Médico que fez autópsia de Ihor pode voltar a ser contratado por Instituto de Medicina Legal

A sua denúncia imediata à PJ dos indícios de homicídio colhidos na autópsia fizeram do legista Carlos Durão o "herói" do caso Ihor. Daí que a notícia da rescisão do seu contrato com o Instituto de Medicina Legal tenha caído como uma bomba. Mas instituto diz agora que perito pode concorrer para mais três anos de contrato.
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A rescisão de contrato do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) com o médico Carlos Durão, que fez a autópsia do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk e denunciou de imediato a existência de indícios de homicídio à Polícia Judiciária, não impede que este possa voltar a concorrer à mesma posição junto do instituto, a de perito contratado, no concurso que está neste momento a decorrer e que como o anterior se celebrará por três anos. Isso mesmo afirmou o INMLCF ao DN: "A rescisão do contrato de prestação de serviços não é impedimento a que possa concorrer de novo no atual concurso."

O médico tinha um contrato de prestação de serviços de três anos que terminava em dezembro, mas foi rescindido a 26 de novembro.
O motivo da rescisão, de acordo com o INMLCF, foi "uma clara violação do contrato estabelecido" - a publicação, num artigo científico em coautoria, de fotografias de um cadáver "com imagens do rosto que permitem a sua identificação" (na revista Forensic Science, Medicine and Pathology).

Questionado sobre que tipo de procedimento precedeu a rescisão, o INMLCF frisa que como não tem tutela disciplinar sobre os médicos prestadores de serviços não houve processo disciplinar. Mas garante que "o médico foi ouvido previamente" à rescisão. Adianta ainda assim que na mesma data (26 de novembro) em que rescindiu o contrato com Carlos Durão "foi instaurado um processo de inquérito".

O DN tentou saber de que tipo de inquérito se trata, sem sucesso. Uma vez que o principal autor do artigo já viu o contrato rescindido, parece pouco provável que se esteja posteriormente a inquirir sobre o que aconteceu. A não ser que o inquérito diga respeito a um dos dois coautores do referido artigo, o médico Frederico Pedrosa, que faz parte dos quadros do INMLCF, sendo coordenador do gabinete no qual trabalhava Durão. Como funcionário do instituto, Frederico Pedrosa está sujeito a tutela disciplinar, pelo que no seu caso tem de haver inquérito.

O artigo tem ainda outro coautor, o toxicologista Ricardo Dinis, que não tem qualquer vínculo ao instituto.

Carlos Durão trabalha para o INMLCF neste regime, que implica o pagamento "à peça", por ato médico, desde 2007. Chegado à ribalta através do caso Ihor, no qual a sua atuação foi louvada quer pelo Ministério Público quer pela Inspeção-Geral da Administração Interna - que sublinham que a sua intervenção levou à investigação de uma morte que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras estava a tentar fazer passar como "devida a doença súbita" -, foi também o médico legista no caso de Valentina, a criança de 9 anos de cujo homicídio, em maio, o pai está acusado.

A rescisão do contrato deste perito foi noticiada no passado domingo pelo Correio da Manhã como estando precisamente relacionada com a denúncia de crime no caso Ihor, afirmando o matutino que a Polícia Judiciária estaria a investigar "pressões" sobre Carlos Durão em resultado dessa mesma denúncia.

Houve até quem - caso do jurista e ex-ministro Miguel Poiares Maduro, no Twitter - perante a notícia da rescisão invocasse o estatuto de denunciante previsto em diretiva europeia: "Nos regimes de proteção de denunciantes estas questões são protegidas e qualquer alteração contratual exige normalmente um escrutínio muito apertado para evitar riscos de penalização de denunciantes."

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Mas segundo o INMLCF, que recusa qualquer relação entre a atuação de Durão no caso Ihor e a rescisão, o médico fez a sua estrita obrigação ao transmitir à PJ aquilo que tinha descoberto na autópsia.

