caso de um bebé que nasceu no Hospital de Setúbal com graves malformações." Total: quatro gostos e um comentário.
É sempre assim. Pode haver audições polémicas - como as de Sandra Felgueiras, jornalista da RTP, e as da da diretora e do administrador da TV pública - e os seguidores do Canal Parlamento oscilam entre os zero e os quatro. Mas assim que André Ventura fala no plenário, os comentários e os gostos são às centenas.
Os funcionários que fazem a gestão da presença do Parlamento na internet aperceberam-se, evidentemente, do súbito crescimento das audiências logo no início da legislatura, revelando-se isso acima de tudo na página de Facebook ARTV - Canal Parlamento. E também cresceu exponencialmente o conteúdo racista, xenófobo, machista e homofóbico desses comentários. Em todos os debates quinzenais há alguém que acompanha, em direto, a publicação desses comentários - e os vais apagando sempre que forem considerados notoriamente insultuosos.
O modo de apagar comentários tem uma nuance: ficam invisíveis para toda a gente - menos para os seus autores (que assim não se apercebem de que não estão a ser lidos). A operação repete-se vezes sem conta em cada debate quinzenal.
O DN, em colaboração com o MediaLab do ISCTE, recolheu os dados desta página do Parlamento, com a ajuda de duas ferramentas de análise de conteúdos do Facebook (os programas CrowdTangle e Forsight Brandwatch). Os resultados são claros.
Entre os novos utilizadores muito ativos da página estão apoiantes reais do Chega, como André Dionísio, de Leiria, que praticamente só escreve no Facebook sobre André Ventura e o Movimento Zero das forças de segurança. No seu perfil tem uma fotografia com o deputado do Chega.
Outro dos comentadores é o ex-cabeça-de-lista do partido, também em Leiria, Luís Paulo Fernandes, que usa a página do Canal Parlamento para dar eco à mais recente campanha do partido: a queixa contra a repreensão dada a André Ventura pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, no debate de quinta-feira. Fernandes escreveu: "Tenho vergonha de privarem esses DIREITOS ao Dr. André Ventura."
A propaganda dos apoiantes do Chega contra Ferro Rodrigues chegou rapidamente a outra página do Facebook: o Grupo de Apoio a André Ventura (oficial). Ali, um dos apoiantes de Ventura, Rui Jorge Carrilho Delicado, cuja informação pessoal, e sobre o seu trabalho, é pública (embora o DN opte por não a divulgar), decidiu republicar uma notícia sobre Ferro Rodrigues, originalmente publicada há mais de 14 anos, e já desmentida pelos factos. Os termos usados para se referir ao presidente da Assembleia da República são estes: "Como se atreve o bácoro a pronunciar a palavra 'vergonha', se é coisa que ele não tem naquele focinho?" O DN opta por não divulgar o conteúdo concreto da mentira publicada, para não amplificar a sua difusão.
Só no grupo oficial de apoiantes de Ventura, esta peça de desinformação (que é grave e passível de originar um processo por difamação) foi partilhada 82 vezes e comentada de forma agressiva por vários utilizadores, que também podem ser indiciados por isso.
Outros grupos de desinformação no Facebook ajudaram a divulgar, ainda mais, esta campanha. A mesma referência errada sobre Ferro Rodrigues foi publicada, pelo menos, nos grupos "O Estadista - Pedro Passos Coelho", "A indignação e revolta", "Cidadania", "Não à corrupção. Queremos justiça em Portugal", "Corruptos e Ladrões. Cadeia com eles já!" e "Grupo de apoio ao juiz Carlos Alexandre".
Este último é um dos maiores (com mais de cem mil membros) e está referenciado pelo DN e pelos investigadores do MediaLab como o principal grupo de difusão de mentiras políticas em Portugal. Apesar de esta informação estar publicada, em Portugal e no último relatório da Democracy Reporting, o Facebook nunca tomou qualquer medida para conter os efeitos da manipulação propagandística daquele grupo.
Além dessas referências ao presidente da Assembleia da República, começaram também a ser publicados textos críticos sobre a sua filha, Rita Ferro Rodrigues. Segundo a análise do MediaLab, numa amostra de páginas de desinformação, Ferro Rodrigues foi o tema principal de 57 publicações em apenas 72 horas.
Mas nem só de difamação vive a resposta dos apoiantes do Chega. A repreensão de Ferro a Ventura na página do Canal Parlamento levou André Dionísio a partilhar no seu perfil privado uma petição pública que defende a "destituição do Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, por censura da liberdade de expressão ao Deputado André Ventura".
Ao mesmo tempo, vários perfis que parecem não corresponder a qualquer identidade real (porque não têm amigos, não usam fotografias identificáveis e só escrevem sobre política nas suas páginas, por exemplo) usam a página do Canal Parlamento para repetir, até à exaustão, o nome do partido e o do deputado.
Como explica o investigador inglês, especialista em desinformação, do Atlantic Council, Ben Nimmo, "as redes sociais são perfeitas para pequenos grupos que querem ser grandes". Por um lado, porque dão liberdade para manipular, criar contas falsas, exibir uma força popular que, na realidade, não têm. "Um grupo de dez pessoas que decidem gastar o seu tempo em plataformas e redes sociais podem espalhar tanto conteúdo que até parece ser um grande movimento social", exemplifica Nimmo.
Por isso, o Chega (que teve menos de metade dos votos do que o PAN e um terço dos do CDS...) tenta usar todos os meios ao seu dispor para parecer maior, e disso convencer mais pessoas.
Quem chegar à página do Facebook do Canal Parlamento talvez não saiba dos pormenores, mas repara que o Chega é o partido mais mencionado nos comentários que lá estão. Há 101 menções ao partido, geralmente elogiosas. Em comparação, só há, no mesmo período de tempo, 33 referências a "socialista", "socialistas" ou "PS" (e não são todas elogiosas), 19 a "PSD" e 16 a "Livre" ou "Joacine". E é essa distorção da importância relativa do partido que a campanha iniciada no Canal Parlamento pretende atingir.