Dizem que o dia-a-dia não mudou assim tanto, por estarem habituados a cuidados redobrados com a higiene e a desinfeção. Mesmo assim, as alterações fazem anunciar-se logo à porta. Na clínica do médico dentista Rui Paiva, em Faro, mede-se a temperatura antes de entrar, passa-se por um tapete de desinfeção, calçam-se forras descartáveis, preenche-se um questionário. Mais a norte, em Barcelos, João Pimenta começou a comprar equipamentos de esterilização do ar ainda na segunda semana de confinamento. É assim que vão recuperando o tempo de portas fechadas, durante o estado de emergência, o que nem todos os médicos estarão a conseguir fazer com facilidade. Metade dos dentistas portugueses veem menos seis pacientes por dia.."É uma quebra muito significativa", assume o recém-eleito bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Miguel Pavão. Desde o fim do estado de emergência que 71% dos especialistas viram as suas consultas reduzidas, segundo dados preliminares de um inquérito nacional elaborado pela Ordem. Seja porque as pessoas têm receio de se sentam na cadeira do dentista, por falta de acesso a equipamento de proteção individual ou até porque não é possível ver tantos pacientes, uma vez que tem de haver um intervalo maior entre as consultas, os últimos meses têm-se revelado um desafio para estes médicos, que esperam não ter de fechar os consultórios novamente, na eventualidade de uma nova onda da pandemia de covid-19..A maioria passou a ter de estar, em média, pelo menos mais 30 minutos com cada paciente, revelam as respostas do questionário que contou com a participação de 4136 dentistas do universo de 10 653 inscritos na Ordem..Rui Paiva, 55 anos, 30 de profissão, é exceção. Conseguiu manter as oito consultas diárias que fazia antes da pandemia, à custa de mais horas na clínica que gere em Faro. Tal como todos os colegas, foi obrigado a fechar durante o estado de emergência, por a atividade ter sido considerada de alto risco, podendo ver apenas doentes urgentes. Cancelou, entre março e maio, cerca de 300 consultas. Mas pior do que ver tudo parado foi não saber quando poderia voltar ao trabalho, confessa. "A angústia foi o mais complicado. Foi uma situação completamente nova e não sabíamos o que ia acontecer.".Como sócio-gerente de uma pequena empresa - onde trabalham para além de si mais três pessoas (outra médica dentista e dois assistentes) - não chegou a ter direito a lay-off. Situação comum entre os médicos dentistas, uma vez que cerca de 90% dos prestadores de medicina dentária são precisamente microempresas, explica o bastonário.."A dificuldade foi assegurar as despesas fixas do consultório", continua Rui Paiva. "Existe a reputação de que os dentistas são todos ricos e, nesta altura, veio ao de cima a realidade que é conhecida por nós. Houve colegas que tiveram de recorrer ao Banco Alimentar contra a Fome, houve clínicas que fecharam.".O dentista de Faro regressou ao consultório assim que pôde e, como vive maioritariamente de pacientes fixos que já o conhecem e que confiam no seu trabalho, preencheu rapidamente a agenda. "Claro que deve haver muitas pessoas que não aparecem na consulta e admito que haja receio, mas, na minha clínica, não notei que as pessoas fugissem.".João Pimenta, dentista há 39 anos em Barcelos, tem a mesma perceção. E até regressar ao trabalho encarregou-se de garantir que o consultório estava pronto para trabalhar durante a pandemia. Encomendou aparelhos de esterilização do ar, um pórtico de biossegurança que diminui a carga viral e mais equipamentos de proteção individual para si, para as três pessoas que trabalham consigo e para os pacientes, que têm de vestir uma bata, colocar uma touca na cabeça e cobrir os sapatos..Os dois dentistas referem-se às alterações no consultório como "mínimas", uma vez que o seu espaço de trabalho já tinha de priorizar a desinfeção. "De um modo geral, todas as clínicas de medicina dentária em Portugal têm, desde há 20, 30 anos, por causa da sida, da tuberculose, das hepatites, circuitos de esterilização