Militar na reserva condenado por gerir falsas clínicas que burlavam idosos
Passavam por ser clínicas médicas convencionais mas estavam unidas na designação comercial de Centros de Terapias Alternativas e Medicinas Complementares. Na realidade nem possuíam licença nem tinham qualquer médico ao seu serviço. Contactavam por telefone pessoas de idade avançada, sempre acima dos 65 anos, a quem ofereciam um rastreio de saúde gratuito.
Por vezes usavam o nome de entidades como a Direção-Geral de Saúde ou a Fundação Champalimaud para melhor convencer as vítimas. Estas, depois de "avaliadas", necessitavam sempre de um tratamento urgente, no valor de milhares de euros. Dezenas de idosos caíram na burla e os responsáveis foram agora condenados por burla qualificada no Tribunal de Lisboa a penas de prisão, todas suspensas, tendo sido absolvidos do crime de associação criminosa de que estavam acusados.
O principal autor das burlas e sócio principal das várias empresas que ao longo dos anos foram sendo criadas e encerradas é um militar do Exército na reserva. Alfredo Silva, 57 anos, foi condenado a quatro anos e nove meses de prisão, suspensos na sua execução, enquanto a sua mulher, da mesma idade, foi punida com quatro anos de prisão, pena também suspensa. As duas principais colaboradoras, uma delas com formação em medicina tradicional chinesa, apanharam também penas suspensas de três anos e meio e três anos. As quatro empresas envolvidas, todas de Alfredo Silva, foram condenadas mas estão todas insolventes e sem atividade.
O acórdão do Tribunal de Lisboa descreve os casos. Um deles foi em 2015 quando uma mulher de 80 anos foi ao rastreio, esteve três horas na clínica e no mesmo dia pagou 795 euros, a primeira prestação do tratamento. A filha, no dia seguinte, ao tomar conhecimento, tentou reaver o dinheiro mas não conseguiu e recorreu à justiça.
Outro exemplo é o de um homem de 84 anos pagou 800 euros como primeira prestação de um equipamento. Quando quis devolver o aparelho, tal não foi aceite.
Uma reformada de 87 anos, com problemas ósseos, foi enganada com um tratamento de 21 sessões pelos quais pagou 2200 euros e que nem chegou a realizar pois o seu médico, quando soube, proibiu-a de os realizar.
A uma outra mulher, de 71 anos, uma das arguidas assustou-a: disse-lhe que corria sérios de risco de ter um AVC caso não fizesse o tratamento. Ainda pagou uma primeira prestação de 200 euros mas no dia seguinte sentiu-se mal e foi ao Hospital de S. José onde logo a aconselharam a não fazer mais o tratamento e a deixar a clínica.
No total foram 10 casos que no julgamento foram dados como provados. Mas em nove outras situações o tribunal avaliou que não houve crime já que estes utentes tinham consciência que era um centro de medicina alternativa, onde compraram equipamentos, e que não houve dano. Pelo menos, duas das vítimas faleceram entretanto. A PJ, quando desfez o negócio, acreditava que muitas vítimas optaram por não fazer queixa.
O esquema funcionou entre 2010, pelo menos, e novembro de 2017 quando a Polícia Judiciária, após queixa de uma das vítimas, deteve o casal e fez buscas nas diversas sociedades envolvidas. Alfredo Silva e a mulher chegaram a estar em prisão preventiva mas quando chegaram a julgamento já estavam em liberdade. As suas empresas Prisma Fonético (um call-center), Formisaúde, Quadrante Constante e Paralell Relax eram apenas a face visível quando tudo foi desmantelado, em 2017. Antes várias outras sociedades tinham funcionado, uma delas havia menos encerrado na sequência de uma ação da Inspeção-Geral das Atividades de Saúde, por não estar registada na Administração Regional de Saúde de Lisboa. Mas fechavam umas, abriam outras. A Paralell Relax nasceu em 2005 e tinha como objeto social atividades de fisioterapia, acupuntura, homeotapia, eletroestimulação e osteotapia.
