Minilateralismos certeiros
Talvez por ser um tema fundamental, passou ao lado da nossa imprensa. E é pena, porque o assunto interessa-lhe diretamente. Nos últimos dias, deram-se significativos avanços internacionais no cerco às grandes empresas tecnológicas, sobretudo no domínio fiscal, no qual operam continuamente à margem, numa zona de privilégios acumulados sem ponta de vergonha, privando os Estados e as sociedades onde deveriam ser tributadas de recursos financeiros e de um exercício de justiça fiscal indispensável à saúde do capitalismo e das democracias. Alguns desses Estados ajudam à festa como autênticos paraísos fiscais, deturpando dessa forma o equilíbrio indispensável em regiões económicas integradas com regras progressivamente uniformizadas.
No final da semana, a OCDE organizou uma cimeira sobre esta temática, reunindo 140 países e apontando o final deste primeiro semestre para a assinatura de um acordo global, correspondendo isso ao final da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE). Em paralelo, a nova secretária americana do Tesouro, Janet Yellen, revelou na audição no Senado uma inclinação para atacar um problema que diz sobretudo respeito a grandes empresas americanas, algumas com valor de mercado superior ao PIB da esmagadora maioria dos países europeus. A inclinação de Yellen não se ficou pela mera declaração interna, um desbloqueio importante na abordagem governativa, teve mesmo seguimento com os primeiros contactos internacionais feitos aos homólogos britânico (Rishi Sunak) e alemão (Olaf Scholz). A ideia transmitida foi a mesma: é preciso globalizar a solução, evitando a sua nacionalização.
Os europeus têm tentado travar esta batalha há alguns anos, através dos bons ofícios da comissária Margrethe Vestager, uma liberal que transitou da Comissão Juncker para a de Ursula von der Leyen, mas a ausência de uma frente transatlântica alinhada e exigente tornou a tarefa mais difícil. Os ventos estão, no entanto, a mudar.
A agenda euro-atlântica proposta no final de 2020 pela Comissão Europeia considerou a governação digital, a equidade fiscal e a segurança dos dados como uns dos pilares fundamentais para influenciar a globalização, sugerindo a criação de um Conselho para a Tecnologia Comum UE-EUA para agilizar processos legislativos e maximizar influência para lá do seu espaço geográfico.
Ainda há dias, Ursula von der Leyen fez questão de reforçar essa agenda comum no discurso que fez na Cimeira de Davos, a mesma em que o presidente chinês, Xi Jinping, renovou o seu compromisso com o multilateralismo, as regras internacionais e o livre-comércio, depois de o ter feito no encontro de 2017. Sem surpresa, sempre que há uma transição de poder entre administrações americanas, o líder chinês tenta passar a ideia de que pode ocupar um putativo vazio com premissas liberais semelhantes. Há quem caia nisto.
O momento não é, por tudo isto, desprezível. Por um lado, a China está a recuperar de forma mais rápida do que as restantes grandes economias mundiais, o nacionalismo em redor da vacina beneficia o seu posicionamento, e a falta de cooperação com a investigação da OMS ao início da pandemia garante-lhe tempo para exercitar algumas das práticas que têm acompanhado a sua emergência nos últimos anos: um soft power de perceção inofensiva e gerador de encantamento, um projeto de modernização militar sem acompanhamento externo à altura e uma capacidade financeira sem concorrência que atua no timing e no modo adequados aos recetores debilitados.
Por outro, podemos começar a falar de um pré-alinhamento euro-atlântico capaz de lidar de outra forma com Pequim ou com as demais frentes comuns prioritárias (covid, clima, comércio), entre elas a governação digital. É por isso que arrumar a questão fiscal, independentemente dos recursos gerados, ajuda a moralizar a regulação da globalização e a posicionar a UE e os EUA na vanguarda da sua regeneração. Depois dos sintomas da doença do modelo ocidental expostos pela crise financeira de 2008-2009, com curativos lentos e tímidos, qualquer ação corretiva que reestruture o Ocidente torna-se fundamental.
Talvez por isso exista hoje a noção em Washington e em Bruxelas de que o tempo das decisões conjuntas mais exequíveis terá chegado, de que o timing geopolítico veio acelerar entendimentos e de que mais vale curar o multilateralismo ferido pelos últimos anos com aquilo que há uma década Moisés Naím chamou de "minilateralismo", isto é, a conjugação de esforços com objetivos partilhados entre um grupo coeso de países capaz de consolidar uma linha suficientemente forte e eficaz, levando os outros consigo. É preferível um modelo destes ao lirismo de querer alinhar rapidamente os interesses de quase duzentos Estados para deslindar os temas mais prementes da globalização.
É aqui que o entendimento euro-atlântico se transforma em poder geopolítico: no comércio, na defesa, na tecnologia, na educação ou na ciência, apesar das diferenças, permanece um espaço político globalmente competitivo. Tem concorrência acesa, nalgumas dimensões equilibradoras ou mesmo ultrapassagens claras, mas a sua projeção de poder já demonstrou poder ser maximizada e influente se for coordenada, e redutora se for fragmentada.
Este debate não é teórico ou estratosférico. Os recursos da taxação das tecnológicas teriam toda a lógica se fossem diretamente canalizados para quatro áreas altamente desprotegidas ao longo desta interminável crise pandémica - educação, cultura, imprensa, participação cívica -, um fio condutor diretamente relacionado com os impactos da ascensão digital desregulada, sejam eles positivos ou negativos. Além disso, a capacidade euro-atlântica em influenciar este e outros temas internacionais colocaria as democracias novamente no trilho da vanguarda das soluções, tirando-as por algum tempo do espartilho do declínio.
Portugal tem interesses em jogo. Tal como a Alemanha está a colocar-se como pivô da relação entre os EUA e a China, Portugal pode aproveitar este singular semestre europeu para projetar o mesmo papel entre a UE e os EUA, aproveitando Lisboa para marcar posição simultaneamente em Washington, Berlim, Paris e Bruxelas. E, já agora, em Madrid. O presidente alemão foi o primeiro a felicitar Marcelo Rebelo de Sousa pela reeleição, uma prova de bom alinhamento entre os dois países. É provável que Anthony Blinken venha a Lisboa no início de março, para uma reunião de ministros dos negócios estrangeiros da UE. Seria fundamental que uma das mais altas figuras do Estado português fosse em breve a Washington.
Se o minilateralismo pode ser a receita mais produtiva, o bilateralismo acertado continua a ser a projeção de poder mais eficaz.
Investigador