Provedora atribui mais de 800 mil euros de indemnização à família de Ihor

A decisão da Provedora de Justiça teve em conta o "tratamento cruel, desumano e degradante" a que o cidadão ucraniano foi sujeito sob custódia do SEF. Prevê o pagamento imediato de 712 950 euros e ainda uma pensão para cada um dos filhos enquanto estudarem, com limite nos 28 anos.
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A família de Ihor Homeniuk, que morreu quando estava sob custódia do SEF, no aeroporto de Lisboa, vai receber do Estado português uma indemnização imediata de 712 950 euros. Acresce uma pensão para os dois filhos enquanto estiverem a estudar, num total que o advogado da família calcula em 834 mil euros, valor que se aproxima do milhão do pedido de indemnização civil que tinha sido apresentado ao tribunal em nome da viúva, Oksana Homeniuk, e dos filhos Veronika e Oleg, de 14 e nove anos.

O valor de 712 950 euros inclui também 50 mil euros para o pai de Ihor, Yaroslav (a mãe tinha morrido um mês antes da viagem do filho para Portugal).

"Com esta decisão, apesar de não trazer de volta Ihor, Oksana revelou-se um pouco aliviada quanto às preocupações que tem sobre a subsistência e a educação dos seus filhos", disse ao DN o advogado da família, José Gaspar Schwalbach.

O valor foi calculado pela Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, na sequência de uma Resolução de Conselho de Ministros do passado dia 14 de dezembro, que também determinou que seria o orçamento do SEF a suportar a despesa.

Segundo o Ministério Público, Ihor Homeniuk foi vítima de violentas agressões de três inspetores do SEF, tendo morrido a 12 de março, dois dias depois de ter chegado ao aeroporto Humberto Delgado e de lhe ter sido recusada ilegalmente a entrada. Os três inspetores - Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa - estão acusados de homicídio qualificado, com a alegada cumplicidade ou encobrimento de outros nove inspetores do SEF, estando ainda em investigação, num processo autónomo, os crimes de falsificação de documentos, relacionados com o encobrimento.

Na decisão, a que o DN teve acesso, Maria Lúcia Amaral refere que "os elementos já conhecidos permitem concluir, em termos objetivos, pela verificação de ações e omissões que correspondem ao tratamento cruel, desumano ou degradante. Quer pelas ações cuja prática se encontra estabelecida, quer pela omissão de cuidados no extenso período que antecedeu a morte, é possível concluir por um intenso grau de sofrimento, prolongado no tempo."

Como o DN noticiou, Ihor teve uma morte lenta e agonizante, segundo explicou à PJ, logo a 14 de março - dois dias depois da morte -, o médico legista que fez a autópsia. O facto de ter várias costelas partidas e de ter sido deixado algemado, com as mãos atrás das costas, e em decúbito ventral, ou seja, de barriga para baixo, impediram gradualmente o funcionamento do aparelho respiratório. A morte sobreveio 10 horas depois das alegadas agressões, que terão ocorrido entre as 8h15 e as 8h35 da manhã.

A Provedora de Justiça sublinha que "este sofrimento foi decerto agravado pelo desconhecimento de outras línguas, que não o ucraniano e o russo, com consequente dificuldade de compreensão do que se passava".

Recorde-se que o Ministério Público na acusação viu a recusa de entrada como ilegal por não ter existido presença de tradutor certificado durante a entrevista do ucraniano, para a qual serviu de intérprete uma inspetora do SEF que fala russo, e que para o procurador Óscar Ferreira está ferida de parcialidade (chegou mesmo a pôr em dúvida que as respostas constantes na transcrição da entrevista, e segundo as quais o inquirido teria dito que vinha para Portugal trabalhar, ficando em casa de um familiar e mostrando trazer 350 euros consigo, sejam as dadas por Ihor; a viúva deste garante que o marido tinha consigo 600 euros e que não vinha a Portugal para trabalhar mas para inquirir de possibilidades de trabalho).

Também a Inspeção Geral da Administração Interna, no seu inquérito às circunstâncias da morte de Ihor, destaca "o desvalor atribuído pelos inspetores do SEF e, em especial, pelo então Diretor da Direção de Fronteiras de Lisboa, sobre a necessidade de garantir uma comunicação efetiva com os cidadãos que não falem a língua portuguesa".

