É definitivo e nem a pandemia fez com que muitos portugueses apostem numa carreira literária a todo o custo, assistindo ou reservando o seu lugar online em dezenas de cursos ministrados por autores, editores e performers desta arte, nos últimos tempos. Há nomes de todo o género, principalmente escritores de sucesso em Portugal, que oferecem o seu conhecimento sobre a escrita de um livro. E os portugueses, ferozes defensores da velha frase que afirma que só se é alguém após plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, focam-se na terceira parte para garantir um lugar na posteridade..O desejo de publicar um livro é tão grande que as próprias editoras - que se fartam de recusar originais medianamente escritos e deixam os editores com uma sensação de tempo perdido após lerem as primeiras duas páginas e desistirem - não deixam de abastecer o mercado com as bíblias dos verdadeiros best sellers a explicar como se "produz" um livro. Tanto assim que nos últimos seis meses o guia Suspense ou a Arte da Ficção de Patricia Highsmith e Escrever - Memórias de Um Ofício de Stephen King voltaram a ser reimpressos, ganharam novas capas e editoras, e aí estão para ensinar os ainda não-escritores a realizarem o sonho de uma vida..Diga-se que no caso de Patricia Highsmith (1921-1995) a edição original data de 1966, como o título Plotting and Writing Suspense Fiction. A primeira edição em português foi da Relógio D"Água 21 anos depois, com o título A Criação do Suspense. Agora, é a vez da editora Cavalo de Ferro voltar à carga e relançá-lo como o título Suspense ou a Arte da Ficção..No caso de Stephen King (1947), a edição original é mais recente, de 2000, e foi logo traduzida um ano depois para português pela Temas e Debates, e quase duas décadas depois reeditada pela Bertrand. O guia tem ele próprio uma história que já dava um romance, pois o autor estava em dificuldades para o terminar, foi atropelado e, sem ideias para escrever, terminou-o até voltar a estar inspirado..Para quem quer ideias de autores que se tornaram famosos pelos seus livros, tanto o de Highsmith como do King são bons guias. A escritora de policiais é muito sintética e não se distrai em considerações paralelas que distraiam os aprendizes, tendo optado por capítulos médios e dentro deles vários subcapítulos, dissecando todas as regras de forma a convencer o leitor quanto ao seu génio. No prefácio esclarece que "esta obra não consiste num manual de instruções", no entanto quem desejar aprender um caminho para a escrita não se perde em frases sem significado. O foco é sempre a narrativa de suspense, mas não faltam bons conselhos para outros géneros. Afinal, o que importa na literatura é apanhar o leitor e obrigá-lo a acompanhar a ação que se desenrola logo a partir da primeira página. Começa por explicar que o leitor quer "entretenimento", proposta que atualmente muitos contestam. Mas o argumento que usa é eterno: "O público quer ficar preso a uma história". Para isso, explica, o argumento deve ser "invulgar" e trabalhado de modo que faça "estremecer, rir, que seja tema de conversa e possa ser recomendado". Ou seja, o que "o público gosta é de algo único e individual"..Citaçãocitacao"Quem ler os guias de Patricia Highsmitth e de Stephen King não deveria deixar de abrir um pequeno volume de Marcel Proust, escrito há 116 anos, num tempo em que o sucesso literário era também um sonho.".Nos capítulos seguintes, Patricia Highsmith garante que se o livro não agradar a quem o escreve então o mesmo sucederá aos leitores, daí que faça uma extrapolação curiosa: "Penso que as obras de Dostóievski, na sua maioria, seriam classificadas como livros de suspense, na sua maioria, se fossem publicados hoje pela primeira vez". Acrescenta: "Ser-lhe-ia pedido que cortasse algumas passagens". Porque o livro sairia muito mais caro e porque proporcionaria algum enfado ao leitor. Ela dá exemplo de um dos seus livros, em que se deixou embalar pela narrativa e quando chegou ao número de páginas que deveria ser o total ainda ia a meio..Quanto à inspiração, o conselho é simples: anotar todas as ideias no dia-a-dia e um dia ser-lhes-á dado uso. Quanto ao tempo dedicado à escrita, não hesita e garante que, mesmo com um emprego principal, o trabalho deve ter um ritmo marcado por algum quotidiano. Um dos recursos que utiliza ao longo do guia para entusiasmar o leitor reflete a criação de um dos seus maiores sucessos, O Talentoso Mr. Ripley. Sendo um dos seus livros mais conhecidos, fica fácil a quem quer escrever pegar neste policial e cotejá-lo com as indicações que dá em Suspense ou a Arte da Ficção..Quanto a Stephen King, este seu guia tem início com uma frase fundamental: "Este livro é pequeno [253 páginas não serão assim tão poucas...] porque a maior parte dos livros sobre escrita está cheia de palha." Confessa que tem poucas memórias de quando era criança e que o tempo de ser jovem é