"Mito de um crescimento ilimitado viola limites biofísicos planetários"

Justiça Intergeracional: A "Questão Social" do Século XXI é a primeira conferência de um ciclo intitulado Sociedade no séc. XXI: desafios sociais, geracionais, políticos e económicos, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A palestra por Viriato Soromenho-Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, pode ser vista esta segunda-feira às 18 horas por Zoom.
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Na história, as gerações sempre mostraram compreensão pelo legado a deixar às vindouras ou o egoísmo tem sido a regra?
Até à Revolução Industrial, a relação entre gerações era marcada, com exceção das raras elites que detinham a terra e o poder político, por uma existência muito pobre, baseada numa agricultura esforçada, e com uma esperança de vida minguada. Não surpreende que a primeira reflexão estruturada sobre justiça entre gerações surja no final do século XVIII. Esse debate aparece quando a própria infância e juventude são "inventadas" culturalmente como etapas qualitativamente diferentes da vida humana. Daí a explosão, nesse período, tanto de teorias pedagógicas como da afirmação da crença num progresso contínuo, que até há pouco foi uma espécie de religião laica da nossa época. O progresso, criou uma descontinuidade positiva entre gerações. Alimentou a ideia de que os filhos terão uma vida com mais possibilidades de escolha do que os pais, e assim sucessivamente. É isso que está hoje em causa com a crise global do ambiente e clima que se avoluma.

As alterações climáticas, que ameaçam a sobrevivência humana no planeta, tiveram o mérito de lançar o debate sobre a responsabilidade das gerações atuais em relação às futuras?
Na verdade é na correspondência de 1789 e 1790 entre os futuros presidentes norte americanos Jefferson e Madison que encontramos o tema das gerações focado com clareza. Jefferson considerava que cada geração (definida por um período de 19 anos) deveria obrigar-se, por um lado, a não deixar para a seguinte um sistema político fechado (por isso defendia a obrigação da revisão constitucional em períodos fixos), nem deveria contrair dívidas que não pudessem ser saldadas em 19 anos. Tratava-se de não deixar um fardo em cima dos jovens e dos ainda não nascidos. Com a crise global do ambiente, que ameaça crescentemente tornar inviável a vida humana em largas áreas do planeta, já não se trata apenas do fardo de uma dívida financeira, que pode ser renegociada, mas de uma dívida ontológica que se vai abater sobre os nossos filhos e netos, sem moratórias nem exceções.

Esse debate não se limita a um Ocidente rico, já que nas zonas mais pobres do planeta abusar dos recursos naturais pode ser a forma de sobreviver?
Esse é um dos problemas. No final de 2022 deveremos atingir a fasquia dos 8 mil milhões de habitantes neste planeta (quando eu nasci, no final de 1957, éramos 2, 8 mil milhões...). Estamos todos no mesmo barco planetário, que está a meter água por muitos lados. A divisão entre países pobres e ricos esconde a nossa total interdependência. A floresta destruída na Indonésia, ou o carvão queimado na Alemanha ou na China afetam a segurança ambiental no resto do mundo. Temos um conhecimento científico extraordinário do Sistema-Terra, que é unificado e não conhece fronteiras. Mas a nossa política continua a ser feita na base do mito da soberania nacional. E a nossa economia alimenta-se do mito de um crescimento ilimitado, que viola totalmente os limites biofísicos planetários. Não existe alternativa à cooperação compulsória entre Estados e na economia global se quisermos deixar um mundo que seja habitável para as crianças de hoje.

Além da questão ambiental, há outras formas de se manifestar justiça intergeracional?
A questão ambiental é a base sobre a qual tudo o mais assenta, contudo, não faltam outros domínios onde os sinais da insustentabilidade do nosso modelo de civilização se fazem sentir. Nos países desenvolvidos, com uma juventude altamente escolarizada, o mercado de trabalho tornou-se binário. Os jovens trabalham com menos direitos, com mais precariedade, recebendo menos por trabalho igual, do que os trabalhadores mais velhos. O impacto sobre o mercado de trabalho, que se calcula ser enorme, da robotização e da inteligência artificial afetará muito as gerações mais novas. A incerteza sobre a continuidade dos sistemas de segurança social é muito densa e justificada. Mais uma vez, temos de trabalhar em conjunto. Um conflito entre gerações seria um erro que nada resolveria.

Como se articulam, na solidariedade intergeracional, o plano familiar e o plano global?
Os pais portugueses apoiaram os filhos desempregados na crise dos anos da troika, assim como os pais chineses se sacrificaram para dar uma formação superior aos seus filhos únicos. A resposta familiar ajuda a colocar o assento tónico no lugar decisivo, o de uma resposta global articulada, que prima pela ausência. Se continuarmos nesta deriva onde a velocidade mascara a falta de rumo, agravando o risco de colapso ambiental, estaremos a comprometer não só as gerações futuras, mas também a perder o legado das muitas gerações passadas.

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