Quinze projetos de lei, 48 audições, 42 pareceres. Eutanásia leva seis anos de discussão na AR
Quinze projetos de lei, 48 audições presenciais, 42 pareceres por escrito. Esta é a contabilidade de seis anos de discussão da despenalização da morte medicamente assistida na Assembleia da República, um dos processos legislativos mais longo dos últimos anos, que atravessa já três legislaturas. Ainda em curso: depois de nova aprovação na generalidade de quatro projetos de lei, em junho, as propostas estão agora em discussão na especialidade (artigo a artigo), sendo previsível que venham a resultar num texto único.
O tema voltará à agenda parlamentar no reinício da sessão legislativa, em setembro, e o conteúdo das propostas - muito semelhantes, uma resposta cirúrgica ao veto presidencial de novembro - deverá ainda sofrer ajustes. Em cima da mesa está a possibilidade de o diploma definir em concreto o tempo de reflexão desde o início do processo até à prática da morte medicamente assistida, bem como a obrigatoriedade de acompanhamento psicológico (que na versão atual é facultativo). Um cenário, que ficou em aberto na última reunião do grupo de trabalho que redigirá a proposta final, admitido pela deputada socialista Isabel Moreira, mas também pela Iniciativa Liberal e Bloco de Esquerda. Ambas foram preocupações deixadas pelo psiquiatra José Manuel Gameiro, há pouco mais de um mês, na última das 48 audições presenciais feitas pelos deputados desde que o tema começou a ser discutido na AR.
De acordo com a contabilidade feita pelos próprios serviços da Assembleia da República, entre audições a especialistas e pareceres pedidos a entidades como o Conselho Superior da Magistratura ou o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, houve um total de 90 pronúncias sobre o tema.
Quatro propostas chumbadas, cinco propostas aprovadas, um chumbo pelo Tribunal Constitucional, um chumbo do Presidente da República - poucos processos legislativos na Assembleia da República tiveram um historial tão diversificado.
A discussão parlamentar da morte medicamente assistida começou há já três legislaturas, após a entrega na Assembleia da República de uma petição com 8400 assinaturas a solicitar a despenalização da eutanásia. A petição, entregue em abril de 2016, seguiu-se a um manifesto do movimento cívico "Direito a morrer com dignidade" e, uma vez no Parlamento, deu origem à primeira ronda de audições com entidades como as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros, ou o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Nessa altura os deputados ouviram também várias personalidades ligadas sobretudo à área do Direito, caso de Jorge Reis Novais, Teresa Beleza, Mafalda Miranda Barbosa, Manuel Costa Andrade ou Luísa Neto.
A petição subiria a plenário a 1 de janeiro de 2017, mas a despenalização da morte medicamente assistida só seria levada a votos mais de um ano depois - a 29 de maio de 2018 -, através de projetos de lei apresentados por PS, Bloco de Esquerda, PAN e PEV. Seriam todos chumbados, mas o projeto socialista foi travado por apenas cinco votos. PS e BE apontaram, de imediato, à legislatura seguinte.
A despenalização da morte medicamente assistida viria a ser aprovada na generalidade, pela primeira vez, a 20 de fevereiro de 2020, com o projeto de lei do PS - novamente o mais votado entre os cinco apresentados - a recolher 128 votos favoráveis, 84 votos contra e doze abstenções. As propostas passaram então ao trabalho na especialidade, com nova ronda de audições, e que se prolongou por praticamente um ano: o tema voltou a subir a plenário apenas em janeiro de 2021, sob a forma de uma proposta única subscrita pelos cinco partidos proponentes. Aprovado em votação final global, o diploma seguiu para Belém e daí para o Tribunal Constitucional, de onde sairia com uma declaração de inconstitucionalidade.
Devolvido aos deputados, o documento seria reformulado nos pontos declarados desconformes à Constituição, um processo que se estendeu até novembro. Aprovado poucos dias antes da dissolução do Parlamento, o decreto da Assembleia seria novamente travado em Belém, desta vez com um veto político do Presidente da República. Já na presente legislatura, quatro partidos - PS, BE, Iniciativa Liberal e PAN - voltaram a apresentar projetos de lei, que estão agora novamente em sede de trabalho na especialidade. Pelo caminho ficaram dois projetos de lei a propor um referendo à eutanásia (o primeiro apresentado por deputados do PSD, o segundo, já na atual legislatura, pelo Chega).
Nesta nova fase, os deputados ouviram dois especialistas e pediram parecer por escrito a várias confissões religiosas (o Chega propôs audições presenciais, que foram recusadas, dado que as confissões religiosas já se tinham pronunciado). Sem surpresa, as três confissões que responderam até agora manifestam-se contrárias à eutanásia. A Comunidade Israelita de Lisboa sustenta que "o valor da vida humana é absoluto e não relativo ou vinculado a fatores como idade, saúde ou dor". A União Budista Portuguesa qualifica a discussão como "precoce" e diz ser da "maior importância o estudo e inclusão de métodos naturais, em que o paciente decide não prolongar a vida, tais como abdicar dos meios de suporte de vida, quando o caso, ou de alimentos, que sendo indolores, não requerem assistência suplementar". Já a Igreja Adventista do Próximo Dia sustenta que a "legalização da liberdade de alguém pedir a sua própria morte é a admissão, enquanto sociedade, de que falhámos".
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