Em resposta às questões enviadas pelo DN, este organismo também certifica não existir qualquer norma que imponha a um médico ao serviço do instituto a comunicação prévia dos referidos indícios a um superior hierárquico, antes de os denunciar à investigação criminal. Isto apesar de em comunicado de 20 de dezembro o INMLCF ter frisado que fora esse o caso - "O médico que realizou a autópsia informou previamente a diretora da Delegação do Sul do INMLCF da suspeita da existência de crime, pelo que obteve desta dirigente total concordância na denúncia da situação à Polícia Judiciária, o que aconteceu logo de seguida" -, concluindo: "Sempre assim foi e assim será."

Como já referido, porém, a causa expressa da rescisão é a publicação de um artigo científico, de que Durão é o principal autor, ilustrado com fotografias de um cadáver no local onde foi encontrado e de rosto exposto. Este artigo, que está online desde junho, não é acessível ao público em geral.

Questionado sobre se existiu consulta da comissão de ética do hospital a propósito do caso, o INMLCF responde que não: "Não houve, nem tinha de haver, nem havia qualquer necessidade de consulta à comissão de ética, pois não houve, nem há, qualquer dúvida sob o ponto de vista ético quanto à inaceitável violação da privacidade na publicação de fotografias de cadáveres com imagens do rosto que permitam a sua identificação. Tal publicação, nesses termos, constitui clara violação do contrato estabelecido com o médico, concretamente do disposto na cláusula 8ª, n.º 2 ("Está vedada ao segundo outorgante a utilização pessoal da iconografia e casuística pericial bem como de toda a informação pericial e elementos identificativos que lhe respeitem, designadamente para apresentação de trabalhos e publicações académicas e/ou científicas, salvo em caso de autorização prévia expressa do conselho diretivo do INMLCF."), e desrespeita o regulamento interno do instituto."

De acordo com especialistas ouvidos pelo DN a publicação de fotos de cadáver identificáveis é, tal como afirma o instituto, uma falha ética muito grave. Mas os mesmos especialistas consideram a rescisão imediata do contrato, ou seja a "pena máxima", uma medida muito drástica para uma "primeira falha".

Questionado sobre se existiu algum outro problema com este médico anteriormente, o Instituto de Medicina Legal nega: "Não chegou ao conhecimento da atual direção qualquer problema com o médico em causa."

Também na Ordem dos Médicos, onde Carlos Durão está inscrito como especialista em ortopedia, foi garantido ao DN que não existe qualquer queixa a ele relativa.
O único processo que ali existe é relativo ao reconhecimento da sua especialidade em medicina legal, já que Durão, que tem dupla nacionalidade, tendo nascido e estudado no Brasil, possui essa especialidade naquele país e quer vê-la reconhecida em Portugal.

O processo de pedido de reconhecimento deu entrada em agosto de 2019 e ainda não terminou.
O DN procurou saber junto da Ordem e da presidente do Colégio da Especialidade de Medicina Legal, Sofia Frazão, em que estádio se encontra mas não obteve esclarecimento. Em todo o caso, o tempo decorrido desde o início do processo - quase ano e meio - será, de acordo com o que o DN conseguiu saber, "normal", e mais ainda em período pandémico.

O facto de Carlos Durão trabalhar para o INMLCF como perito sem deter a especialidade de medicina legal não é de todo estranho, pelo contrário: segundo o próprio instituto "são cerca de 90 os médicos que, não possuindo a especialidade, possuem formação pós-graduada em Medicina Legal" (como é o caso do clínico luso-brasileiro) e estão habitualmente ao seu serviço. Para entrar no quadro, como funcionário, é que terá de ter essa especialidade.

De acordo com declarações recentes do bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, "apenas se encontram preenchidas 29% das vagas existentes do quadro de pessoal médico" do instituto, ou seja "63 em 215", e este "recorre com frequência à contratação externa de peritos em regime de avença".