A IGAI assinalou que, em relação a nacionais que não falem os correntes inglês ou francês, o SEF apenas tinha "soluções de recurso": tradutores, constantes numa determinada lista telefónica, que não se encontravam nas instalações do SEF; outros inspetores do SEF que tenham alguns conhecimentos na língua em questão - no caso de Ihor foi chamada uma inspetora com conhecimentos derusso; outros passageiros estrangeiros, que possam ajudar na tradução; a aplicações disponíveis para telemóvel (tradutor do google).

Para Maria Lúcia Amaral, "estando a vítima sob custódia da autoridade policial, certamente que o seu sofrimento foi exasperado pela dissipação de qualquer grau de confiança que pudesse depositar nos poderes públicos e ulterior desespero provocado pela convicção da improbabilidade de oportuno socorro".

Na fixação dos valores, a Provedora de Justiça salientou que "é primeiramente de considerar, uma vez mais, as circunstâncias que conduziram à morte, em particular a frustração de todas as expectativas quanto à salvaguarda dos direitos fundamentais da vítima pelas instituições portuguesas, mas também pelo afastamento geográfico e linguístico".

No entender de Maria Lúcia Amaral "todas estas dimensões têm de ser consideradas, mesmo quando apenas se venham a concretizar, como será plausivelmente o caso dos filhos da vítima, em momento posterior, como aqui posterior e mais arrastada no tempo será a perceção da ausência da vítima e sofrimento daí decorrente".

Assim, foi atribuído ao dano "perda da vida" o valor de oitenta mil euros e ao sofrimento ante mortem 100 mil euros, sendo esta soma, correspondente aos "danos próprios da vítima", dividida em parte iguais pela viúva e dois filhos (60 mil euros para cada), como herdeiros.

Seguem-se os danos de terceiros, compensados a título próprio e individual., estabelecendo-se 56 mil euros para a viúva e cada um dos filhos, e 50 mil para o pai de Ihor. Explica a provedora que "em ambos os casos os valores estabelecidos têm como horizonte o máximo adotado em procedimentos similares, superando-o."

Aos 116 mil euros assim atribuídos à viúva e a cada um dos filhos acresce a compensação por danos patrimoniais. Estes incluem a despesa com a cremação e trasladação das cinzas - 2200 euros, que Oksana Homeniuk despendeu - e o cálculo da "contribuição que a vítima prestava, em termos materiais, para as despesas do agregado familiar".

Para este cálculo, a provedora aceita as referências de proventos que lhe foram transmitidas pelo advogado de Oksana, José Gaspar Schwalbach, estabelecendo-os em 18 mil euros por ano. Retirando a estes um quarto, correspondente às despesas pessoais da vítima, divide o remanescente - 13500 euros - pelos três membros do agregado familiar.

Estas contas são feitas tendo em consideração a esperança média de vida: no caso de Oksana, que tem 38 anos, "considera-se como horizonte de pagamento o ano de 2067 inclusive"; nos dos filhos, "considera-se existir direito a pagamento até ao final do ano em que completam 18 anos". Se "ocorrer prosseguimento dos estudos ou de formação profissional, o interessado manterá direito a essa prestação, sob a forma de pagamento de renda anual, enquanto perdurar essa situação, mas com o limite do ano em que tiver completado 28 anos."

No caso de Oksana, efetua-se um cálculo relativo a três períodos, iniciando-se em 2020: um primeiro de 15 anos, até a filha perfazer 28 anos, um segundo de cinco, até o filho chegar à mesma idade, e um terceiro de 28 anos, correspondente ao remanescente da esperança média de vida. A soma correspondente é de 262125 mil euros, a pagar de imediato. Também a pagar de imediato é "o produto da capitação relevante em cada ano até ao final daquele em que completarem 18 anos", ou seja, 16875 euros no caso da filha e 33750 euros no do filho.

Estes valores podem variar caso algum dos membros do agregado deixe de ter direito ao recebimento, passando os restantes a receber uma parcela maior.

Tudo somado, a quantia a pagar de imediato é 712 950 euros. A este valor poderá acrescer, como explicado, o pagamento de prestações anuais aos filhos de Ihor até perfazerem 28 anos, desde que continuem a estudar.

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