"Pensei que ia perder a minha filha". Os casos graves pós-covid nas crianças
As horas de aflição vividas naquele domingo dificilmente vão apagar-se da memória de Constância Serrão. "Pensei que estava a perder a minha filha. Sentia-a a despedir-se de mim", conta, sem filtros que possam adornar emoções ainda bem vivas no dia-a-dia de quem sentiu o impacto da covid-19 onde ele mais pode doer a uma mãe. A 23 de janeiro, Matilde, de 10 anos, era transferida de urgência do hospital de Famalicão para o São João, no Porto, onde haveria de ficar em coma quase uma semana, com síndrome inflamatório multissistémico pediátrico (SIM-P).
Embora as crianças sejam o grupo consensualmente considerado de menor risco face à covid-19, com menos probabilidade de desenvolverem doença grave e de propagarem o vírus, isso não é por si só garantia de que não há motivos de preocupação com os mais pequenos. "Por vezes, em alguns casos raros, as consequências mais graves chegam semanas depois (cinco a seis) de estarem infetados com o SARS-CoV-2, ao desenvolverem esse síndrome que provoca uma desregulação imunológica que leva a criança a entrar em choque e lhe causa risco de morte", explica Margarida Tavares, pediatra do hospital de São João, onde Matilde foi um dos casos recentes de crianças internadas em cuidados intensivos devido a essa doença rara pós-covid.
O desenvolvimento da pandemia entre o final de 2020 e o início deste ano, acelerado pelo combustível das novas variantes mais contagiosas que então passaram a circular (como a inglesa), levou a que aumentassem também os casos de crianças com SIM-P. No São João, onde na primeira vaga da pandemia não tinha havido qualquer registo de um caso destes, o impacto fez-se sentir após o Natal. Desde então, o maior hospital da região Norte teve "14 situações graves e muito graves" de crianças e jovens internados, "dos cinco aos 17 anos", revela Margarida Tavares.
Até agora, todas sobreviveram. E, embora a evidência científica disponível aponte para possíveis consequências de longo prazo (por exemplo, a nível cardíaco), as crianças que passaram pelos cuidados intensivos do São João "têm tido, até agora, recuperação total", destaca a médica pediátrica: "Ao fim de um mês já não precisam de terapêuticas e ao fim de dois fazem a vida normal."
DestaquedestaqueNo São João, onde na primeira vaga da pandemia não tinha havido qualquer registo de um caso destes, o impacto fez-se sentir após o Natal. Desde então, o maior hospital da região Norte teve "14 situações graves e muito graves" de crianças e jovens internados, "dos cinco aos 17 anos", revela Margarida Tavares.
Com a pequena Matilde, de Famalicão, também tem sido assim, conta a mãe, com a alegria e o alívio de ver a filha recuperar "assim, de um momento para o outro", depois do "maior susto" da sua vida. "Foi uma prova que deus me deu", acredita Constância, lembrando a recomendação da equipa médica que a tinha recebido na urgência do São João, naquele domingo: "Agarre-se àquilo em que tiver mais fé."
Matilde teve alta do hospital, depois de uma semana na UCI e outra em recobro na enfermaria, a 5 de fevereiro. No dia seguinte, "quis logo voltar a assistir às aulas" e já faz uma vida ativa normal. "Os exames que fez na última consulta não mostram qualquer sequela, está tudo bem, mas vai continuar a ser seguida em consultas ao longo de um ano", explica a mãe, esperançosa de que o pior, efetivamente, já tenha passado. Até porque a aflição continua bem presente na memória.
Tudo começou a 19 de janeiro, uma terça-feira. No domingo anterior, mãe e filha tinham ido fazer uma caminhada e Constância recorda-se até de um pedido especial da filha: "Disse-me que gostava de tirar uma fotografia no meio da estrada." Matilde "nunca teve qualquer doença grave", nem tinha qualquer fator de risco que pudesse sugerir um alvo mais fácil. "Sempre foi uma menina muito saudável e muito alegre", assegura a mãe. Nessa terça-feira, dois dias depois da caminhada, Matilde acordou com febre. "Uma febre ligeira, 38º, mas não tinha sintomas de nada". Nesse dia, "ficou em casa, não foi à escola [ainda não tinham sido encerradas]". Na noite seguinte, a menina começou a piorar rapidamente.
"Chegou aos 40º de febre e fui com ela para o hospital de Famalicão. Como lhe doía muito a barriga, fizeram-lhe um exame à urina e detetaram uma infeção urinária. Voltámos para casa com um antibiótico". Mas Matilde não melhorou. Pelo contrário. "Na noite de 5ª para 6ª feira piorou. Já lhe doía a barriga e o pescoço". A mãe levou-a então a um consultório privado, onde sugeriram "que poderia ser apêndice". O instinto maternal levou Constância a voltar às urgências do hospital de Famalicão.
DestaquedestaqueMatilde "nunca teve qualquer doença grave", nem tinha qualquer fator de risco que pudesse sugerir um alvo mais fácil. "Sempre foi uma menina muito saudável e muito alegre", assegura a mãe.
"Ela não aguentava as dores". No hospital voltaram a fazer-lhe o teste à covid, "mas deu negativo". Matilde fez também TAC"s à barriga e à cervical: "Nada. Os médicos já não sabiam o que fazer." Na madrugada de sábado para domingo, Matilde chegou aos 41º de febre. Constância recorda a angústia: "Pensei que estava a perder a minha filha. Ela só reagia à medicação uns cinco minutos e voltava a ir abaixo. As fezes eram verdes, os vómitos castanhos... nunca tinha visto nada assim."
