Efeito do isolamento social: novos casos abrandam. O que vem a seguir?
Quase três semanas depois, as medidas de contenção adotadas em Portugal parecem estar a surtir algum efeito: há um abrandamento no número de novos infetados de covid-19. A situação, no entanto, está muito longe de debelada e persistem muitas incertezas. Desde logo sobre o momento em que a epidemia poderá atingir o pico: na prática, ninguém sabe. E mais tudo o que vai seguir-se a isso.
Três especialistas falaram ao DN da sua visão sobre os números da epidemia no país e, para já, uma certeza fica: a de que Portugal está a conseguir achatar a curva, permitindo que o Serviço Nacional de Saúde responda à situação sem entrar em rutura. Pelo menos por enquanto
"A curva epidémica está a ser achatada O número de doentes internados em unidades de cuidados intensivos (UCI) tem estado a subir, está agora em 2,5%, mas ainda não atingimos o limite nas UCI, embora isso esteja próximo de acontecer em alguns hospitais do norte, Porto e Braga", diz Nuno Sousa, médico, investigador e presidente da Escola de Medicina da Universidade do Minho.
A curva que traça a evolução da doença no país tem agora uma inclinação menos acentuada em relação às semanas anteriores, mas a tendência clara continua a ser de crescimento, tanto no número de novos casos (mais 452 nesta segunda-feira, em relação a domingo), como de mortes (311 ao todo nesta altura).
"Desde 29 de março, houve um crescimento diário de 10% no número de novos casos, o que significa uma diminuição em relação à semana anterior, em que esse aumento foi superior", afirma ao DN Bárbara Oliveiros, professora e investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra na área da matemática aplicada à saúde.
A média diária de novos infetados, contando todo o período do surto, desde que ele se iniciou a 2 de março, em Portugal, até agora, mantém-se em 30%, o que mostra que houve dias em que os números dispararam.
A acompanhar a evolução da doença provocada pelo novo coronavírus praticamente desde o início, ainda a epidemia não tinha galgado as fronteiras da China, Bárbara Oliveiros, que juntamente com Francisco Caramelo e Nuno Ferreira, da mesma universidade, tem trabalhado os dados para Portugal disponibilizados pela Direção- Geral de Saúde (DGS), mantém um olhar cauteloso sobre a aparente suavização da curva na última semana.
"Os números têm oscilado muito. Este abrandamento não é sinal de que o contágio vai parar a curto prazo, mas de que as medidas de contenção estão a surtir efeito", nota.
Por outro lado, sublinha, "os dados também têm de ser ajustados porque o número de testes realizados tem variado muito e, se num determinado dia se fazem menos testes, como ocorreu este domingo, em que houve algo como menos 1300 testes em relação ao dia anterior, é natural que o número de casos confirmados também diminua, como aconteceu".
Estas variações na relação entre o número de testes realizados e o de infeções confirmadas em cada dia, e também o facto de os dados da DGS "não discriminarem pormenores importantes, não ajudam a fazer melhores estimativas", sublinha a investigadora.
"É difícil seguir os dados da DGS. Os novos casos vão sendo reportados de formas diferentes, umas vezes pela naturalidade dos doentes, outras pela área de residência, outras pelo hospital onde se dirigem, ou, no caso dos doentes recuperados, deixaram de ser discriminados por região, e também não sabemos o número de testes por região, o que é importante porque, por exemplo em Coimbra, pode passar uma semana para se ter vaga para fazer o teste", explica investigadora.
De resto, sobram as perguntas sobre o que aí vem, nas próximas semanas ou meses. Não se sabe, por exemplo, quando poderá acontecer o pico da epidemia em Portugal. Fim de abril, princípio de maio? E a quarentena? De que forma - e quando - poderá vir a ser levantada? Não há ainda respostas para estas perguntas.
"É muito difícil prever nesta altura quando chegaremos ao pico da epidemia, porque não é possível fazer previsões fiáveis a mais de dois ou três dias", garante a investigadora da Universidade de Coimbra, notando que, "se quisermos fazer comparações com outros países, e mesmo tendo em conta as diferenças nas medidas de contenção, a Itália, por exemplo, teve os primeiros casos um mês antes de nós e só agora está a atingir o pico. Portugal teve o primeiro caso confirmado a 2 de março, portanto parece-me muito cedo para se começar a falar em pico".