do material e higiene redobrada para proteção de quem lá trabalha", refere Rui Paiva..E por isso consideram que, a haver uma segunda vaga pandémica, o governo deve permitir que continuem a trabalhar..A segunda vaga e as propostas do bastonário."Preocupado". Assim se diz o bastonário com a possibilidade de uma segunda vaga da doença, que "pode ser o golpe final" para muitas dentistas, se tiverem, mais uma vez, de fechar. Miguel Pavão não vê razões para que isso aconteça; quer antes discutir agora regras que permitam aos consultórios manterem-se a trabalhar..A Ordem criou um grupo de acompanhamento e reflexão dedicado ao novo coronavírus, que pretende ir mais além do que medicina dentária, e quer que os profissionais sejam testados em massa. Até agora, segundo o inquérito acima citado, 99,5% dos médicos não foram contaminados com a covid-19..Miguel Pavão sugere mesmo que o universo dos dentistas possa servir como "cobaia" para inquéritos de imunidade ou de teste à vacina por serem um grupo pequeno e com um contacto muito próximo com muitas pessoas. .Na eventualidade de uma segunda vaga da pandemia, o bastonário espera que "os médicos dentistas possam estar mais próximos dos outros profissionais de saúde". "Os dentistas foram um pouco marginalizados, esquecidos e houve alguma injustiça. Parece que a saúde dentária não é um bem necessário, mas a verdade é que não é supérflua. As situações agravaram-se, a cárie dentária, as infeções, o próprio cancro oral, que tem uma incidência elevada e é um dos seis cancros mais prevalentes do mundo. A saúde oral é importante para o bem-estar das pessoas e também fundamental do ponto de vista social", recorda o especialista..Mostra-se compreensivo "com os tempos conturbados", mas sugere que não "é admissível" que os dentistas voltem a ser "secundarizados", nomeadamente no acesso aos equipamentos de proteção individual.."Esquecidos" na corrida aos equipamentos de proteção individual.Mesmo durante o confinamento, tinham autorização para atender casos urgentes, mas não se revelou fácil prepararem-se para isso. "As fábricas portuguesas com que falava diziam sempre que estavam a produzir para o Estado", explica o dentista de Faro. E quando encontravam máscaras, fatos, viseiras, o problema passava a ser o preço "estratosférico", como descreve o médico de Barcelos..O Estado abriu um programa de apoio para ajudar na compra do material de proteção, mas como os dentistas concorriam na mesma categoria que os outros negócios, como cafés ou cabeleireiros, apenas 25% conseguiram obter algum financiamento desta linha, de acordo com o inquérito da Ordem. "É manifestamente pouco e os dentistas têm uma exposição muito grande", defende o bastonário, que reivindica linhas de salvaguarda destes equipamentos para os dentistas. "Fomos esquecidos, mas espero que isso mude.".OMS: 75% dos países interromperam cuidados de saúde oral.Também a Organização Mundial da Saúde (OMS) se mostrou preocupada, nesta semana, com o cancelamento ou o adiamento das consultas de saúde oral. "A covid-19 afetou os serviços odontológicos de uma forma sem precedentes", disse em conferência de imprensa o chefe de Medicina Dentária do Departamento de Doenças Não Transmissíveis da OMS, Benoit Varenne..De acordo com a organização, 75% dos países interromperam de forma total ou parcial os serviços de medicina dentária. O que deverá ter um impacto grande na saúde da população mundial. Aproximadamente, 3,5 milhares de milhões de pessoas no mundo têm problemas dentários que resultam em dores, stress, isolamento social e, nos casos mais graves, em certos cancros orais, que podem ser fatais..Segundo Benoit Varenne, em muitos países, os dentistas foram deslocados para atendimento médico de emergência, outros foram obrigados a fechar as clínicas por "o atendimento odontológico ainda ser visto como um serviço não essencial". Para o especialista, o regresso ao trabalho de muitos médicos dentistas vai "exigir tempo e investimento" e, por isso, pede aos governos que colaborem no regresso.