Irá deixar de ser notícia ou mesmo ponto de discussão. Filmes realizados por mulheres terão de fazer parte da norma e não causarem espanto, mesmo quando surgem como vaga, como acontece neste período. A pergunta agora a colocar no ar é se há uma casualidade de nos últimos Óscares a vencedora ter sido uma mulher e em Cannes e Veneza o ouro ter igualmente para realizadoras....Forçosamente, ainda é cedo para começar a sentir um efeito direto mas uma nova mentalidade resultante do #MeeToo começa a fazer-se sentir..Só esta semana estamos a assistir a uma coincidência ou um fenómeno de casualidade que traz uma série de filmes dirigidos por mulheres, todos eles - e isso é o mais significativo - com um novo feminismo na câmara. Olhamos para O Poder do Cão, de Jane Campion, gostando mais ou menos, e sentimos em todos os fotogramas um verdadeiro poder de ponto de vista feminino. O que é isso do "ponto de vista feminino"? A pergunta pode ser para um milhão de dólares mas é algo que se sente através de pequenos gestos, a partir de detalhes de uma sensibilidade muito própria. No caso de Campion, há momentos, sobretudo quando se filma um gesto erótico, em que sentimos que há uma espécie de reflexo invertido de um certo jogo lúdico de O Piano, filme que lhe deu a Palma de Ouro ex-aequo com Adeus, Minha Concubina em 1993. O seu cinema pode ter mudado e ficado menos instintivo mas é plausível a teoria que houve aqui uma prospeção nostálgica de filmar na primeira pessoa um imaginário do desejo, mesmo que desta feita a história de amor esteja ligada à atração entre um homem e um adolescente..No caso da cineasta neozelandesa, O Poder do Cão, esta semana a chegar à Netflix, é também o regresso às luzes da ribalta. Além de não filmar desde Bright Star- Estrela Cintilante, de 2009, Campion entregou-se a encomendas televisivas e afastou-se de Hollywood. Para já, entrou diretamente no patamar dos favoritos da temporada dos prémios e em Veneza venceu o Leão de Prata, tendo perdido o ouro para uma colega francesa, Audrey Diwan com O Acontecimento, drama sobre um aborto ilegal na França dos anos 1960 (a sua estreia entre nós está marcada para janeiro após uma antestreia no Leffest)..YouTubeyoutubehttps://www.youtube.com/watch?v=XqrxrU84f-0.Em Hollywood, os efeitos do alarido da vitória da sino-americana Chloé Zhao em Nomadland- Sobreviver na América, vão fazer-se notar num futuro próximo, mas não deixa de ser relevante o timing de Eternals, da mesma Zhao ter sido lançado uns meses a seguir. E se pensarmos estritamente em cinema americano o calendário tem para breve A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal, obra belíssima sobre os encargos da maternidade e um blockbuster chamado Matrix Resurrections, continuação da saga Matrix, realizado por Lana Wachowski..Ainda assim, filme bandeira de um novo feminismo caucionado por Hollywood pode ser Ferida, de e com Halle Berry. A atriz oscarizada por Monster"s Ball estreia-se na realização com uma obra em que exalta os poderes físicos das lutadoras de luta livre profissional numa história que quer ser um manifesto Rocky no feminino. Projeto de vaidade ou explosão de homenagem ao poder feminino? A primeira hipótese é a mais credível....E voltando a olhar para as estreias da semana, há um outro filme com um registo de fábula feminina, As Irmãs Macaluso, de Emma Dante, novíssima voz de um cinema italiano lírico e cheio de novos processos inventivos..Em França, depois do caso Titane, de Julia Ducournau, Palma de Ouro em Cannes e a escolha oficial para a candidatura ao Óscar, a vaga feminina leva também a uma discussão de género nas artes. Mas é curiosíssimo o caso de Valérie Lemercier, comediante e atriz que volta a realizar em A Voz do Amor, "biopic" bizarro de Celine Dion. Este objeto inclassificável também é outra das estreias fundamentais da semana depois de em França já estar a bater recordes de bilheteira..De lamentar apenas que em Portugal ninguém resgate o cinema feminista de Iciar Bolaín, em especial este novo Maixabel, gigante sucesso de crítica e de público em Espanha. A dor das mães das vítimas da ETA filmada com um tom trágico...feminino....dnot@dn.pt