Dois vetos depois e sem "doença fatal", eutanásia volta ao Parlamento

Votação PS, IL, BE e PAN avançam com projetos de lei para ultrapassar o veto político de Marcelo Rebelo de Sousa. Todos deixam cair a expressão "doença fatal", depois de o Presidente da República ter dito que esta seria uma "mudança considerável".

A despenalização da morte medicamente assistida volta hoje à Assembleia da República, com o debate e votação de quatro projetos de lei que visam ultrapassar o veto de Marcelo Rebelo de Sousa, que em novembro último, poucos dias antes da dissolução do Parlamento, vetou politicamente o diploma.

Com o debate e votação desta tarde, um agendamento potestativo (de marcação obrigatória) pedido pelo PS, o tema da morte medicamente assistida atravessa já três legislaturas. Foi pela primeira vez a votos em maio de 2018, altura em que o projeto socialista - o mais votado dos quatro que estavam então em cima da mesa - foi chumbado por cinco votos. Voltou a plenário na legislatura seguinte, em fevereiro de 2020, altura em que foram aprovados cinco projetos de lei que viriam a dar origem a um texto único, que passou em votação final global em janeiro de 2021. Um texto que Marcelo Rebelo de Sousa enviou para o Tribunal Constitucional (TC), que se pronunciou pela inconstitucionalidade de algumas normas.

Novamente aprovado em novembro do ano passado, o diploma da morte medicamente assistida esbarrou então no veto político do Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa invocou "contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida", dado que o texto usava, alternadamente, os conceitos de "doença fatal", "incurável" e "grave". O chefe de Estado pedia ainda que, a "deixar de ser exigível a doença fatal", a Assembleia da República reponderasse a "alteração verificada", que qualifica como uma "mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação, no contexto da sociedade portuguesa", face à primeira versão do diploma.

Acontece que foi exatamente isso que os partidos fizeram: nos quatro projetos de lei que foram apresentados o que desaparece é precisamente a expressão "doença fatal", permanecendo no texto o conceito de "doença grave e incurável", transversal às propostas do PS, BE e IL. Já o PAN usa a mesma expressão, mas em alternativa: "doença grave ou incurável".

Além das propostas para ultrapassar o veto do Presidente da República, o Parlamento debate e vota também uma proposta do Chega para referendar a despenalização da morte medicamente assistida, uma iniciativa que tem chumbo garantido. Quanto às restantes, os deputados do PS e PSD mantêm a liberdade de voto das anteriores votações que, recorde-se, terminaram ambas com uma votação favorável acima dos 130 votos (a aprovação exige o voto mínimo de 116 deputados).

No dia em que o tema volta à discussão, o DN relembra o que está em causa nas propostas que vão hoje a votos (que são praticamente iguais entre si, mantendo toda a estrutura do diploma vetado em novembro, com exceção de algumas alterações introduzidas no texto da IL).

Quem pode pedir a morte medicamente assistida e em que circunstâncias?

Podem aceder à morte medicamente assistida os cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional, maiores de idade, numa das seguintes situações: ou sofrendo de "lesão definitiva de gravidade extrema"; ou de "doença grave e incurável". Duas exigências que não são, portanto, cumulativas. Num outro artigo das propostas é exigido - aqui sim, para ambos os casos - que o requerente esteja também numa "situação de sofrimento intolerável". A única dissonância que há entre os vários textos, nesta matéria, é que o PAN propõe "doença grave ou incurável", uma fórmula com um âmbito mais alargado.

Como se define uma "doença grave e incurável"?

A definição é comum a todos os textos: é uma "doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade".

E "lesão definitiva de gravidade extrema"?

É uma "lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa". Esta definição - que não exige doença fatal - permite integrar no âmbito da lei casos como o do espanhol Ramón Sampedro ou do português Luís Marques, ambos tetraplégicos (e os dois já falecidos, por recurso à morte medicamente assistida, no caso do cidadão português, recorrendo a uma clínica na Suíça), mas não com uma doença que possa ser qualificada como fatal.