Com 41 anos, Carlos Henrique da Silva Durão está inscrito na Ordem dos Médicos portuguesa desde 2006. Tem uma pós-graduação em Antropologia Forense pela Universidade de Coimbra e outra em Avaliação do Dano Corporal pela Universidade do Porto e trabalha como ortopedista no Hospital de Vila Franca de Xira. Esteve no exército português de 2006 a 2013 como oficial médico, tendo sido destacado para a missão da NATO no Kosovo. Antes de chegar a Portugal, teve a sua residência médica de especialização em ortopedia e traumatologia no Hospital Central do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro; tirou o curso de Medicina na Universidade Souza Marques, na mesma cidade.

Com vários artigos científicos publicados em revistas internacionais (na Forensic Science, Medicine and Pathology, por exemplo, tem um novo artigo publicado em novembro, também em coautoria com Frederico Pedrosa e Ricardo Dinis), assim como participação frequente em seminários e congressos, o médico é descrito por um colega como "um pouco vaidoso, arrojado nas conclusões", porém "muito bem visto no Instituto de Medicina Legal".

Outro colega sublinha a gravidade do erro na publicação das fotos, mas destaca a "coincidência desgraçada" da decisão do instituto de rescindir o contrato com o eclodir do caso Ihor.

É a um ex-presidente do INMLCF, o professor catedrático da Universidade de Coimbra Duarte Nuno Vieira, presidente do Conselho Europeu de Medicina Legal e consultor forense temporário do Alto-Comissariado de Direitos Humanos da ONU, que Carlos Durão atribuiu o principal impulso para vir para Portugal trabalhar em medicina legal - especialidade que já tinha no Brasil. Terá sido, de acordo com uma entrevista dada pelo médico luso-brasileiro à publicação digital de ciências forenses Evidência, publicada em outubro deste ano, uma palestra do especialista português a dar o impulso.

Este parece retribuir a estima, certificando que a autópsia feita por Durão a Ihor Homeniuk "está muito bem feita, seguindo todos os standards internacionais". Fez até uma carta a pedido daquele para juntar ao seu pedido de reconhecimento de especialização na Ordem dos Médicos, de cujo colégio da especialidade de Medicina Legal foi presidente.

Na carta, cuja data é agosto de 2019, refere o facto de o médico luso-brasileiro colaborar "continuamente com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses desde o tempo em que presidi a este instituto", para concluir : "Trata-se de um profissional empenhado e dinâmico, com substancial interesse pela área pericial médico-legal, área na qual sempre evidenciou competência e uma contínua preocupação com a sua atualização técnico-científica. Considero que o Dr. Carlos Henrique da Silva Durão reúne os requisitos necessários para a obtenção do título de especialista em Medicina Legal também pela Ordem dos Médicos de Portugal, pretensão que apoio inteiramente."

Sobre a rescisão do contrato com o INMLCF, o professor catedrático prefere não se pronunciar, mas reconhece "a violação de uma norma que vem do tempo em que eu era presidente do instituto", e que se trata de "uma falha muito grave". Mas não deixa de atribuir também responsabilidade à revista: "É igualmente responsável, é um lapso do editor, publicar a cara de uma pessoa."

O DN procurou obter a reação de Carlos Durão ao ocorrido, mas o médico declinou fazer qualquer declaração.

Na citada entrevista à Evidência, porém, quando questionado sobre se já esteve envolvido em casos com "repercussão" em Portugal, responde afirmativamente. "Tenho alguns casos em que o cadáver entra no necrotério como sendo mais uma morte natural, e a autópsia revela ser um homicídio. Não há realização maior para um legista do que "dar voz a um cadáver". Sim, porque "os mortos também falam", é preciso compreendê-los. É gratificante demais sentir que a sua atuação foi decisiva para a justiça, que o perito foi capaz de mudar o rumo de uma investigação. Eu defendo que devemos ser ativos, comprometidos e completamente envolvidos com o nosso trabalho. Temos um compromisso com a busca da verdade."

O médico deverá testemunhar, como autor da autópsia, no julgamento dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras acusados da morte de Ihor Homeniuk, e que se inicia a 20 de janeiro. Se o fará como perito do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses ou não depende do resultado do concurso para a posição. Se não entrar, será a primeira vez em 13 anos.

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