No acórdão proferido este mês em Lisboa, é dado como provado que os arguidos usavam de forma astuciosa e enganosa pretextos falsos para obter vantagens económicas, através do aproveitamento da especial vulnerabilidade dos diversos ofendidos em função da idade, todos com mais de 65 anos e com debilidade de saúde. No essencial, Alfredo Silva e mulher desenvolveram uma estrutura empresarial, com diversas sociedades, as quais eram habitualmente designadas como "clínicas" e assumiam a designação de Centros de Terapias Alternativas e Medicinas Complementares. Contudo, à vista dos utentes isso não transparecia. Passavam por ser unidades de saúde normais. Existiram no centro de Lisboa. em Algés ou em Cascais.
O sargento do Exército na reserva assumia a gestão e escolhia os funcionários, transmitindo um guião que deviam executar nas abordagens telefónicas. A mulher e as colaboradoras eram quem recebia os utentes. Para aqui chegaram as pessoas eram aliciadas pelo telefone com o facto de ser gratuito através do call-center Prisma Fonético, que encaminhava depois os ofendidos para as outras empresas. Nestas "clínicas", em Lisboa ou arredores, convenciam os doentes que o seu estado era grave e negociavam logo o preço dos tratamentos, com o principal arguido sempre a par.
Refere a decisão judicial que para melhor convencerem as pessoas diziam estarem a falar da Direção-Geral de Saúde, da Fundação Champalimaud, do Centro de Rastreio de Diabetes ou outras instituições de saúde. "Os utentes eram recebidos nos estabelecimentos comerciais das respetivas sociedades, os quais se assemelhavam com clínicas médicas, por funcionários que, em alguns caso, vestiam bata branca." Basicamente, nos rastreios, faziam exames de medicina quântica, com medição da tensão arterial. Entre os funcionários havia naturopatas e outras pessoas pessoas com formação em medicina tradicional chinesa. Em muitos casos enganavam os idosos "convencendo-os que os resultados dos exames eram preocupantes e que era urgente iniciar, nesse mesmo dia, um plano de tratamentos com técnicas inovadoras."
Acreditando estarem a ser aconselhados por profissionais de saúde, muitos utentes adquiriram os tratamentos propostos - massagens, pressoterapia e eletroestimulação. Consoante o número de sessões, os valores a pagar iam de 900 a 2000 euros. Nalguns casos era a aquisição de um equipamento de eletroestimulação. Pagavam em valor médio 1590 euros sem saber que no mercado podem ser adquiridos por 30 a 100 euros. Uma das vítimas apercebeu-se do logro quando viu um equipamento igual à venda no Lidl. Em regra era proposto um orçamento mais elevado que podia chegar aos 20 mil euros. Quando as pessoas achavam caro, havia sempre uma promoção ou a comparticipação dos já referidos organismos que reduzia substancialmente os valores. O pagamento era feito de imediato, nem que fosse uma primeira prestação. Houve casos em que as pessoas se sentiram enganadas e pediram a devolução. Era sempre negado.
O tribunal deu como provado que o casal e as três colaboradoras sabiam que estavam a enganar as pessoas com os tratamentos e equipamentos, recorrendo a "estratagemas enganosos". Por isso foram condenados por um crime de burla qualificada. Mas foram absolvidos de quatro dos pedidos de indemnização cível apresentados por não ter ficado provado que houve danos patrimoniais - refere-se aos casos em que to tribunal concluiu que os utentes sabiam que era medicina alternativa. Só foram condenados no caso de uma mulher a quem terão de pagar 1190 euros. Houve muita matéria da acusação que foi dada como não provada, como o caso de um homem que diz ter recebido uma proposta de um tratamento por 20 mil euros.
Alfredo Silva e a mulher estiveram presos mas foram depois libertados. É agora diretor de recursos humanos numa empresa. Foi o único arguido que falou em julgamento, e só na fase final, negando que tenha montado um esquema fraudulento, admitindo apenas algumas falhas.
O tribunal absolveu os quatro arguidos do crime de associação criminosa por considerar que a sua conduta não encaixa no definido pela lei para este crime. Seria necessário que houvesse um grupo organizado, com vista a determinado fim. "Fica demonstrado que cada um dos arguidos atuou no seu próprio interesse, com reflexo no interesse dos outros", diz a decisão, lembrando ainda que nem toda a atividade desenvolvida pelos arguidos era ilícita.
Alfredo Silva foi ainda absolvido dos crimes de detenção de arma ilegal. Duas armas de fogo e dois punhais foram apreendidos na sua casa mas como é militar não precisa de licença para ter estas armas em concreto. Foram devolvidas tal como um automóvel que havia sido apreendido.