"É uma doença pós-covid, e esta sim de extrema gravidade para as crianças. São casos muito raros, mas que põem em causa a vida das crianças", explica a pediatra Margarida Tavares. "Aqui só tivemos casos destes na segunda onda. Como é uma doença muito rara, tem de haver, do ponto de vista epidemiológico, muitos casos na comunidade para haver um caso SIM-P nas crianças", refere a médica do São João.
Foi o que aconteceu no final do ano passado, recorda. "Com o aumento dos casos que se deu por altura de novembro, sabíamos que havia a possibilidade de cinco a seis semanas depois, que é quando se manifesta esta síndrome, começarmos a receber algum caso grave", diz Margarida Tavares. E assim foi. "Desde o natal já tivemos 14 casos destes, graves ou muito graves. Crianças que ficam em situações de imunodepressão gravíssimas, entram em choque, com falência de vários órgãos, e ficam em risco de morte", descreve a pediatra, que aponta "algumas semelhanças com a doença de Kawasaki", que já era conhecida da ciência - "mas esta é uma nova doença, não há dúvidas", sublinha.
Uma doença que atingiu Matilde e a levou a ser transferida de urgência para o São João naquele domingo, 23 de janeiro, depois de um novo teste ter envidenciado a presença de anticorpos. "Os médicos acham que ela esteve assintomática muito tempo", conta a mãe. "Ficou em coma quase uma semana", lembra Constância, cuja angústia aumentou por não ter podido ficar com a filha.
DestaquedestaqueA pediatra aponta "algumas semelhanças com a doença de Kawasaki", que já era conhecida da ciência - "mas esta é uma nova doença, não há dúvidas", sublinha.
"O pior eram as noites. Punha o meu telemóvel em silêncio com receio de ser acordada com uma má notícia", recorda Constância Serrão. Mas as notícias chegaram boas. Depois de uma primeira tentativa que não correu bem para retirarem o ventilador a Matilde, ao fim de quase uma semana a menina despertou e reagiu bem. "Nem os médicos conseguem explicar como recuperou tão bem", sorri por fim a mãe.
Os casos como o de Matilde chegaram então à urgência pediátrica do São João nos últimos três meses, obrigando a um nível de alerta diferente do que tinha acontecido até então. Na primeira vaga da pandemia, recupera Margarida Tavares, "havia mais medo, mais preocupação" entre os pais e na comunidade. "Tivemos muitas assistências, chegámos a ter mais de 100 crianças em ambulatório, com sintomas ligeiros, sem necessidade de internamento".
Nessa altura, para as crianças (e adultos) internadas "a alta era dada só após dois testes negativos e ao fim de 14 dias", recorda a pediatra. Tempos em que a comunicação com os pais e família era tão ou mais importante do que o próprio acompanhamento clínico. "Os pais tinham muito medo. Para eles, o contacto telefónico era muito tranquilizador."
De resto, o hospital acionou logo nessa primeira fase um "serviço social" que permitiu "resolver problemas sociais complexos". "Encontrámos situações muito complicadas a nível sócio-económico", revela a médica, dando o exemplo de "crianças em isolamento que não tinham quem lhes levasse coisas básicas". "Conseguimos evitar alguns internamentos por motivos sociais". Além disso, refere, "o serviço de apoio psicológico, liderado pelo Dr. Paulo Almada, teve um papel importantíssimo" junto das crianças acompanhadas, "algumas com casos de familiares que morreram com covid, outras que tinham os pais em cuidados intensivos... enfim, casos psicologicamente pesados para as crianças".
Em termos clínicos, muitos dos internamentos, diz Margarida Tavares, eram "aquilo a que costumamos chamar, a brincar, de covid no nariz". E explica: "Crianças internadas não propriamente pela doença covid, mas sim porque é portadora de covid. Ou seja, tinham outro motivo para internamento, mas também acusaram positivo no teste PCR à entrada. E isso obriga a internamento em estruturas próprias para covid." O aumento progressivo desses casos obrigou a "revoluções diárias" na ala pediátrica. "Mudanças hora a hora, dia a dia. Tivemos mais de 50 internados na área covid".
Entretanto, a terceira vaga da pandemia trouxe os casos mais sérios com ela. E isso fez-se notar também na pediatria do São João. Com o intervalo de cinco a seis semanas que a SIM-P pode levar a manifestar-se em crianças que tiveram contacto com o vírus, ainda é cedo para se pensar que a redução dos casos diários em fevereiro já permite alívios. E os pais devem ficar atentos a sintomas como febre alta e persistente, diarreia e dor abdominal, erupções cutâneas, cefaleia e, em alguns casos, manifestações cardiológicas que podem atingir crianças e jovens.
DestaquedestaqueEm termos clínicos, muitos dos internamentos, diz Margarida Tavares, eram "aquilo a que costumamos chamar, a brincar, de covid no nariz". E explica: "Crianças internadas não propriamente pela doença covid, mas sim porque é portadora de covid
Para a mãe de Matilde, com a filha já recuperada em casa, as preocupações são agora outras: ultrapassar o trauma e as incertezas sobre o futuro. "Os médicos dizem que ela está bem. E ela não ficou com nenhum trauma, nenhum receio, fala abertamente de tudo e está com muita vontade de regressar à escola presencial. Eu é que não sei se estou preparada para que ela volte à vida normal", confessa Constância, que, no dia em que pôde voltar a fazer uma pequena caminhada com a filha, registou a fotografia que partilha com o DN nestas páginas: "Há um mês pensei que a perdia, agora tenho-a de volta"