Nuno Sousa, tem a mesma visão cautelosa. Para o médico e investigador, o abrandamento aparente da curva dos novos casos também reflete sobretudo "as medidas de contenção adotadas no país". Mas estimar a data para o pico da epidemia é algo que não arrisca.
"Não sei, e ninguém saberá responder a isso", diz, notando que "os dados parecem apontar para fim de abril, princípio de maio, seguido depois de um declive". Mas, garante, "não se consegue estimar a velocidade desse declive".
Esta é uma pergunta ainda sem resposta. A quarentena generalizada e o isolamento social em que os portugueses vivem há cerca de três semanas, que se foram tornando cada vez mais mais apertados, estão agora a traduzir-se no tal achatamento da curva epidémica.
"Estamos a fazer bem", reflete Nuno Sousa. "Pior seria ter muitos infetados, para os quais não haveria capacidade de resposta". Mas, nota, há aqui também "um efeito menos positivo", que é este: como a maioria dos portugueses ainda não teve contacto com o vírus, terminado este (primeiro) surto, o potencial epidémico do Sars-cov-2 mantém-se, porque não existe ainda a chamada imunidade de grupo no país.
"Com as medidas de distanciamento social, o contágio diminuiu, já sabíamos que é assim que funciona", explica Pedro Simas, virologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM), da Universidade de Lisboa. "Achatámos a curva, Portugal está de parabéns, mas não resolvemos o problema, porque neste momento o vírus é endémico", garante. O que se segue, diz, "vai depender do que se fizer, e podem acontecer diferentes coisas".
Passado o surto, não se sabe ainda quando - seguramente semanas, senão meses -, "se se levantassem as restrições todas, viria aí uma nova vaga gigantesca", estima Pedro Simas.
É fácil perceber porquê. Para haver a chamada imunidade populacional, estima-se que 70% da população tenha de ter sido infetada e essa, neste momento, é uma meta muito longínqua ainda.
A partir dos dados da DGS, os cálculos de Bárbara Oliveiros apontam para que nesta altura apenas 0,1% da população portuguesa foi infetada pelo Sars-cov-2, embora a investigadora acredite que essa percentagem deverá ser maior, uma vez que a maioria dos doentes tem apenas sintomas ligeiros ou é mesmo assintomática. Mas, ainda assim, a taxa real andará muito longe dos 70%.
Para Pedro Simas, a estratégia para lidar com a situação terá numa segunda fase, de passar por uma combinação entre a massificação de testes serológicos e de presença do vírus com quarentenas intermitentes e a proteção seletiva dos grupos populacionais mais vulneráveis, como os idosos e os doentes crónicos.
"Num cenário ideal, conseguindo proteger os grupos de risco, poderíamos libertar as pessoas de forma controlada, para ir construindo a imunidade natural na população portuguesa", explica o investigador, que acredita que "este debate deveria iniciar-se desde já, com especialistas em sociologia, demografia, autarcas e outros, para se desenhar essa estratégia".
O investigador está ele próprio envolvido na produção de uma das principais ferramentas que pode abrir caminho para esse cenário: o desenvolvimento de testes serológicos, que serão fundamentais para se perceber quem já esteve infetado e que pode, portanto, ser libertado da quarentena e do isolamento social.
Estão envolvidos no desenvolvimento do novo teste serológico investigadores de várias instituições de investigação de Lisboa: o IBET- Instituto de Biologia Celular e Tecnológica, o Instituto Gulbenkian de Ciência, o CEDOC, da Universidade NOVA de Lisboa, o IMM e o Instituto Ricardo Jorge.
"Mais três ou quatro semanas e teremos concluído o princípio base do teste e depois é amplificá-lo e passar à fase de produção por uma empresa. Dentro de mês e meio já poderemos estar a testar alguns grupos prioritários, como profissionais de saúde, bombeiros ou funcionários de lares", admite Pedro Simas. E sublinha: "Isso demonstra que o investimento que foi feito nos laboratórios associados está agora a dar resultados, porque perante uma nova situação a comunidade científica está a conseguir criar soluções com qualidade".
Até lá, porém, a quarentena terá de se manter - "talvez por meses".