menos enevoado, tentando assim explicar como se forma um escritor: "Não acredito que os escritores possam ser feitos quer pelas circunstâncias quer por vontade própria. O equipamento vem com a embalagem original". O que quer dizer com isso: "Muitas pessoas possuem algum talento como escritores ou contadores de histórias e, esses talentos podem ser reforçados e aperfeiçoados"..Apesar de não querer que este Escrever seja uma autobiografia, Stephen King não resiste a utilizar os seus próprios exemplos criativos para ilustrar o leitor. Por exemplo, quando começa a escrever um dos seus maiores sucessos, Carrie, que se segue a um período em que "não estava a ter muito êxito com a escrita". Apesar daquilo em que Carrie se transformou, e mudou a sua vida enquanto escritor, o principal conselho para um iniciante é ter alguém que acredite em si: "É muito importante porque escrever é um trabalho solitário.".Quanto ao tamanho do livro, tal como Highsmith, Stephen King pede juízo: "Haverá uma razão para criar uma mansão de palavras?". É claro que considera que existem livros enormes que mantém o leitor seduzido: "Mesmo ao cabo de mil páginas, não queremos deixar o mundo que o escritor criou para nós ou as pessoas imaginárias que nele vivem". Claro, insiste, nem todos podem escrever E Tudo o Vento Levou ou A Trilogia dos Anéis. Para King, a "comunidade" dos escritores divide-se em três níveis: "Na base alargada estão os piores. Por cima deles está um grupo ligeiramente menor mas ainda assim grande, o dos escritores competentes. A camada dos escritores realmente bons é bastante mais pequena.".Quem ler os guias de Patricia Highsmitth e de Stephen King não deveria deixar de abrir um pequeno volume de Marcel Proust, escrito há 116 anos, num tempo em que o sucesso literário era também um sonho; basta conhecer a biografia do autor francês e aperceber-se da dificuldade que teve para publicar a obra Em Busca do Tempo Perdido. O ensaio Sobre a Leitura tem menos de 40 páginas e sete de notas, breve o suficiente para os que estão ansiosos por escrever um best seller ou apenas publicar um livro compreenderem o que está na base de carreiras, como é o caso das de Highsmith e de King: a sedução das suas escritas..Escreve Proust que "uma vez lida a última página, o livro estava acabado. (...) Aquele livro era só aquilo? Essas pessoas, que nos tinham feito ofegar e soluçar, não as veríamos nunca mais, e, se fosse possível, termos outras informações sobre todos esses personagens, conhecermos agora alguma coisa da sua vida. Nada mais saberíamos delas. Teríamos querido tanto que o livro continuasse..." Proust continua a explorar o efeito da literatura nas páginas seguintes, bem como da sua criação, e como se de um guia de bem escrever se tratasse deixa o leitor entrar naquilo que é o segredo de um livro de sucesso. Ou seja, não se fiquem os aprendizes por Patricia Highsmith e Stephen King e deixem de lado Proust. O que os dois primeiros fazem, o terceiro refaz com a opinião de um leitor apaixonado, e são esses que compram livros..Um dos "guias" mais interessantes para os que se querem tornar escritores foi lançado no ano passado, escrito por João Tordo e intitula-se Manual de Sobrevivência de um Escritor. No resumo disponível nos sites resume-se assim: "O que é um escritor? Como cria? Como sente? Partindo das suas memórias do ofício, João Tordo esboça neste livro uma espécie de manual para todos aqueles que se interessam pelo mundo da escrita, como o caso dos escritores a dar os primeiros passos". O livro é uma das poucas tentativas nacionais neste género de guia, mas onde os que procuram esta vida encontram respostas muito importantes. Tordo discorre sobre as técnicas de escrita, mas não ignora o mundo cão que é a edição e a dificuldade em sobreviver à custa da escrita. Sempre sincero e com muitos exemplos da sua própria biografia, desengana quem chega a este mundo de ânimo leve e sem uma determinação. Pode-se dizer que quem ler o seu Manual pode evitar perder longos anos de uma vida e assumir que há mais profissões que a da escrita, por mais glamour que possua..Guias sobre como escrever não faltam como se pode ver, mas quem os assina tem um currículo que não se constrói de um dia para o outro. Ler um guia pode ser o melhor primeiro passo a dar por quem ainda sonha em ser escritor. Afinal, Patricia Highsmith e Stephen King não tiveram sucesso imediato, Marcel Proust teve que prescindir de direitos de autor para ver a sua obra publicada e João Tordo desvenda mais os segredos do baixo rendimento e as frustrações do autor do que um mundo feliz..Suspense ou a Arte da Ficção.Patricia Highsmith.Editora Cavalo de Ferro.143 páginas.Escrever - Memórias de Um Ofício.Stephen King.Bertrand Editora.288 páginas.Sobre a Leitura.Marcel Proust.Editora Relógio D"Água.57 páginas.Manual de Sobrevivência de Um Escritor.João Tordo.Editora Companhia das Letras.224 páginas