Como se concretiza a morte medicamente assistida?

Através do suicídio medicamente assistido, definido como a "autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica". Ou através da eutanásia: a "administração de fármacos letais, pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito".

Como decorre o processo?

Para abrir o processo clínico, o doente que requer a morte medicamente assistida tem de fazê-lo através de documento escrito, dirigido a um médico "orientador" (escolhido pelo doente). A este clínico caberá emitir um "parecer fundamentado" sobre se o doente cumpre os requisitos exigidos legalmente, e prestar ao doente toda a informação e esclarecimentos "sobre a situação clínica que o afeta, os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos, e o respetivo prognóstico". Depois deste passo, e sendo o parecer favorável, o doente deve reiterar, por escrito, a vontade de aceder à morte medicamente assistida. Na fase seguinte é consultado outro médico, obrigatoriamente "especialista na patologia que afeta o doente", e cujo parecer confirma ou não que estão reunidas as condições exigíveis, o "diagnóstico e prognóstico da situação clínica e a natureza grave e incurável da doença ou a condição definitiva e de gravidade extrema da lesão". Se também este parecer for positivo o doente deve reiterar, novamente por escrito, a sua vontade.

É feita uma avaliação psicológica do doente?

É "obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria" quando se verifique uma de duas situações: "o médico orientador e/ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida revelando uma vontade séria, livre e esclarecida; ou quando o "médico orientador e/ou o médico especialista admitam que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões". Confirmada qualquer uma destas situações pelo médico especialista em psiquiatria, o processo é cancelado. Se isso não acontecer, o doente deve reiterar por escrito a sua vontade. O processo clínico deve então ser remetido à Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA), que tem cinco dias para se pronunciar sobre o cumprimento dos requisitos.

E se o parecer de um dos médicos for desfavorável?

O parecer desfavorável de qualquer um dos clínicos consultados ou da CVA implica obrigatoriamente o cancelamento de todo o processo. Mas, em qualquer das fases, uma vez informado dessa decisão e dos seus fundamentos, o doente pode reiniciar o processo, abrindo novo processo clínico. O doente também pode, por iniciativa própria e a qualquer momento, desistir do processo.

Quem decide o método?

Chegada a fase da concretização, o médico orientador, "de acordo com a vontade do doente, combina o dia, hora, local e método a utilizar para prática da morte medicamente assistida". É ao próprio doente que cabe decidir se opta pelo suicídio medicamente assistido ou pela eutanásia. Esta decisão também deve ser consignada por escrito.

E se o doente ficar inconsciente?

O "procedimento é interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão".

Onde se realiza?

Em estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, do setor social ou privado. O doente pode escolher outro local - por exemplo, o domicílio - mas essa escolha fica condicionada à avaliação do médico orientador.

É permitida a objeção de consciência?

Sim. De acordo com os projetos "nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou ajudar ao ato de morte medicamente assistida de um doente se, por motivos clínicos, éticos ou de qualquer outra natureza, entender não o dever fazer, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos os que o invoquem".

Os profissionais de Saúde são favoráveis?

A Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros são contra a despenalização da morte medicamente assistida. Uma posição assumida nas discussões anteriores deste tema e já reiterada em relação ao projeto de lei apresentado pelo Bloco de Esquerda. Tendo sido o primeiro dos quatro a ser apresentado nesta sessão legislativa, já conta com um parecer das duas ordens, novamente em sentido contrário à despenalização.

A ser aprovado, o diploma vai já para Belém?

Não. Previsivelmente, isso só deve acontecer na próxima sessão legislativa, a partir de meados do mês de setembro, dado que o processo legislativo está a ser reiniciado, com a consulta de várias entidades. Os vários partidos podem também solicitar novas audições. Uma vez terminado o trabalho na especialidade (artigo a artigo), a proposta terá ainda de ir a votação final global. Dado que o texto é alterado, o Presidente da República mantém os poderes em pleno: pode mandar para o TC, vetar politicamente ou promulgar.

susete.francisco@dn.pt

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