"Não é possível continuar a desperdiçar recursos, como desde o ouro do Brasil"

O especialista em assuntos europeus e cabeça de lista do Aliança às últimas europeias, após muitos anos de trabalho em Bruxelas, diz-se satisfeito com o acordo conseguido no Conselho Europeu, mas mantém que é preciso mais solidariedade entre os 27. Paulo Sande reconhece que Portugal tem agora a oportunidade, que não pode desperdiçar, de dar o salto após 20 anos em que andou a "marcar passo".
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Quando foi cabeça-de-lista às últimas eleições europeias pelo Aliança disse que só a solidariedade salvará a Europa. Neste acordo do Conselho Europeu, nomeadamente no Fundo para a Recuperação Económica, houve essa solidariedade?
É uma pergunta com uma resposta complexa. Se é verdade que este pacote responde às necessidades imediatas da Europa também houve egoísmos nacionais. Se este Conselho Europeu tivesse corrido mal, se até ao final do mês não tivesse havido uma resposta com o mínimo que era exigível, não tenho dúvida que os próximos meses seriam de grande turbulência e até de desagregação do processo europeu. Mas nós olhamos para a União Europeia e esperamos que venham as respostas para os nossos problemas, esquecendo que não é só um jogo de dar e receber. .Este processo europeu é muito mais do que isso e que sem a sua existência nada disto aconteceria. Hoje estaríamos a pedir ajuda não sei a quem. Esta é uma boa resposta, é uma revolução também. Mas a solidariedade aqui não existiu, existiu um conjunto de interesses nacionais a procurar encontrar uma plataforma possível, essa plataforma foi encontrada, mas à custa de uma ambição inicial do projeto da Comissão. Agora eu mantenho aquilo que disse, a Europa sem solidariedade não sobrevive. Do ponto de vista funcional esta resposta garante a sobrevivência da União Europeia, a longo prazo é preciso muito mais. Há muitas pontas soltas, e o processo pode desabar, como por exemplo saber como este novo pacote e estes novos recursos financeiros que a UE vai buscar aos mercados e tudo isso tem de ser resolvido. E como? Com solidariedade europeia e com a consciência que o projeto europeu é de interesse comum.

O Reino Unido, que era normalmente o contravapor na questão dos fundos, abandonou o projeto e abriu a porta à resistência de outros países, como os chamados "frugais" - Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia ?
Esses países tomaram de facto o lugar do Reino Unido. Mas se este país ainda fizesse parte da União Europeia e tivesse sido parceiro nesta negociação, não sei qual teria sido o resultado. Admito até, com pura especulação, que o resultado pudesse ser nenhum e tivesse existido um bloqueio. Aconteceu noutras alturas. Apesar de tudo esses países também representam uma parte da Europa que não é menosprezável. A Europa é uma construção muito complexa, este tipo de unidade nunca tinha sido feito nos sistemas políticos a nível global. As uniões fizeram-se quase sempre pela força, impondo-se os mais fortes aos mais fracos, e nunca o que aconteceu na União Europeia, herdeira das comunidades dos anos 50, que foi haver uma voluntária e solidária partilha de soberanias. A partilha de soberanias é a verdadeira novidade deste processo que, por isso mesmo, é muito complicado. Esses estados "frugais" representam uma parte da Europa que ganha mais dinheiro, que vive melhor, que não tem tanta dívida como a outra parte da Europa, que tem mais dificuldade, não recebe tantas receitas e não tem tantos resultados e, obviamente, que cada um dos chefes de Estado e de governo que assumiram aquelas posições fizeram-no em nome dos seus eleitorados. Por exemplo, Mark Rutte, primeiro-ministro da Holanda, tem eleições daqui a sete ou oito meses. Muito do que ele fez ali foi a pensar nisso, a pensar nos seus cidadãos e seus eleitores. O equilíbrio que resulta destas tensões é muitas vezes o menor denominador comum, apesar disso desta vez não foi isso que aconteceu. Há uma grande revolução no conceito da construção europeia e como se financia.

Precisamente, diz-se que com esta emissão de dívida europeia se processou aqui uma revolução na estrutura da UE.
Claro, era impensável. Depois da crise de 2008, em que tivemos sucessivos Conselhos, a verdade é que de cada vez que se discutiam soluções que iam um bocadinho mais longe do que os instrumentos tradicionais, nomeadamente esta hipótese de haver uma dívida europeia, foi sempre uma linha vermelha relativamente à qual ninguém transigiu. Mas transigiam com outras coisas. A crise de 2008 também foi ultrapassada porque houve solidariedade europeia. Repito: sem solidariedade não há Europa. Em 2008 também aconteceram soluções impensáveis e para muitos proibidas como aquilo que o Banco Central Europeu fez para ocorrer aos orçamentos e às economias dos Estados e em particular ao setor financeiro. Agora o que se fez foi transpor mais um rubicão, e não lhe chamando eurobonds, são obrigações emitidas no mercado internacional onde a Europa vai buscar financiamento para este programa de recuperação e resiliência e em nome de todos. Há uma garantia que começa por ser do orçamento comunitário e, por extensão, dos orçamentos nacionais. Quando se falou dos coronabonds, durante a crise das dívidas soberanas e Portugal entrou na crise que teve, falava-se como empréstimos que permitiam a países com mais dificuldades maiores financiarem-se a preços mais baixos, mas agora já não é só isso. Agora além dos 390 mil milhões de euros em subsídios ou subvenções existe a outra parte em empréstimos que são também em condições muito favoráveis., o que permite a gestão da dívida de outra forma. Basta ver o que aconteceu com a emissão de dívida hoje, já com juros negativos, que são coisas que não aconteciam. Estas discussões sobre a Europa são sempre interessantes e mesmo as críticas, as expectativas, desta vez não eram tão grandes, mas a seguir vêm todos os que não gostam da UE por uma razão ou por outra, que acham que isto é um sinal de globalização de multilateralismos, outros que defendem os nacionalismos mais fortes, e todos se têm entretido nos últimos dias a criticar uma coisa que ainda não está totalmente clara. Isto porque há muitos procedimentos, há muitas regras e aprovação de todos os regulamentos que têm a ver com todas as políticas europeias. Já sabemos as verbas para as financiar, mas não sabemos em que condições. Portugal pode receber mais ou menos, quer no plano dos subsídios quer no plano dos empréstimos, em função de programas competitivos. Se me perguntarem se estou contente, estou muito contente, não tanto quanto estaria se tivesse sido cumprido o programa inicial dos 500 mil milhões de subsídios.

Foi também uma vitória não ter imperado a proposta do "direito de veto" ao financiamento de certos projetos como foi feita por alguns países e ter-se mantido a fiscalização da aplicação do dinheiro na mão da Comissão Europeia?
Exatamente, a última palavra será da Comissão Europeia e isso é muito importante. Desde 2008/2009 assistimos a uma intergovernamentalização, ou seja os Estados terem uma palavra final, quando o Conselho Europeu era a instituição que definia as grandes estratégias europeias, a partir dessa altura tornou-se o governo da Europa, mais do que a Comissão. Houve, portanto, um processo de devolução de soberanias e por isso é que cada Conselho é tão importante. Em cada um deles, chefes de Estado e de governo decidem, por unanimidade, coisas cruciais. Isto foi crucial porque durante décadas foi a Comissão Europeia o executivo europeu, embora continue a ter a competência da iniciativa legislativa., mas é cada vez mais o Conselho que dá orientações e que ordena à Comissão Europeia o que deve fazer. O facto de este controlo dos planos nacionais ter permanecido, em última instância, nas mãos da Comissão é muito positivo. O que os "frugais" tinham proposto era muito mais longe, era de facto haver um direito de veto e felizmente não se concretizou. A realidade é a de um controlo conjunto de aplicação das verbas, que permita dizer que há um parceiro que está a usar o dinheiro para outros fins que não o previsto no programa. A ligação dos programas à estratégia europeia é crucial porque estamos a falar de fundos de todos e desta vez muito mais do que alguma vez existiu. Então é bom que haja esse escrutínio pela comissão Europeia, que é o fiel da balança entre as dimensões nacionais e a dimensão da União Europeia.

Com a crise já instalada na Europa pela pandemia, o facto de os fundos só estarem disponíveis em 2021 não cria aqui um hiato complicado?
Há uns dias dizia que um resultado positivo seria quase um milagre. Mas houve vontades e chegaram para atingir um resultado. Agora não se pode pedir tudo, há regras, estamos de facto a falar de muito, muito dinheiro para os sete anos. No caso de Portugal, nós passamos dos quatro mil milhões por ano em termos de subvenções para seis mil milhões por ano. Isto a longo prazo são os tais 15,3 mil milhões, mais o orçamento plurianual 2021-2027. É importante dizer que além disto já estão no terreno programas que podem ser usados por Portugal e pelos outros Estados-membros na sequência da pandemia e das suas consequências, nomeadamente no que diz respeito à tensão sobre o emprego, no caso os lay-off. É uma verba que é mobilizável a curto prazo até final do ano. E fundos estruturais que ainda podem ser usados. Fundos não faltam é preciso é sabê-los gerir bem. A melhor notícia de todas e que a Europa, mesmo a nível global, dos seus competidores, deu um sinal muito forte de vontade e de permanência. E são decisivas para que a imagem e a confiança que os mercados depositam em qualquer economia, no caso um conjunto de economias é importantíssima. Espero que a resposta seja rápida, mas não temos sequer este programa aprovado, nem o orçamento nem o Fundo de Recuperação e de Resiliência dos 750 mil milhões. Vai ter de ir ao Parlamento Europeu e é normal que a instituição que representa os europeus com os seus eleitos queira ter uma palavra a dizer. Estou convencido que vão dizê-la mas aprovar tudo, porque abrir agora a caixa de Pandora seria dramático. Vai haver ainda muita gritaria sobre se os parlamentos nacionais devem intervir nesta fase e eu espero que não sejam porque então não será em 2021 que haverá dinheiro disponível. Depois desta boa notícia estou convencido de que não haverá obstáculos. Não há nada mais importante do que saber gerir expectativas, neste caso eram muito altas e levaram alguns abanões mas aguentaram-se. Agora que não deem cabo delas. O grande providenciador de riqueza, de crescimento é a existência de um mercado interno. Isso está também em causa, ou seja quando falamos deste pacote também há coisas erradas.

Nomeadamente os cortes nas políticas comuns para a saúde, inovação, digital?
Sim, ter caído aquele programa da solvência das companhias, que era um sinal muito forte a nível empresarial, a saúde é de facto um problema, o Horizonte Europa aguentou-se mas a ideia é que o investimento fosse maior no digital, o orçamento internacional levou um grande corte. Talvez ainda mais significativo é a recompensa aos Estados que se opuseram a mais solidariedade, porque mostra que a dimensão nacional pesa cada vez mais. As discussões já não são sobre o interesse comum europeu, são sobre a soma dos interesses específicos nacionais e quando estes se sobrepõem ao interesse comum por parte desses Estados - no caso a Alemanha além de ter apoiado uma coisa que nunca apoiou e isto só é possível porque a chanceler Merkel admitiu ser possível financiarmo-nos nos mercados. Teve a consciência que o que estava em causa era o tal mercado interno e o principal beneficiário é a Alemanha. Onde houve os cortes em relação à proposta inicial? Nas políticas europeias comuns e os que puseram os seus interesses em primeiro lugar foram todos contemplados e premiados. Todos eles receberam rebats maiores, contribuem menos para o orçamento comunitário, todos viram acolhidas as suas pretensões em relação a menos subsídios, ainda receberam prémios nalguns casos e, por isso, a dimensão nacional ganhou aqui um relevo especial e isso preocupa-me. Este processo de integração está baseado na ideia do interesse comum europeu. É verdade que ter-se pedido na saúde, depois de ter sido prometido pela Comissão que haveria uma revolução nesta fase e que permitia um verdadeiro programa de saúde europeu a longo prazo. Esta área vai receber 1,7 mil milhões de euros que é muito pouco e falharam os oito mil milhões que eram a ideia inicial. E também ficou em causa esta transição digital, que é muito importante para competir.

Do que éconhecido do plano nacional de recuperação da economia parece-lhe que responde às necessidades de Portugal para gerar investimento reprodutivo?
Nós recebemos da UE a fundo perdido 120/130 mil milhões desde 1986. Nós agora estamos a falar de um pacote que pode chegar aos 50 mil milhões em sete anos, estamos a falar de uma verba muito, muito significativa para ser usada, para investir, desenvolver e recuperar. Se pensarmos bem sobre o que nos aconteceu desde 1986, e sem questões políticas à mistura, a que conclusão chegamos? Tivemos 15 anos de desenvolvimento muito acima da média europeia, em que recuperámos muito os nossos níveis de desenvolvimento, e estamos há 20 anos a marcar passo. Alguns países saíram de muito baixo, mas mesmo aqueles quando aderiram há 13 anos estavam muito atrás de Portugal, alguns já nos ultrapassaram e outros estão a aproximar-se. Isto não pode acontecer mais. Não é possível continuarmos a desperdiçar recursos, como desde o ouro do Brasil, mas temos de mudar esse paradigma. Temos de olhar para isto e dizer esta é a nossa grande oportunidade. O plano que foi apresentado tem uma série de propostas muito interessantes, TGV de Lisboa para o Porto e coisas do género, e há algumas dimensões alinhadas com os programas europeus, mas é importante não esquecer que isto terá de ser concretizado. Há a visão do que deve ser e ao concretizar é crucial que percebamos de uma vez por todas duas coisas: que as verbas têm de ser postas efetivamente ao serviço do país e não podem ser postas ao interesse de uns e de outros, por amiguismo, que existe e não vale a pena esconder. Ou somos completamente incompetentes e fomos durante estes 30 e tal anos ou não somos e alguma coisa tem estado a impedir que a existência destes recursos, que só existem porque há União Europeia, permitisse à economia portuguesa desenvolver-se e os portugueses terem verdadeiramente o nível de vida dos outros povos europeus, que não temos. O nosso rendimento per capita, ou seja o que cada pessoa tem de riqueza nacional é muito menos que tem um espanhol e já não falo do que tem uma alemão. O plano tem de ser isento e imune a esse tipo de tentações e de erros e tem de ter uma consonância com o programa europeu, a economia digital, a questão climática, o Green Deal, mantendo-se a coesão, a agricultura ecológica. Tem de haver uma intervenção muito mais forte da sociedade civil na fiscalização da concretização das coisas, deixamo-nos muito nas mãos do Estado.

Com a pandemia ficou em segundo plano a negociação do Brexit. O processo será ainda mais complexo?
Toda esta discussão se fez sem a contribuição britânica, que era um dos principais contribuintes da UE. Essa questão é muito complicada porque o braço de ferro continua, o Reino Unido continua a não dar sinais de prescindir de todas as suas exigências, a União Europeia tem também os seus limites e, portanto, e após estes meses em que foi posto de lado, vamos entrar numa fase séria. Numa opinião muito pessoal, porque ninguém sabe, terá de haver um acordo. É muito difícil a uma economia britânica prescindir do mercado europeu porque é muito importante para a economia inglesa. Mas também o mercado britânico é importante para a Europa. No plano da concorrência, se não existir uma base comum, a EU não pode prescindir da sua porque se aplica a 27 Estados. No caso do Reino há muitas regras que se não forem aplicadas e o Reino Unido não quer que sejam aplicadas não permitem uma boa relação. O verdadeiro vizinho do Reino Unido é a Europa. Isto é um braço de ferro sem sentido e a política esqueceu-se de uma coisa muito simples, não custava nada prolongar por um ano e chegar a acordo até final do ano. Mas por razões meramente políticas o prazo foi deixado passar para prever uma extensão do período de transição. Mas como o Boris Johnson já no ano passado ganhou com isso e cm a sua irredutibilidade, está a jogar mais uma vez.

Que expectativa tem sobre a presidência alemã e a portuguesa que vem logo a seguir?
A expectativa sobre a presidência alemã já começou a ser cumprida. Era importante que desbloqueasse este processo de resposta à pandemia e ninguém tem dúvidas sobre a importância que teve a posição alemã já nesta cimeira. O que espero é que até final do ano a presidência alemã possa consolidar esta revolução europeia. A partir do momento em que se fez isto e que comemos o fruto proibido a tentação é continuar a comê-lo. Como se vai pagar isto é outro problema e espero que haja nestes sete anos capacidade de rever a questão dos recursos próprios porque esta ida aos mercados vai ter de se pagar.

Está a referir-se à possibilidade de novos impostos europeus?
Os recursos próprios não têm de ser necessariamente impostos nacionais sobre os cidadãos, pode ser sobre muitas outras coisas, impostos sobre o carbono, sobre as grandes empresas digitais. Dessa maneira financiava-se o orçamento europeu de uma forma superior, conseguindo pagar este empréstimo que se vai obter, apesar de ser com uma maturidade longuíssima, mas tem de se pensar nisso. A presidência alemã pode deixar pistas para estes processos e também reformar o processo de decisão. Vimos neste Conselho Europeu decisões por unanimidade que com tanta complexidade são quase impossíveis. E por isso é que falei em milagre. E a presidência alemã vai ter também de se preocupar com as negociações do Brexit. A presidência portuguesa vai depender muito do que for a alemã, vai ter uma dimensão importantíssima em que Portugal tem especial apetência que é a dimensão internacional da própria EU.

Não foi eleito eurodeputado, tem pena de não estar envolvido neste momento histórico em Bruxelas?
Tenho. Nunca escondi que a Europa e a dimensão europeia e a sua construção, além de ter sido a minha profissão durante muitos anos, foi uma causa que abracei completamente desde o princípio. Não vou dizer que me apaixonei por ela, como dizia Jacques Delors, mas se calhar por causas. Esta é uma causa extremamente nobre e extraordinária porque se há coisa que é difícil prescindir para o ser humano é o poder, da soberania no caso dos coletivos, dos Estados-nação. E ver países que após muitos séculos de sofrimento e de duas guerras dizer já chega e vamos aqui construir qualquer coisa para nos manter em paz e harmonia e nos desenvolvermos em conjunto é extraordinário. É uma utopia feita realidade, com todas as dificuldades que tem por ser utopia. Participar neste processo foi sempre algo que me deu enorme prazer, gozo, satisfação. Quando concorri há um ano e tal às europeias achava e acho que tinha uma contribuição a dar conhecendo muitíssimo bem os processos. Tenho naturalmente pena de não puder contribuir nessa parte. Contribuo pelo menos, com os contactos e com as pessoas que conheço por essa Europa fora a ajudar a perceber melhor o que União Europeia.

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