O homem que está à frente do museu onde coexistem um vibrador sueco, um sarcófago egipcio e uma vacina russa

Conversa com João Neto, historiador e museólogo.
Publicado a
Atualizado a

Alguns chamam-lhe Palacete de Santa Catarina, o mesmo nome do miradouro aqui ao pé, outros dizem antes Palacete Alfredo da Silva, em alusão ao magnata da CUF que foi em tempos seu proprietário. Quem me explica todos estes pormenores sobre o belo edifício onde hoje está instalado o Museu da Farmácia (polo de Lisboa) é o historiador e museólogo João Neto, que conheço há alguns anos e que, hiperativo, me costuma enviar SMS sempre que acontece algo no mundo que está associado a uma peça do seu museu.
Ainda há dias, quando morreu John Le Carré, me avisou que tinha peças ligadas a O Fiel Jardineiro, filme sobre gigantes da farmacêutica inspirado na obra homónima do romancista britânico. Semanas antes, quando se soube da morte de Sean Connery, o alerta foi da existência de um frasco e de uma proveta usados como adereços em Medicine Man, filme que em português recebeu o título de Os Últimos Dias do Paraíso, e fizemos notícia no DN. Mais incrível ainda foi João ter-me contactado em início de maio, ainda na primeira vaga da pandemia, para dizer que já tinha material sobre a covid-19, como o gel feito por um farmacêutico português emigrante em França e que foi oferecido pela jornalista Rosário Salgueiro, da RTP. "Não esqueças a máscara com bico, do século XVII ou XVIII", sublinha João, referindo-se a uma peça em metal que o museu tem e que, cheia com ervas aromáticas, era usada como proteção contra as pestes.

O nosso brunch é no restaurante que pertence ao museu e que leva por nome Pharmacia. Está aberto todos os dias para almoço e jantar (quando as regras de confinamento permitem) e também oferece pequeno-almoço. A decoração é soberba, material médico enquadrado por uma arquitetura requintada, mas a ementa consegue surpreender também. No caso de quem queira iniciar aqui o dia, pertíssimo do Chiado e com o rio Tejo à vista, recomendo um prato designado por "Antioxidante" e que consiste em dois ovos mexidos, molho de tomate, manjericão, beringela, sementes e rebentos. Um sumo de laranja, acabado de espremer, vai bem a acompanhar. "É a chef Felicidade que gere o Pharmacia. E muitas vezes entra aqui quem pensa que já está no museu", diz João entre risos. "Também já houve quem quisesse comprar medicamentos no próprio museu", acrescenta o historiador, em tom divertido.

João ficou-se pelo café e por uma torrada. Mando cumprimentos à Paula - Paula Basso -, mulher do João e diretora adjunta do Museu da Farmácia. Recordo-me de um dia os dois terem-me feito uma visita guiada, para servir de base a uma reportagem, e o título acabou por ser um pouco provocador, graças a uma frase dele: "Há aqui desde os vasos para pó de múmia até ao vibrador terapêutico sueco". Sim, a diversidade de peças é imensa. Também há, por exemplo, estojos de saúde de astronautas da NASA e de cosmonautas russos, que estiveram mesmo em uso no espaço.

A história do casal é curiosa: ambos são de Vila Franca de Xira (ela filha adotiva da terra, pois nasceu em Lisboa), começaram lá a namorar muito jovens, depois Paula veio estudar História para a capital e João, nascido em 1965, acabou por se juntar mais tarde como caloiro do mesmo curso na Universidade Lusíada. "Andei na Lusíada entre 1986 e 1990", recorda João. E volto a um tema que já conversámos antes, o quase de certeza nos termos cruzado um dia na rua da Junqueira, pois em 1989 eu entrei em Comunicação Social no ISCSP, uns 500 metros à frente da Lusíada, se alguém caminhar de Belém para Alcântara.

João e Paula têm dois filhos adultos, Catarina e João Miguel. E foi a mulher a fazer a sua ligação ao mundo das farmácias, pois o pai de Paula, Salgueiro Basso, quando os dois casaram, era dirigente da Associação Nacional de Farmácias (ANF) e um dos entusiastas, com João Cordeiro, da criação do museu.

"Ainda hoje a família é dona da Farmácia Central em Vila Franca de Xira", esclarece o meu anfitrião, que gosta de se assumir monárquico e sportinguista e que admite estar curioso com a ilustração que André de Carrilho irá fazer. Em maio, quando foi entrevistado pelo DN, surgiu na fotografia com o cão Bentley e foi um grande sucesso nas redes sociais. "Finalmente, alguns perceberam o que eu queria dizer quando dizia que ia passear o Bentley", brinca João, sabendo como batizar o animal com o nome de uma marca de automóvel de luxo só podia gerar deliciosa confusão.

O Museu da Farmácia teve uma quebra assinalável de visitantes em 2020 por causa da pandemia, em linha com os outros museus portugueses. "Só os museus e monumentos do interior conseguiram bons números no verão por causa do turismo interno, pessoas que antes iam para o estrangeiro mas ficaram por Portugal por causa da covid-19. A quebra andará entre os 65% e os 80%", explica o também presidente da Associação Portuguesa de Museologia.

João recomenda paciência e imaginação. Paciência porque melhores dias virão, "e a vacina traz esperança", imaginação porque é preciso "acabar com aquela ideia de que um museu se visita uma vez e já está". E o próprio João é um exemplo de como trabalhar para o regresso do visitante, com múltiplas iniciativas temáticas. "Temos tido muito sucesso com as visitas dedicadas ao centenário do Hercule Poirot, pois tanto esta personagem criada por Agatha Christie como todo o universo da escritora britânica tem múltiplas ligações com o museu. E o sarcófago ajuda muito a fazer os participantes entrarem no ambiente, mas também tenho de me preparar bem, reler os livros, ver os filmes", sublinha.

Contrariar os efeitos da covid-19, mas também trabalhar para a documentar. No futuro haverá uma zona no Museu da Farmácia dedicada à pandemia. João continua a juntar material. "Agora estou à espera que as autoridades russas me ofereçam uma vacina Sputnik. Temos de documentar o que passou para podermos explicar a nós próprios e às gerações futuras. Ainda me lembro em março de dizerem que isto são 15 dias e depois vem o sol. Estamos em janeiro", nota.

Bebemos os dois o café e não me despeço do João sem ir com ele dar mais uma volta pelo Museu da Farmácia, instalado numa parte moderna anexa ao Palacete de Santa Catarina. Gosto muito da Farmácia Liberal, datada de 1890 e reconstituída como era no original. Também da farmácia trazida de Macau, típica farmácia chinesa. No polo do Porto também há farmácias antigas. Mas aquilo que me fascina são os objetos que João vai comprando mundo fora e que ajudam a traçar a história da medicina, desde o sarcófago egípcio até ao vibrador terapêutico sueco do século XIX, passando por livros médicos islâmicos medievais, como o célebre Código de Avicena, e até um corno de unicórnio, na realidade o espigão de um narval. Agora tem também um armário de farmácia coreano, oferta recente da embaixada da Coreia do Sul.

Para 2021, João já tem planos ousados para cativar a vindas ao museu: uma exposição temática, com visita comentada por ele, ao mundo da ciência de Sherlock Holmes. Tudo porque se assinalam os 140 anos da licenciatura em Medicina de Arthur Conan Doyle, o criador do detetive, e o Museu da Farmácia é dono do diploma que a Universidade de Edimburgo concedeu ao pai espiritual de Sherlock e também da famosa autocaricatura sobre o momento intitulada "Licence to kill".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt