8.00. Passaram 12 horas desde que a médica Anabela Oliveira chegou ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para chefiar um banco de urgência. É a diretora deste serviço há 14 anos, mas também coordena turnos e vê doentes. Ainda fardada, apesar de já passar da sua hora de saída, recebe-nos à porta da urgência central, que foi duplicada, no parque de estacionamento em frente, para responder aos doentes com infeção respiratória aguda, suspeitos de terem covid-19. Nos olhos nota-se-lhe a noite longa de trabalho, que se prolonga pela manhã. A voz sai-lhe diminuída pelo cansaço..Olha em frente - para a porta que dá acesso ao covidário, como chamam ao serviço de observação e internamento de doentes com suspeita de infeção pelo novo coronavírus nas urgências - e não disfarça as reticências. Até esta quinta-feira, o hospital não tinha recebido nenhuma equipa de reportagem dentro deste espaço por causa do risco de contágio. A regra é clara: só entra quem precisa mesmo de lá estar. Anabela Oliveira tem boa vontade, mas não nega o receio..Ultrapassado o impasse, de fato completo, máscara cirúrgica de tipo 2, touca e sapatos descartáveis, avançamos para dentro do edifício construído em contentores, neste verão. Esta é a terceira versão de uma urgência, criada durante a pandemia, para atender doentes com covid. Em março, improvisaram um espaço à porta com tendas da Cruz Vermelha e depois ocuparam a receção do hospital. A antevisão de um outono e inverno mais agitados fez que procurassem uma solução mais permanente e autónoma..A infraestrutura divide-se em dois: uma parte onde é feita a triagem, e onde são logo testados os doentes ligeiros que a equipa multidisciplinar considerar necessário para depois serem enviados para casa ou para uma instituição assim que garantidas as condições de isolamento; e uma segunda parte, o covidário, para onde seguem os doentes graves, que precisam de fazer exames, de ser vigiados ou que se encontram descompensados, explica a especialista em medicina interna. Têm capacidade para receber 21 doentes críticos em simultâneo, entre espaços comuns divididos com paredes falsas e nove quartos com casas de banho e equipados com ventiladores. Três destes são de pressão negativa. Aqui ficam os doentes que inspiram mais cuidados ou com risco acrescido, como uma pessoa que esteja a fazer quimioterapia. Existem ainda salas de exames, para fazer uma TAC ou um raio-X e uma sala de reanimação..O início da manhã de quinta-feira está calmo. Na triagem não há doentes e estão apenas seis pessoas internadas. "Fiz um bom trabalho na noite anterior", provoca a diretora do serviço de urgência, enquanto as duas especialistas em medicina interna mais recentes do hospital, as médicas Inês Colaço e Ernestina Mota, olham para o quadro branco no centro da sala onde a equipa escreve o histórico dos doentes. Tem poucos apontamentos. Antes de passar o turno, Anabela Oliveira tentou encontrar respostas para o máximo de doentes que conseguiu, seja nas enfermarias, nos cuidados intensivos ou dar alta, depois de, em conjunto com as assistentes sociais, garantir que as pessoas que precisam continuam a ter apoio..Nem todos os doentes que aqui estão são casos de covid-19. A nova urgência é um exemplo das áreas dedicadas para doentes respiratórios (ADR), instituídas pelo Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020-21 do ministério e da Direção-Geral da Saúde. Ou seja, os doentes têm, pelo menos, um sintoma de infeção respiratória, o que faz que sejam tratados como suspeitos e dirigidos para este serviço e não para o edifício principal da urgência do Santa Maria, onde são atendidas as outras patologias. O que não quer dizer que uma vez realizado o teste de rastreio ao novo coronavírus este dê positivo..Foi o que aconteceu com a doente deitada na cama do quarto 9. Queixou-se de uma dor abdominal e acusou febre na triagem, mas o teste à covid deu negativo. "Tem uma doença infecciosa, mas não é covid. Ainda assim foi melhor ter sido tratada aqui", diz a médica Inês Colaço. Pela janela da porta veem-se dois enfermeiros a ajeitar o soro, antes de seguirem para o quarto ao lado: são os únicos dois quartos que estão ocupados..A urgência está silenciosa, mesmo os doentes que estão no corredor principal encostam-se e fecham os olhos enquanto os profissionais de saúde deambulam de um lado para o outro. Uma enfermeira aproxima-se da zona da farmácia, um armário grande com os medicamentos mais usados na ala, repartidos por pequenas caixas. Dois assistentes operacionais aproveitam para desinfetar um compartimento do chão ao teto, sem esquecer as paredes. A partir da hora de almoço é que começa a haver mais agitação, refere Inês Colaço. Isto apesar de "tudo poder mudar a qualquer momento", acrescenta a enfermeira Ana Mirco, a segunda responsável pelo serviço de enfermagem das urgências do hospital..Trabalhar na urgência é estar preparado para todas as eventualidades. "O desafio da medicina interna é entrar [ao trabalho], não saber ao que vamos e termos de estar o tempo todo preparados." É assim que a especialista com menos tempo de equipa descreve o dia-a-dia nas urgências. A medicina interna é uma área "abrangente", "um desafio constante", porque exige conhecimentos sobre todas as especialidades, diz Ernestina Mota, 36 anos. "Não há dois dias iguais", continua a médica, um dos 24 clínicos da equipa de urgências, que conta ainda com mais 110 enfermeiros e cerca de 90 assistentes operacionais exclusivamente dedicados a este serviço..Para a diretora das urgências, a medicina interna é uma especialidade de "paixão". Hoje com 56 anos, recorda os tempos de Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa: no quarto ano do curso já sabia o que queria. Nunca mudou de ideias. A nota no exame de acesso à especialização dava-lhe para escolher à vontade, mas a ideia já estava formada. "Ainda hoje vejo doentes com o mesmo entusiasmo de quando comecei", conta..A pandemia também não a desarmou. A brincar diz que já tem quase idade para não poder entrar no covidário e arrepende-se de imediato - "nem pensar. Preciso sempre de saber que doentes é que estamos a tratar". Desde março, altura em que foram confirmados os primeiros casos de covid em Portugal, já percorreram um longo caminho. Semanas que se prolongavam fim de semana adentro, na pressão de encontrar soluções para uma doença sobre a qual nada se sabia. Tem de respirar fundo. "Tem de haver muita disciplina e trabalho de equipa. Fomos aprendendo como lidar com estes doentes", continua..Não é que com o passar do tempo os equipamentos de proteção individual deixem de pesar, de fazer calor, mas entraram na rotina, refere a enfermeira Ana Mirco. "Imaginem 12 horas, mesmo que se faça um intervalo a meio para comer, a andar, a correr, a levantar, a puxar com isto em cima. É duro", afirma ao seguir o circuito de saída. Chega a uma pequena sala, onde há apenas um balde do lixo para deitar fora os fatos. "Estou aqui há 28 anos. Tivemos algumas infeções que nos levaram a fazer alterações, como a gripe A, o SARS, o ébola, mas nunca tinha passado por uma experiência assim. Toda a equipa teve de se adaptar. Evidentemente que em março e abril havia um nível de stress enorme. Ninguém sabia o que era, como ia ser e as notícias que vinham de fora eram horrorosas. Havia medo.".Já no outono, com a perspetiva de aumentarem as temperaturas e a presença de outros vírus sazonais, e com os casos diários de covid a crescer no último mês, a diretora de serviço não disfarça a preocupação. "A nossa urgência no inverno já era caótica. Estou apreensiva", confessa. Não só com a carga que pode chegar de doentes covid, mas também com a resposta aos doentes não covid, que dão entrada cada vez mais tarde na urgência e com doença mais aguda. Antes da pandemia, o Hospital de Santa Maria recebia à volta de 600 doentes por dia nas urgências. Agora recebe menos 200. Sendo que na altura do confinamento este número reduziu para metade em relação ao normal..A ala dedicada aos doentes com infeção respiratória vai manter-se até ser necessário, garante o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte (que inclui também o Hospital Pulido Valente), Daniel Ferro. "Se tivermos o dobro ou o triplo da afluência da primeira fase da pandemia, estaremos preparados", afirma o administrador hospitalar..Anabela Oliveira sabe que estão "organizados", "habituados ao excesso de doentes" e "a dar uma resposta resiliente", mas alerta: "Nesta fase não vamos ter capacidade para atender doentes que não são de urgência hospitalar. Mesmo que entrem se calhar não vamos poder atendê-los. Não podemos deslocar médicos de áreas de doentes agudos para atender ligeiros." Refere-se aos pacientes que na triagem recebem as pulseiras azuis e verdes. Estes já estão a ser reencaminhados para as unidades de cuidados primários, com que o hospital estabeleceu uma parceria. Este trabalho de equipa, diz a especialista, pode muito bem ser uma coisa boa que nasce "desta altura absolutamente excecional das nossas vidas".